crônica publicada no site do CCRJ em 2003. última do ano. Agradeço aos meus amigos que acompanharam o primeiro ano deste blog, os desejo um 2008 bem bacana e espero contar com todos ano que vem. Volto em janeiro!bjs
Estavam os papéis na mesa. Tinham gráficos em disco, barra e coluna ao lado de números cheios de zero e sublinhados de bic. Era o fim de uma agência que tinha dado tantas pequenas alegrias aos seus funcionários. Não eram grandes contas mas sempre pintavam tijolinhos camaradas nos classificados e até um short-list na Semana Internacional de Koala Lampur. Sugeriu-se de tudo – até trabalho voluntário – mas a dona estava decidida a guardar os estiletes e réguas e começar nova vida em outro lugar. Propaganda é isso aí.
Na segunda estariam todos com a pastinha na mão novamente, esbarrando com colegas nas salas de espera, puxando sardinha do amigo que acabou de virar sênior. O problema é que as salas estavam cada vez mais cheias de garotos com gel no cabelo, de brincos e tatuagens, donos de uma autoconfiança intimadora. Ao ligar para os amigos, o velho redator viu que, apesar da crise, cada um se virou como pôde. Atendimento como recepcionista, RTV em festa de 15 anos, diretor de arte fazendo silk-screen, todos com o mesmo discurso “Pelo menos estou trabalhando na área”. Mas ele não estava preocupado com isso e sim para onde iria. Quem quer um redator velho?
Foram 40 anos criando rimas, trocadilhos e joguinhos que agora não servem para nada. Escrever livros não era sua pretensão, ser copy-desk também não, ser digitador muito menos. Aparentemente nada o daria força o suficiente para levantar da cama de manhã e achar que o dia vale a pena.
Para quem passou a vida lidando com problemas insolúveis era constrangedor não resolver o seu. Pensou, pensou, queimou a mufa e o um dia, tomando uma média, surgiu o insight. Pendurou seu gancho coberto de papeizinhos no corrimão do ônibus e deu início ao novo desafio: venderia as palavras. Dentro da sua estratégia, as categorizou como especiais – aquelas que nunca lembramos quando precisamos – e usuais – aquela que não esquecemos até sem querer lembrar. Cada pacote tinha cinco palavras que poderiam ser sortidas ou agrupadas pelo assunto. Por exemplo, a categoria Escritório continha: “Atenciosamente”, “primeiro momento”, “aguarde um minuto” e “estarei verificando”. Já a categoria Amante: “segunda a sexta”, “motel”, “você é muito melhor que ela”.
Mesmo com a idéia original passou o mês sem vender uma palavrinha sequer até que descobriu que era preciso experimentar pois as palavras também têm sabor e só quanto saem da boca temos noção do quanto são gostosas. Deu ao motorista o “pusilânime” para ser usado com os barbeiros no trânsito e ao trocador deu “o cash”, produto importado para renovar seu vocabulário sobre moedas e notas. Entre os passageiros distribuiu “cordialidade”, “compaixão” e “perseverança”. A princípio alguns se negavam a receber mas ele andava com a “insistência” no bolso e foi assim que conseguiu progredir. Vendia “pa-pai” e “ma-mãe” nas creches, faturando uma nota com os bebês além das encomendas de “vai”, “assim”,” rápido” e “tô gozando” que as prostitutas faziam. Seu faturamento estava indo tão bem que doou “dignidade” aos mendigos e “fiiu-fiiuu” a mulher feia. “Esperança”, “amor”, saúde” e “paz” por mais que fossem fáceis de encontrar sempre tinha alguém precisando... Topou o desafio e melhorou a qualidade do produto. Produziu “pôr-do-sol” para os que não enxergavam e “folhas no vento” para os que não ouviam e se viu multinacional quando um inglês encomendou “o calor das praias e das mulatas cariocas” via sedex. Logo descobriu a concorrência e se apaixonou por ela. Fizeram uma sociedade com seus corações e completaram suas reticências. Ela vendia verbos, artigos e preposições, ele palavras. Surgiram no mercado “olhos brilhando”. “fascinado por ti”, “nunca te esquecerei” e outras tão meladas que só podiam ser vendidas se embaladas em papel filme.
Esse ano o casal promete estar em Copacabana, vendendo “adeus ano-velho, feliz ano-novo”, “esse ano vou parar de fumar” e “meu regime começa na segunda”, mas de antemão deixou a quem interessar uma cortesia para 2004:
“Sucesso”, “sucesso”, “sucesso”, “sucesso”, “sucesso”, “sucesso”, “sucesso”, “sucesso”,
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quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
FÉ DE ANINHA
Com 32 anos, valia a pena apelar, acreditar, despachar, rezar, orar, ou seja lá o que for preciso para ser mãe. Foi um ano cumprindo rituais, visitando cartomantes, participando de correntes positivas e mais um final de ano frustrante chegou sem notícias boas para Aninha. Tadinha. Vivia só num sobrado e apesar de saber que seu sobrenome Souza nunca sumiria da terra, queria perpetuar o da família. Mas nunca pensou que era tão difícil ser comida, abusada, bagunçada por um cara legal. Queria apenas que fosse alguém digno para seu futuro pimpolho se orgulhar, alguém fotogênico suficiente para ficar num porta-retrato em cima da estante. “Com A?... Aviador, Astronauta. B? pode ser bicheiro mesmo. C? Caixa de banco, corista, carteiro, cozinheiro, corredor, cigano, caralho, o que não falta é homem...”. Investiu o esperado décimo terceiro salário na sua fé em bibelôs e presentinhos coloridos que valorizavam sua esperança, também pôs em jogo a aliança de ouro da falecida avó, a peça mais valiosa do seu tesouro de chapeados; desta vez Yemanjá não teria desculpas. Também deu um jeito no cabelo, catucou as cutículas, foi ao ginecologista - que era casado - e verificou seu problema de inflamação, um corrimento natural. Tudo OK.
Quando os primeiros filetes de rojão romperam no céu, Aninha pulou sete ondinhas, comeu lentilha, pitou cachimbo, jogou sal pra trás, rezou para São Judas Tadeu, Maria desatadora dos Nós e Santo Antônio, ofereceu flores, molhou a testa, energizou o Karma, escreveu na areia, tocou sininho, bebeu champagne, , só faltava a embarcação para Yemanjá. Era tão grande e enfeitada que seus espelhos e perfumes da Avon refletiam a metros de distância como um globo de discoteca. Nem havia molhado seu casco por completo quando a primeira onda já arremessou a oferenda de volta. Ajeitou com carinho as alegorias e teve que molhar o joelho para dar partida ao Cruzeiro da esperança. Mas ele voltou. Recolhidos seus trintetantos itens, foi novamente posto em serviço. Aninha se virou sem dar uma olhadinha, mas o menino a alertou “Tia, posso ficar com esse seu brinquedo?” Tomou coragem, encarou a maré até a cintura e teria conseguido se não fosse a onda recheada de palmas que ela jura até hoje ter pedacinhos agarrados na garganta. Andou com seu ebó procurando um lugar mais calmo quando enfim alguém apontou a alma caridosa que levava os agrados até a escuridão do mar. Entrou na fila e viu satisfeita quando seu presente caprichado se esvaiu no horizonte. Que alma caridosa. Que homem bom. Opa! Aninha se viu vermelhinha quando o mar descobriu os cabelos loiros do moço e seus olhos verdes apontavam para ela.
(...”É ele. Meu deus, igualzinho eu pensava. Que cabeleira linda. Deve ser turista pagando promessa. Imagina meu filho, todo ano indo passar férias com o pai na Europa, falando igual gringo ...”)
Ele vinha submergindo devagar, em passos pequenos e sorriso contido. Gritou ainda longe algo como “o próximo” e no instante seguinte, se benzeu. Estava de blusa azul bem clara, agora transparente pela água.
(...Que nada, brasileiríssimo e temente a Deus. Quem sabe já esbarramos na Catedral de Aparecida? Olha que sorriso bonito, gente, deve ser dentista. Vai dar para consertar o pivô de graça e tudo.”)
Pouco mais perto, já dava para notar a ausência do molar e de qualquer postura profissional . Mas mostrou-se disposto, com o corpo riscado por músculos bem feitos.
( Descobri! Ele é militar! Obrigado Yemanjá, não precisava ser tão gostoso. Paraquedista, piloto, marinheiro, macho... Sempre sonhei passar a farda do meu filho).
Ele vinha na direção de Aninha, que fez uma moldurinha improvisada com a mão para imaginar como ficaria bonito lá na sala. Pediu um trago do cigarro do amigo, baforejou para o alto contra os últimos fogos que refletiram seu bigode bem aparado.
(Deve ser caminhoneiro. Tá no jeitão dele. Vai chegar meu filho pela porta e eu aflita, depois de esperar meses, vou preparar aquele almoço... Olha a tatuagem dele. Pode ser também que seja motoqueiro. Essa é boa. Jaquetão e pé na estrada).
Estava bem perto agora, a menos de 5 metros, com medalhão no pescoço e pulseira. Ele vinha falar com ela.
(Ai, meu Deus, tô nervosa. Que ele seja pelo menos um polícial direito ou um pagodeiro em ascensão...)
- Ficou satisfeita, Dona?
- Ainda não... desculpe. Fiquei, obrigada.
- O que você pediu no despacho?
- Um filho.
- Isso a gente resolve né? Brincadeira. Não quis faltar o respeito. Mas quando quiser alguma coisa, eu tô por aqui.
- Como eu te acho?
- Fácil. Sou o catador de latinha oficial da praia, com colete e tudo.
- É,... Muito honrado né?. Hoje está de folga?
- Não, tô de freelancer. Sou uma espécie de tesoureiro de Yemanjá...
Ainda na condução, triste por ver mais uma conquista naufragar, lembrou do seu cheiro, do corpo, dos olhos verdes e aquele último sorriso de lado antes de pular novamente na água. Certamente da próxima vez que o visse, estaria ainda mais bonito, com um pivô de ouro no lugar da janelinha, no quilate exato da aliança da avozinha de aninha.
Quando os primeiros filetes de rojão romperam no céu, Aninha pulou sete ondinhas, comeu lentilha, pitou cachimbo, jogou sal pra trás, rezou para São Judas Tadeu, Maria desatadora dos Nós e Santo Antônio, ofereceu flores, molhou a testa, energizou o Karma, escreveu na areia, tocou sininho, bebeu champagne, , só faltava a embarcação para Yemanjá. Era tão grande e enfeitada que seus espelhos e perfumes da Avon refletiam a metros de distância como um globo de discoteca. Nem havia molhado seu casco por completo quando a primeira onda já arremessou a oferenda de volta. Ajeitou com carinho as alegorias e teve que molhar o joelho para dar partida ao Cruzeiro da esperança. Mas ele voltou. Recolhidos seus trintetantos itens, foi novamente posto em serviço. Aninha se virou sem dar uma olhadinha, mas o menino a alertou “Tia, posso ficar com esse seu brinquedo?” Tomou coragem, encarou a maré até a cintura e teria conseguido se não fosse a onda recheada de palmas que ela jura até hoje ter pedacinhos agarrados na garganta. Andou com seu ebó procurando um lugar mais calmo quando enfim alguém apontou a alma caridosa que levava os agrados até a escuridão do mar. Entrou na fila e viu satisfeita quando seu presente caprichado se esvaiu no horizonte. Que alma caridosa. Que homem bom. Opa! Aninha se viu vermelhinha quando o mar descobriu os cabelos loiros do moço e seus olhos verdes apontavam para ela.
(...”É ele. Meu deus, igualzinho eu pensava. Que cabeleira linda. Deve ser turista pagando promessa. Imagina meu filho, todo ano indo passar férias com o pai na Europa, falando igual gringo ...”)
Ele vinha submergindo devagar, em passos pequenos e sorriso contido. Gritou ainda longe algo como “o próximo” e no instante seguinte, se benzeu. Estava de blusa azul bem clara, agora transparente pela água.
(...Que nada, brasileiríssimo e temente a Deus. Quem sabe já esbarramos na Catedral de Aparecida? Olha que sorriso bonito, gente, deve ser dentista. Vai dar para consertar o pivô de graça e tudo.”)
Pouco mais perto, já dava para notar a ausência do molar e de qualquer postura profissional . Mas mostrou-se disposto, com o corpo riscado por músculos bem feitos.
( Descobri! Ele é militar! Obrigado Yemanjá, não precisava ser tão gostoso. Paraquedista, piloto, marinheiro, macho... Sempre sonhei passar a farda do meu filho).
Ele vinha na direção de Aninha, que fez uma moldurinha improvisada com a mão para imaginar como ficaria bonito lá na sala. Pediu um trago do cigarro do amigo, baforejou para o alto contra os últimos fogos que refletiram seu bigode bem aparado.
(Deve ser caminhoneiro. Tá no jeitão dele. Vai chegar meu filho pela porta e eu aflita, depois de esperar meses, vou preparar aquele almoço... Olha a tatuagem dele. Pode ser também que seja motoqueiro. Essa é boa. Jaquetão e pé na estrada).
Estava bem perto agora, a menos de 5 metros, com medalhão no pescoço e pulseira. Ele vinha falar com ela.
(Ai, meu Deus, tô nervosa. Que ele seja pelo menos um polícial direito ou um pagodeiro em ascensão...)
- Ficou satisfeita, Dona?
- Ainda não... desculpe. Fiquei, obrigada.
- O que você pediu no despacho?
- Um filho.
- Isso a gente resolve né? Brincadeira. Não quis faltar o respeito. Mas quando quiser alguma coisa, eu tô por aqui.
- Como eu te acho?
- Fácil. Sou o catador de latinha oficial da praia, com colete e tudo.
- É,... Muito honrado né?. Hoje está de folga?
- Não, tô de freelancer. Sou uma espécie de tesoureiro de Yemanjá...
Ainda na condução, triste por ver mais uma conquista naufragar, lembrou do seu cheiro, do corpo, dos olhos verdes e aquele último sorriso de lado antes de pular novamente na água. Certamente da próxima vez que o visse, estaria ainda mais bonito, com um pivô de ouro no lugar da janelinha, no quilate exato da aliança da avozinha de aninha.
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
O ABANDONO DA MULHER QUE NUNCA TIVE
Foi no dia que a nostalgia me acordou com sussurros abafados pelo travesseiro que eu pensei nela. Sob a desculpa de ter encontrado a simetria que formava a primeira letra do seu nome nas estrelas de papel coladas no teto do quarto, me permiti desvirar o porta-retrato do coração para descobrir nós dois em um único sorriso cercados de uma paisagem qualquer. Poderia ser no primeiro chopp da minha vida ou assistindo o despretensioso filme francês de uma quinta-feira úmida. Não importa. O que estivesse projetado atrás de nós seria apenas uma justificativa, um cenário projetado em croma que escondia nosso orgulho azul de mostrar as verdadeiras cores de uma saudade sazonal. Ora desaparecia, ora invadia.
Ainda no meu casulo de escuridão, sem mexer as pupilas, revirei quinquilharias em mochilas e armários na necessidade de tangibilizar sua pontual presença na minha vida, mas nada restou, apenas algumas impessoais notas fiscais. Todo aquele sentimento, que pelo menos neste momento de abandono de si, eu considerava o mais valioso da minha breve história de amante, estava sob a vigilância das traças do esquecimento que já começaram a roer as datas e nomes. O contrário de sua imagem. Esta será imaculada, carimbada e catalogada nos arquivos da eternidade particular, mesmo que só retorne a ser protagonista quanto Deus me sentar na cadeira dos réus e passar toda minha história em seu cineminha particular. Caso estejamos juntos Ele irá gostar de ver nosso último encontro pois, mesmo contrário aos seus princípios – que criou o sexo com a única função de reprodução, o todo-poderoso se renderá a engenhosidade do ser humano de recriar objetos, atos e emoções, a ponto de transformar gemidos e suor em prova constante de amor. Mais que uma parceira de cama, que perde a validade quanto o dia vem, ela foi cúmplice e adversária, alternando seus coringas feitos de sorrisos, ironias e afetos, jogados numa cama apertada abaixo da janela que emoldurava uma favela carioca na plenitude de sua beleza noturna. Assim como nesta noite que aperta minha jugular sem piedade, eu também abri os olhos quando dormíamos e tentei em vão ler os recados de seu quadro desorganizado logo em frente, e deveria ter entendido ali a minha proporção minúscula no seu destino, pois no mar de papeizinhos coloridos não havia qualquer citação sobre mim. Burro que fui, no êxtase provocado pela imagem mais bonita que já vi na vida – uma mulher nua adormecida em meu peito, não fui capaz de entender que seu ressonar não eram espasmos de euforia pela conquista e sim suspiros do dever cumprido.
Foram quatro estações, um punhado de encontros, algumas dezenas de beijos e um, ou no máximo dois orgasmos, porém a distância tornava cada oportunidade de estar junto em algo inédito que devorávamos com a mesma ansiedade e lamento das últimas pipocas da tigela. A cada vez que me despedia sabia o quanto eu demoraria a vê-la mesmo tendo celebrado horas atrás uma cumplicidade gritante. Na minha intimidade eu fingia entender seu labirinto sentimental e conseguia conviver em silêncio, batendo cabeça em suas paredes até que uma coincidência ao dobrar na esquina ou esbarrar no bloco nos faria achar o rumo novamente. Foi lá, entre seus corredores intermináveis, que escondi um homem que não sou mais. Com ela, só com ela, morava a minha última esperança de voltar a ser alguém apaixonado e correto, que freqüentava roda de amigos e casa de parentes, passando finais de semana redescobrindo programas de TV, pratos de comida e novas marquinhas na pele, numa paz interior que só quem encontrou o amor da sua vida é capaz de ter.
Sem a companhia das estrelinhas de papel fluorescentes que se renderam ao noturno da casa, corri com as mãos o entorno da TV até achar o celular que iluminou meu rosto amassado e revelou, no fichário virtual, seu último eco numa mensagem escrita sem emoção. “Seja feliz com ele”.Respondi.
Ainda no meu casulo de escuridão, sem mexer as pupilas, revirei quinquilharias em mochilas e armários na necessidade de tangibilizar sua pontual presença na minha vida, mas nada restou, apenas algumas impessoais notas fiscais. Todo aquele sentimento, que pelo menos neste momento de abandono de si, eu considerava o mais valioso da minha breve história de amante, estava sob a vigilância das traças do esquecimento que já começaram a roer as datas e nomes. O contrário de sua imagem. Esta será imaculada, carimbada e catalogada nos arquivos da eternidade particular, mesmo que só retorne a ser protagonista quanto Deus me sentar na cadeira dos réus e passar toda minha história em seu cineminha particular. Caso estejamos juntos Ele irá gostar de ver nosso último encontro pois, mesmo contrário aos seus princípios – que criou o sexo com a única função de reprodução, o todo-poderoso se renderá a engenhosidade do ser humano de recriar objetos, atos e emoções, a ponto de transformar gemidos e suor em prova constante de amor. Mais que uma parceira de cama, que perde a validade quanto o dia vem, ela foi cúmplice e adversária, alternando seus coringas feitos de sorrisos, ironias e afetos, jogados numa cama apertada abaixo da janela que emoldurava uma favela carioca na plenitude de sua beleza noturna. Assim como nesta noite que aperta minha jugular sem piedade, eu também abri os olhos quando dormíamos e tentei em vão ler os recados de seu quadro desorganizado logo em frente, e deveria ter entendido ali a minha proporção minúscula no seu destino, pois no mar de papeizinhos coloridos não havia qualquer citação sobre mim. Burro que fui, no êxtase provocado pela imagem mais bonita que já vi na vida – uma mulher nua adormecida em meu peito, não fui capaz de entender que seu ressonar não eram espasmos de euforia pela conquista e sim suspiros do dever cumprido.
Foram quatro estações, um punhado de encontros, algumas dezenas de beijos e um, ou no máximo dois orgasmos, porém a distância tornava cada oportunidade de estar junto em algo inédito que devorávamos com a mesma ansiedade e lamento das últimas pipocas da tigela. A cada vez que me despedia sabia o quanto eu demoraria a vê-la mesmo tendo celebrado horas atrás uma cumplicidade gritante. Na minha intimidade eu fingia entender seu labirinto sentimental e conseguia conviver em silêncio, batendo cabeça em suas paredes até que uma coincidência ao dobrar na esquina ou esbarrar no bloco nos faria achar o rumo novamente. Foi lá, entre seus corredores intermináveis, que escondi um homem que não sou mais. Com ela, só com ela, morava a minha última esperança de voltar a ser alguém apaixonado e correto, que freqüentava roda de amigos e casa de parentes, passando finais de semana redescobrindo programas de TV, pratos de comida e novas marquinhas na pele, numa paz interior que só quem encontrou o amor da sua vida é capaz de ter.
Sem a companhia das estrelinhas de papel fluorescentes que se renderam ao noturno da casa, corri com as mãos o entorno da TV até achar o celular que iluminou meu rosto amassado e revelou, no fichário virtual, seu último eco numa mensagem escrita sem emoção. “Seja feliz com ele”.Respondi.
quinta-feira, 29 de novembro de 2007
DIAS CASUAIS
Encontro não marcado também pode acontecer
Janela do destino que se abre com o vento dos temporais.
Foi bom te conhecer.
Ligações de madrugada nem sempre são tão más
Se tiverem acompanhadas por saudade disfarçada de preocupação.
Vamos dormir em paz.
Reconto minhas histórias, troco palavras de lugar
Ponho aspas nas mentiras pra não te ferir, só pra te poupar.
Meu passado é de ninguém.
Que os dias que nos restam sejam sempre casuais
de carinhos mais sinceros, momentos divertidos e conquistas pontuais.
Isso sim é amor...
Sentir. É mais que uma aposta.
Não é dizer só que gosta.
Sentir, é outra parada.
É saber que para ser feliz é preciso ter você e mais nada.
Janela do destino que se abre com o vento dos temporais.
Foi bom te conhecer.
Ligações de madrugada nem sempre são tão más
Se tiverem acompanhadas por saudade disfarçada de preocupação.
Vamos dormir em paz.
Reconto minhas histórias, troco palavras de lugar
Ponho aspas nas mentiras pra não te ferir, só pra te poupar.
Meu passado é de ninguém.
Que os dias que nos restam sejam sempre casuais
de carinhos mais sinceros, momentos divertidos e conquistas pontuais.
Isso sim é amor...
Sentir. É mais que uma aposta.
Não é dizer só que gosta.
Sentir, é outra parada.
É saber que para ser feliz é preciso ter você e mais nada.
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
ALMA DE SUNGA
Péssima idéia não ter bebido nada antes de começar. Agora estou aqui, fugindo dos olhos que me fuzilam, me cobram a responsabilidade de estar à frente destes cavaleiros que esperam a ordem para atacar. O tempo que demoram para afinar suas armas é interminável, irritante e preciso conter a ansiedade afinal, hoje, como todos os dias, enfrento o mundo com a voz e uma pandeirola na mão.
O silêncio que antecede nossa primeira música parece alagar o espaço, umedecendo as costas e as mãos, e, assim como na infância, fecho os olhos e fico de costas para este mar, aguardando o golpe misericordioso da onda fresca e sonora que irá me jogar sem rumo na direção do público que assiste. Tec.Tec.Tec. É o som que mais gosto de ouvir ultimamente. Quando lá detrás Xande dá a ordem para começar, estalando suas baquetas, meu coração se precipita, entra no ritmo, dando a pista de como meu organismo deve funcionar pelas próximas horas. Penso “agora fudeu”.
Canto as primeiras palavras no microfone, repetindo mecanicamente as sílabas para, na intimidade, experimentar o próprio som da minha voz pela primeira vez na noite, repetida e potencializada, e me sinto como uma criança recém-nascida assustada ao ouvir seu próprio choro cheio de fôlego. Neste momento que aguardo a chegada daquele sujeito que fuma, com o rosto escondido na sombra do chapéu, que me chamará a sua mesa e dirá em alto e bom som para todos que sou uma farsa e minhas habilidades vocais se limitam a variações nasais de pato no cio. Só assim sairia das costas esta responsabilidade, mais pesada que a caixa de retorno e de voz, que carregamos entre resmungos e acusações de comodismo a cada show. Enquanto o homem não vem, sinalizo em gesto de jogador de futebol americano, por trás do corpo, longe dos olhares curiosos, meu descontentamento com a regulagem do reverbe, do delay, do ganho, ou de qualquer outra coisa que um dia destes aprendi o nome.
A neurastemia continua, e se mexe um botão de um lado, se vira a caixa de outro, no incômodo de pacientes na sala de espera, que dura até as primeiras palmas. A partir delas me vendo barato ao público, que oferece sorrisos a este stripper que precisa despir toda sua timidez sob luzes e lentes deixando a alma exposta, de sunga.
Nem nos dias adolescentes de verão que abdiquei de amigas cheias de espinha e tesão para ficar trancado com o violão e algumas folhas cifradas no quarto, cheguei a sonhar em ser vocalista de uma banda, no entanto, hoje acho difícil viver sem ela. Sinto saudade destes cinco estranhos que invadem minha varanda para guardar os instrumentos, que me tiram do colo perfumado de uma mulher tatuada para encarar ensaios domingueiros numa casa que o teto cospe poeira avisando que está prestes a cair. Possivelmente se não tivéssemos tal compromisso entraríamos todos em algum elevador da vida e nem lembraríamos da gentileza de desejar um bom-dia na saída, tamanha é a nossa diferença de personalidade, porém, o único fio de lã que nos conduz ao mesmo objetivo transforma bárbaros de instrumento na mão em lordes corteses que esperam a entrada de um solo, a virada de uma bateria.
Estamos perto do fim do set e me sinto levemente embriagado com o coquetel de holofotes e acordes. O público, sempre impassível antes das primeiras garrafas de cerveja, teve mesmo tardia, uma reação espontânea e animada. Depois de tantas brigas, de tanta disputa entre MPB, rock dos anos 80 e a pauleira hard core, entendi, mais uma vez que diversidade enriquece e a unanimidade emburrece. Fizemos um som digno, criativo, particular, e respondemos a expectativa de uma estréia que faz o estômago roncar de vontade. Agradeço, apresento a todos, digo o meu nome rapidamente e os deixo finalmente se deliciar com as harmonias antes de devolver o silêncio que pegamos emprestado no início da noite. Mas ainda de costas ouço seus cochichos e uma nova canção começa. Sem uma palavra a banda diz “Aru não pára não”.
O silêncio que antecede nossa primeira música parece alagar o espaço, umedecendo as costas e as mãos, e, assim como na infância, fecho os olhos e fico de costas para este mar, aguardando o golpe misericordioso da onda fresca e sonora que irá me jogar sem rumo na direção do público que assiste. Tec.Tec.Tec. É o som que mais gosto de ouvir ultimamente. Quando lá detrás Xande dá a ordem para começar, estalando suas baquetas, meu coração se precipita, entra no ritmo, dando a pista de como meu organismo deve funcionar pelas próximas horas. Penso “agora fudeu”.
Canto as primeiras palavras no microfone, repetindo mecanicamente as sílabas para, na intimidade, experimentar o próprio som da minha voz pela primeira vez na noite, repetida e potencializada, e me sinto como uma criança recém-nascida assustada ao ouvir seu próprio choro cheio de fôlego. Neste momento que aguardo a chegada daquele sujeito que fuma, com o rosto escondido na sombra do chapéu, que me chamará a sua mesa e dirá em alto e bom som para todos que sou uma farsa e minhas habilidades vocais se limitam a variações nasais de pato no cio. Só assim sairia das costas esta responsabilidade, mais pesada que a caixa de retorno e de voz, que carregamos entre resmungos e acusações de comodismo a cada show. Enquanto o homem não vem, sinalizo em gesto de jogador de futebol americano, por trás do corpo, longe dos olhares curiosos, meu descontentamento com a regulagem do reverbe, do delay, do ganho, ou de qualquer outra coisa que um dia destes aprendi o nome.
A neurastemia continua, e se mexe um botão de um lado, se vira a caixa de outro, no incômodo de pacientes na sala de espera, que dura até as primeiras palmas. A partir delas me vendo barato ao público, que oferece sorrisos a este stripper que precisa despir toda sua timidez sob luzes e lentes deixando a alma exposta, de sunga.
Nem nos dias adolescentes de verão que abdiquei de amigas cheias de espinha e tesão para ficar trancado com o violão e algumas folhas cifradas no quarto, cheguei a sonhar em ser vocalista de uma banda, no entanto, hoje acho difícil viver sem ela. Sinto saudade destes cinco estranhos que invadem minha varanda para guardar os instrumentos, que me tiram do colo perfumado de uma mulher tatuada para encarar ensaios domingueiros numa casa que o teto cospe poeira avisando que está prestes a cair. Possivelmente se não tivéssemos tal compromisso entraríamos todos em algum elevador da vida e nem lembraríamos da gentileza de desejar um bom-dia na saída, tamanha é a nossa diferença de personalidade, porém, o único fio de lã que nos conduz ao mesmo objetivo transforma bárbaros de instrumento na mão em lordes corteses que esperam a entrada de um solo, a virada de uma bateria.
Estamos perto do fim do set e me sinto levemente embriagado com o coquetel de holofotes e acordes. O público, sempre impassível antes das primeiras garrafas de cerveja, teve mesmo tardia, uma reação espontânea e animada. Depois de tantas brigas, de tanta disputa entre MPB, rock dos anos 80 e a pauleira hard core, entendi, mais uma vez que diversidade enriquece e a unanimidade emburrece. Fizemos um som digno, criativo, particular, e respondemos a expectativa de uma estréia que faz o estômago roncar de vontade. Agradeço, apresento a todos, digo o meu nome rapidamente e os deixo finalmente se deliciar com as harmonias antes de devolver o silêncio que pegamos emprestado no início da noite. Mas ainda de costas ouço seus cochichos e uma nova canção começa. Sem uma palavra a banda diz “Aru não pára não”.
quinta-feira, 8 de novembro de 2007
CAIXINHA DE SURPRESAS
Por Héllen Dutra
Sábado à noite, iluminado pelo pratear da lua cheia no céu, convidativo ao prazer. Dá aquela vontade de sair, tomar um chopp, reunir os amigos, dançar a noite inteira, fazer qualquer coisa que permita sentir o pulsar da vida. Com o controle remoto, rodeio canal a canal da tv aberta, da tv fechada, a diferença é nenhuma, em todos eles a programação é a mesma. Passo por filmes que parecem bons, apesar de estarem sempre pela metade, novelas que não se acompanham durante a semana, mas que é possível compreender a trama assistindo a um único capítulo, e programas trash, do tipo mais Silvio Santos, impossível. É, parece que será mais um sábado perdido. Eis que acende o celular e faz aquele barulhinho delicioso. (Só quem já perdeu sábados inteiros compartilha do prazer deste momento) Oba! É convite, alguém lembrou de mim e antes mesmo de atender eu já vou correndo trocar de roupa, passar a maquiagem, encontrar a chave do carro, contabilizar a micharia que me resta para diversão... ao abrir o aparelho, a constatação de que se trata de uma mensagem e não de uma ligação, anuncia um possível desapontamento, que não demora para que se comprove. Vamos à praia amanhã? Bj Jane. Maneiro, vamos sim, mas e hoje, não vamos fazer nada? Escrevo imediatamente. A resposta demora a chegar. Ficar olhando aquele aparelhinho mudo, esperando o bendito sinal da resposta, enlouquece qualquer pessoa. Amiga, hoje tenho uma festa de família, não vai dar, mas amanhã tá de pé?
Existe alguma coisa mais terrível do que o quase? Acontecer ou não acontecer, tudo bem, mas quase acontecer é terrível, deixa um travo de decepção amargando na boca e na alma. Aproveito a caixa de entrada em aberto e apertando a tecla do celular, começo a reler as mensagens antigas.“Compra sim, depois te dou o dinheiro”; “Tá em casa? Não consigo te ligar”; “Saudades”, “Vamos sim... quando chegar, te ligo”. “Ontem foi d+, precisamos repetir em breve...” É impressionante como cada mensagem traz, com uma força quase que violenta, momentos cotidianos que por vezes até nos esquecemos de que existiram. Como por exemplo, aquele show do monobloco que, aliás, foi divertidíssimo e movimentou celulares por pelos menos três dias consecutivos: o anterior, prefigurando a organização e a compra dos ingressos – “vamos quebrar tudo no monobloco?”, “eu compro, depois tu me dá”, “te pego às 23 h.”; o dia propriamente dito, – “Caralho, ta aonde? To cansado de te esperar”, “To passando na tua rua” –; e o depois – “Agüentou ir pra pós?”
Pois é, eu não tinha me dado conta de como este aparelhinho podia guardar em sua memória eletrônica tanta história de vida: a frieza da tecnologia a serviço das calorosas relações de amizade e de amor. (O que o filósofo da pós-modernidade, Bauman, acharia disso?) Os torpedos se alicerçam num pacto cúmplice onde a presença e a ausência da palavra é fundamental, pois no espaço intervalar entre o que está escrito e a lacuna que se cria no silêncio das intenções que só os correspondentes entendem, existe um imenso universo de sensações individuais, que ficam no escrito e no que ficou por dizer. Basta ler “pegar o 260 e soltar na C&A.”, para lembrar daquele domingo chuvoso no Méier com a Janaína que foi engraçadíssimo; ou ainda ler “põe o vinho pra gelar!”, (seguindo de uma carinha de animação) para lembrar do coração apertado, ansioso pra contar um segredo para o Ralph. E apenas um “saiu”, vago e reticente, enviado pela amiga no meio do expediente, é capaz de te fazer dar saltos de alegria. Poxa! É aquela promoção que ela tanto esperava... saiu... e ela quis dividir este momento único comigo. Me impressiono com o quanto de intimidade estes pequenos escritos escondem.
Fico a pensar em como os amigos se entendem perfeitamente, em como as palavras são insuficientes para expressar momentos, em como o vazio é significativo, em como é bom ter vivido problemas, pois eles nos dão a possibilidade de receber verdadeiras declarações de amor em ônibus, na sala de aula, no mercado, em qualquer lugar, que se tenha um celular com créditos. Ler um “to do seu lado, te ajudo a vender bala no trem”, enviado pelo Aru, no momento de desespero em que se jogou o mestrado pro alto, acalma o coração; assim como ler um “vamos pra Lapa hoje?”, anima a noite porvir; ou ainda um simples “eu te amo”, da irmã que acaba de compartilhar com você a comprar de seu primeiro carro, pode te fazer disfarçar as lágrimas em pleno calçadão de Madureira. E ainda quantas lembranças amorosas guardam o verbo “cheguei”, enviado de madrugada para o amante? Como um mosaico, a caixinha de entrada do celular é capaz de contar o mais essencial da vida de cada um de nós, guardada nesta memória que ninguém duvida que seja quase humana.
Sábado à noite, iluminado pelo pratear da lua cheia no céu, convidativo ao prazer. Dá aquela vontade de sair, tomar um chopp, reunir os amigos, dançar a noite inteira, fazer qualquer coisa que permita sentir o pulsar da vida. Com o controle remoto, rodeio canal a canal da tv aberta, da tv fechada, a diferença é nenhuma, em todos eles a programação é a mesma. Passo por filmes que parecem bons, apesar de estarem sempre pela metade, novelas que não se acompanham durante a semana, mas que é possível compreender a trama assistindo a um único capítulo, e programas trash, do tipo mais Silvio Santos, impossível. É, parece que será mais um sábado perdido. Eis que acende o celular e faz aquele barulhinho delicioso. (Só quem já perdeu sábados inteiros compartilha do prazer deste momento) Oba! É convite, alguém lembrou de mim e antes mesmo de atender eu já vou correndo trocar de roupa, passar a maquiagem, encontrar a chave do carro, contabilizar a micharia que me resta para diversão... ao abrir o aparelho, a constatação de que se trata de uma mensagem e não de uma ligação, anuncia um possível desapontamento, que não demora para que se comprove. Vamos à praia amanhã? Bj Jane. Maneiro, vamos sim, mas e hoje, não vamos fazer nada? Escrevo imediatamente. A resposta demora a chegar. Ficar olhando aquele aparelhinho mudo, esperando o bendito sinal da resposta, enlouquece qualquer pessoa. Amiga, hoje tenho uma festa de família, não vai dar, mas amanhã tá de pé?
Existe alguma coisa mais terrível do que o quase? Acontecer ou não acontecer, tudo bem, mas quase acontecer é terrível, deixa um travo de decepção amargando na boca e na alma. Aproveito a caixa de entrada em aberto e apertando a tecla do celular, começo a reler as mensagens antigas.“Compra sim, depois te dou o dinheiro”; “Tá em casa? Não consigo te ligar”; “Saudades”, “Vamos sim... quando chegar, te ligo”. “Ontem foi d+, precisamos repetir em breve...” É impressionante como cada mensagem traz, com uma força quase que violenta, momentos cotidianos que por vezes até nos esquecemos de que existiram. Como por exemplo, aquele show do monobloco que, aliás, foi divertidíssimo e movimentou celulares por pelos menos três dias consecutivos: o anterior, prefigurando a organização e a compra dos ingressos – “vamos quebrar tudo no monobloco?”, “eu compro, depois tu me dá”, “te pego às 23 h.”; o dia propriamente dito, – “Caralho, ta aonde? To cansado de te esperar”, “To passando na tua rua” –; e o depois – “Agüentou ir pra pós?”
Pois é, eu não tinha me dado conta de como este aparelhinho podia guardar em sua memória eletrônica tanta história de vida: a frieza da tecnologia a serviço das calorosas relações de amizade e de amor. (O que o filósofo da pós-modernidade, Bauman, acharia disso?) Os torpedos se alicerçam num pacto cúmplice onde a presença e a ausência da palavra é fundamental, pois no espaço intervalar entre o que está escrito e a lacuna que se cria no silêncio das intenções que só os correspondentes entendem, existe um imenso universo de sensações individuais, que ficam no escrito e no que ficou por dizer. Basta ler “pegar o 260 e soltar na C&A.”, para lembrar daquele domingo chuvoso no Méier com a Janaína que foi engraçadíssimo; ou ainda ler “põe o vinho pra gelar!”, (seguindo de uma carinha de animação) para lembrar do coração apertado, ansioso pra contar um segredo para o Ralph. E apenas um “saiu”, vago e reticente, enviado pela amiga no meio do expediente, é capaz de te fazer dar saltos de alegria. Poxa! É aquela promoção que ela tanto esperava... saiu... e ela quis dividir este momento único comigo. Me impressiono com o quanto de intimidade estes pequenos escritos escondem.
Fico a pensar em como os amigos se entendem perfeitamente, em como as palavras são insuficientes para expressar momentos, em como o vazio é significativo, em como é bom ter vivido problemas, pois eles nos dão a possibilidade de receber verdadeiras declarações de amor em ônibus, na sala de aula, no mercado, em qualquer lugar, que se tenha um celular com créditos. Ler um “to do seu lado, te ajudo a vender bala no trem”, enviado pelo Aru, no momento de desespero em que se jogou o mestrado pro alto, acalma o coração; assim como ler um “vamos pra Lapa hoje?”, anima a noite porvir; ou ainda um simples “eu te amo”, da irmã que acaba de compartilhar com você a comprar de seu primeiro carro, pode te fazer disfarçar as lágrimas em pleno calçadão de Madureira. E ainda quantas lembranças amorosas guardam o verbo “cheguei”, enviado de madrugada para o amante? Como um mosaico, a caixinha de entrada do celular é capaz de contar o mais essencial da vida de cada um de nós, guardada nesta memória que ninguém duvida que seja quase humana.
quinta-feira, 1 de novembro de 2007
BICUDOS QUE SE BEIJAM
Quando ele disse que não tinham nada a ver, ela chorou porque sabia disso. O signo, os gostos, os valores, com o tempo tudo foi ficando diferente. A única coisa em que combinavam naquela terça-feira de carnaval, era a fantasia de cupido com asas, túnicas e flechas, que ela até desejou que fossem verdadeiras, para que o atingisse sumindo na multidão. Mas era tarde demais para agir, e lá foi ele abraçado à amigos e garrafas. Presa fácil para a diaba que cobrava pedágio de quem passasse. Deu um beijo sarrado nela, que saiu consertando o batom e recontando o vigésimo do dia. Ainda zonza, esbarrou no garçom negão estreante no carnaval depois de anos de celibato. Faziam poucos dias que havia abandonado a vida de seminarista, o que não tirou sua habilidade de tê-las de bandeja. Na verdade, quando encarou o desejo de chifre e rabo, nem teve tempo para se benzer, gostou tanto que ainda terminando a bitoca já avistou a segunda freguesa. Não tardou para ir atrás da enfermeira de shortinho que passeava com suas amigas. A estrutura frágil, de menina rica e protegida, pôde sentir pela primeira vez o tal sangue quente dos negros. Sua brancura imaculada foi explorada como nunca, e o sexo se tornou questão de tempo - mas não com ele. Girou entre os blocos, escolheu o mais bonito dos índios que desfilavam na rua principal e, os últimos minutos da virgindade ficaram na sua cabeça por muito tempo, assim como os grãos de areia embolados entre os cabelos. Não estranhou quando o índio galã saiu para mijar e não voltou pois sabia que ele procuraria outras com mais experiência. Na verdade, sexo fazia parte da sua rotina de gigolô e, aquele dia era o único que não cobrava. O ritmo de trabalho viciou o homem e, mesmo somando carícias, beijos e chupões ainda faltava caçar alguém. O índio a achou quando foi comprar cachaça no quiosque, bêbada, atrás do balcão. A galega, mulher do português, afogava sua frustração de estar trabalhando enquanto o marido se perdia por aí e nem percebeu que era uma desculpa, daquele Deus Tupã, a reclamação sobre a porta do banheiro. Foi empurrada para dentro, derrubando o cesto de papel higiênico e sua postura de mulher casada. Deixou ser explorada até o ponto certo que garantiria a volta dele por muitas vezes. Enquanto isso, foi saciando seus pequenos desejos e, ali mesmo, dez minutos depois, na frente dos clientes, a lusitana agarrou o cabeludo vestido de Tarzan e, com direito a pegadinha no cipó e tudo, o descartou em seguida. Mal sabia o quanto era carente aquele homem, retirado em casa quase todo o ano, vivendo sem qualquer vício urbano, aliás tinha apenas um, o Flamengo era sua maior alegria, tanto que havia andado atrás das jogadoras ninfetas por toda noite. A única a lhe dar bola era a baixinha botafoguense que o surpreendeu na primeira oportunidade, com delicadeza e inteligência. Logo, o escudo rubro negro tatuado no seu peito, beijou a estrela solitária do uniforme, quando se abraçaram pela primeira vez. Namoraram anos, se casaram e o Tarzan Flamenguista, até hoje não sabe que nos únicos segundos em que esteve distante do amor da sua vida para comprar cachorro quente, alguém lhe roubou um beijo, alguém com três vezes mais altura e nem a metade da sua paixão. Um Sujeito magricelo, que combinava com a fantasia de morte, tinha dedos de juntas grossas e carinhos rápidos que deixaram a menina imóvel. Sumiu pela sombra do trio elétrico todo bobo, pois nunca, nos seus 15 anos, havia beijado alguém. A cara maquiada ajudou a disfarçar o excesso de espinha, preencher a falta de barba e esconder seus olhos curiosos e infantis. Mesmo tomando bronca da mãe por ultrapassar o horário marcado, tinha prometido pra ele mesmo que tudo seria diferente do ano passado, quando era muitos centímetros menor. Tomou o caminho de casa pensativo, contando pra si as aventuras e só foi interrompido pelo próprio coração, ao ver os olhinhos molhados de um anjo. Com palavras sinceras a acolheu e recebeu um beijo lento e sôfrego de recompensa. Se distanciou encantado pelo momento, enxotado por ela que queria ficar só. Por mais que tentasse esconder, ainda era uma mulher apaixonada e, só ele a faria feliz, com suas asas desencaixadas e auréola de arame. Enquanto beijava a morte, pensou nele, e jurou ter sentido o gosto da sua boca. Tarde demais para lembranças, já tinha se convencido que a diferença era grande e que os opostos nunca se atraem.
quinta-feira, 25 de outubro de 2007
A IMAGEM DE VÊNUS
por Héllen Dutra
O vento crispava na vidraça, Rebeca percorria o salão principal, não a olhar, mas a sentir o cair da chuva, martelando na calçada de cimento. O balé das árvores lá fora dava a ela a impressão de uma dança macabra, ritmada pelo assoviar agudo da tempestade. Toda paisagem era molhada, de uma umidade doce que trazia o cheiro de manacá, impregnando os póros de uma saudade, era mais melancolia de uma planta roxinha que enfeitava a fachada da casa de vovó. Como era linda aquela arvorezinha, quando florida, alegrava todo o jardim e fazia a festa dos primos que arrancavam uma a uma as flores para presentear as primas mais jovens. Já que primos não eram irmãos e podiam namorar. Isso era o que pensava a criançada, diferentemente dos adultos que sempre espreitando a brincadeira, preocupavam-se com os beijos escondidos atrás dos rotundos troncos. Sempre era possível rolar na grama ou abrigar-se à sombra das imensas árvores que cruzavam seus galhos no ar. Era bonito ver o apoiar de um galho no outro que roçando de vez em quando as folhas, confundiam-se como uma coisa só. Havia várias trilhas cortando o jardim, caminhos tortos, irregulares que sempre nos levavam a lugares iguais, mas ao mesmo tempo diferentes; caminhos que convidavam a deliciosa tarefa de perder-se e achar-se a qualquer hora do dia.
Ao ocasional toque no braço, Rebeca voltou a observar o quadro de Velázquez, aquela imagem de Vênus, a deusa do amor e da sensualidade, mirando-se no espelho quebrou em fragmentos eternos a memória da infância. Como o estridente barulho do despertador cessa a noite tranqüila de sono, a realidade intimou a volta. A imagem das curvas sinuosas, das costas alvas e brilhantes, das nádegas de uma perfeição algébrica da deusa grega, levaram Rebeca a querer tatear os becos íntimos de seu próprio corpo. Ao primeiro toque, suas mãos não ousaram prosseguir, a sobressalência do rosto enrugado era desanimadora. Com a língua provou, nas comissuras dos lábios, o amargo do passar do tempo. Continuou a caminhar e se deparou com um espelho imenso que parecia multiplicar em mil vezes sua imagem. Agora, não mais a Afrodite, mas apenas ela, Rebeca, a olhar-se no espelho. Olhou, olhou, olhou de novo. Em que milímetro de seu corpo estaria aquela menina solta, alegre da vida? Aquela moça rendida a amores? Não achava vestígio algum, nem de longe. Seu olhar percorreu o cabelo acaju, as maçãs do rosto, se reteve um pouco mais no pescoço e escorregou até a banal silhueta criada pela blusa social preta e a saia jeans. Parecia outra ou era outra? Aquela imagem a repugnava. Como uma estranha, pegou o casaco, o guarda-chuva, olhou-se uma vez mais e caminhou resignada em direção à saída. Fora da galeria, seguiu reto, dobrou a esquerda, parou em frente ao sinal de trânsito e esperou o vermelho virar verde. Lembrou ainda que não tinha descongelado o frango e, por isso, o jantar daria mais trabalho para ser preparado. Talvez fosse melhor ir ao mercado, comprar algo pronto, um enlatado qualquer, ou poderia fazer um lanche. Para que jantar? Queria mesmo era ficar ali a vagar pela rua, observando os pingos de chuva a tilintarem no asfalto.
Não agüentava mais aquele insuportável cheiro azedo de mofo que emanava de tudo em sua casa. Os móveis, testemunhas do tempo, descascavam como pele estriada de cascavel. O ranger do assoalho em ruínas denunciava cada passo que ousasse interromper o silêncio mórbido. Desde a janela impregnada de gordura humana até as teias de aranha que decoravam as paredes pardas, tudo ali lembrava abandono. O marido, mais um acessório da mobília, confundia-se com os bibelôs da estante na impassividade e na cafonice. Não se sabe se por asco ou, apenas, por impotência exitava em tocá-la. Seu corpo magro, enrugado e fedorento de mulher passada do prazo de validade, há muito não recebia o bom quente do calor de nenhum outro. Não se incomodava com isso, não precisar assistir ao espetáculo de sua flacidez generalizada era mais um prêmio do que um fardo.
Mesmo ao verdear do semáforo, Rebeca permanecia estática, inebriada pelo tom limão florescente que criava uma iluminação toda diferente nas poças de água, quando foi surpreendida por um gelado na nuca e um sussurro no ouvido. Segue sem olhar pra trás, foi a ordem que ela imediatamente atendeu. O coração aos pulos, quase arrebentava as veias que recebiam o forte bombear de sangue nervoso, a respiração ofegante fazia os seios arquearem pra cima e pra baixo na blusa molhada, num ritmo quase latino. Seguiu por uma viela e foi atirada contra uma parede pichada, num beco escuro que ela nem sabia que existia naquela cidade. Uma mão com violência arrebentou todos os botões de sua blusa, mostrando o velho sutiã bege. Com uma voracidade de animal no cio, sentiu o sugar no bico do peito que começava a irrijecer-se não mais pelo frio, do que pelo toque da língua molhada e quente que subia e descia numa fricção louca. Fez tenção de gritar, tentar correr, pedir ajuda, mas um puxão de cabelo e um soco a fizeram calar.
Caída no chão, arrastou-se o que pôde, mas a força do outro a impedia de qualquer fuga. Molhada, sentiu o entrar violento que fendia sua carne, a principio relutante, mas que, ao contato abrasador da pele do outro, relaxou desejosa. Num preenchimento quase que total, sentiu agulhas picarem todos os espaços de seu corpo, criando uma dormência que paralisava a alma. Foi envolvida por um cheiro acre de cachaça misturada com perfume barato e suor operário – cheiro de macho. Abriu os olhos e contemplou a barba por fazer e a achou bonita tanto quanto à cicatriz do braço direito. A cada arremetida, sentia o abrir de seu corpo exatamente na mesma proporção da ferida em seu ventre, que rasgado pelo canivete, fazia jorrar um sangue grosso, fervente, vermelho-negro que pintava sensualmente suas coxas. O cheiro de manacá a embriagou, quase como um ópio, ficou de novo menina, deitada na relva fresca do jardim de vovó, olhando a infinitude azul do céu. Na última investida do membro, que coincidiu com a facada fatal, foi toda ela banhada por um líquido viscoso que encharcava da cintura para baixo. Experimentou o vazio da saída. Ainda teve tempo para encurvar um pouco a cabeça para o lado na tentativa de gravar na memória a última imagem daquele homem, deparou-se, no entanto, com seu reflexo na poça d’água, como um espelho, fixou o olhar já turvado e confuso pela perda de sangue e pode ainda ver a imagem de Vênus.
O vento crispava na vidraça, Rebeca percorria o salão principal, não a olhar, mas a sentir o cair da chuva, martelando na calçada de cimento. O balé das árvores lá fora dava a ela a impressão de uma dança macabra, ritmada pelo assoviar agudo da tempestade. Toda paisagem era molhada, de uma umidade doce que trazia o cheiro de manacá, impregnando os póros de uma saudade, era mais melancolia de uma planta roxinha que enfeitava a fachada da casa de vovó. Como era linda aquela arvorezinha, quando florida, alegrava todo o jardim e fazia a festa dos primos que arrancavam uma a uma as flores para presentear as primas mais jovens. Já que primos não eram irmãos e podiam namorar. Isso era o que pensava a criançada, diferentemente dos adultos que sempre espreitando a brincadeira, preocupavam-se com os beijos escondidos atrás dos rotundos troncos. Sempre era possível rolar na grama ou abrigar-se à sombra das imensas árvores que cruzavam seus galhos no ar. Era bonito ver o apoiar de um galho no outro que roçando de vez em quando as folhas, confundiam-se como uma coisa só. Havia várias trilhas cortando o jardim, caminhos tortos, irregulares que sempre nos levavam a lugares iguais, mas ao mesmo tempo diferentes; caminhos que convidavam a deliciosa tarefa de perder-se e achar-se a qualquer hora do dia.
Ao ocasional toque no braço, Rebeca voltou a observar o quadro de Velázquez, aquela imagem de Vênus, a deusa do amor e da sensualidade, mirando-se no espelho quebrou em fragmentos eternos a memória da infância. Como o estridente barulho do despertador cessa a noite tranqüila de sono, a realidade intimou a volta. A imagem das curvas sinuosas, das costas alvas e brilhantes, das nádegas de uma perfeição algébrica da deusa grega, levaram Rebeca a querer tatear os becos íntimos de seu próprio corpo. Ao primeiro toque, suas mãos não ousaram prosseguir, a sobressalência do rosto enrugado era desanimadora. Com a língua provou, nas comissuras dos lábios, o amargo do passar do tempo. Continuou a caminhar e se deparou com um espelho imenso que parecia multiplicar em mil vezes sua imagem. Agora, não mais a Afrodite, mas apenas ela, Rebeca, a olhar-se no espelho. Olhou, olhou, olhou de novo. Em que milímetro de seu corpo estaria aquela menina solta, alegre da vida? Aquela moça rendida a amores? Não achava vestígio algum, nem de longe. Seu olhar percorreu o cabelo acaju, as maçãs do rosto, se reteve um pouco mais no pescoço e escorregou até a banal silhueta criada pela blusa social preta e a saia jeans. Parecia outra ou era outra? Aquela imagem a repugnava. Como uma estranha, pegou o casaco, o guarda-chuva, olhou-se uma vez mais e caminhou resignada em direção à saída. Fora da galeria, seguiu reto, dobrou a esquerda, parou em frente ao sinal de trânsito e esperou o vermelho virar verde. Lembrou ainda que não tinha descongelado o frango e, por isso, o jantar daria mais trabalho para ser preparado. Talvez fosse melhor ir ao mercado, comprar algo pronto, um enlatado qualquer, ou poderia fazer um lanche. Para que jantar? Queria mesmo era ficar ali a vagar pela rua, observando os pingos de chuva a tilintarem no asfalto.
Não agüentava mais aquele insuportável cheiro azedo de mofo que emanava de tudo em sua casa. Os móveis, testemunhas do tempo, descascavam como pele estriada de cascavel. O ranger do assoalho em ruínas denunciava cada passo que ousasse interromper o silêncio mórbido. Desde a janela impregnada de gordura humana até as teias de aranha que decoravam as paredes pardas, tudo ali lembrava abandono. O marido, mais um acessório da mobília, confundia-se com os bibelôs da estante na impassividade e na cafonice. Não se sabe se por asco ou, apenas, por impotência exitava em tocá-la. Seu corpo magro, enrugado e fedorento de mulher passada do prazo de validade, há muito não recebia o bom quente do calor de nenhum outro. Não se incomodava com isso, não precisar assistir ao espetáculo de sua flacidez generalizada era mais um prêmio do que um fardo.
Mesmo ao verdear do semáforo, Rebeca permanecia estática, inebriada pelo tom limão florescente que criava uma iluminação toda diferente nas poças de água, quando foi surpreendida por um gelado na nuca e um sussurro no ouvido. Segue sem olhar pra trás, foi a ordem que ela imediatamente atendeu. O coração aos pulos, quase arrebentava as veias que recebiam o forte bombear de sangue nervoso, a respiração ofegante fazia os seios arquearem pra cima e pra baixo na blusa molhada, num ritmo quase latino. Seguiu por uma viela e foi atirada contra uma parede pichada, num beco escuro que ela nem sabia que existia naquela cidade. Uma mão com violência arrebentou todos os botões de sua blusa, mostrando o velho sutiã bege. Com uma voracidade de animal no cio, sentiu o sugar no bico do peito que começava a irrijecer-se não mais pelo frio, do que pelo toque da língua molhada e quente que subia e descia numa fricção louca. Fez tenção de gritar, tentar correr, pedir ajuda, mas um puxão de cabelo e um soco a fizeram calar.
Caída no chão, arrastou-se o que pôde, mas a força do outro a impedia de qualquer fuga. Molhada, sentiu o entrar violento que fendia sua carne, a principio relutante, mas que, ao contato abrasador da pele do outro, relaxou desejosa. Num preenchimento quase que total, sentiu agulhas picarem todos os espaços de seu corpo, criando uma dormência que paralisava a alma. Foi envolvida por um cheiro acre de cachaça misturada com perfume barato e suor operário – cheiro de macho. Abriu os olhos e contemplou a barba por fazer e a achou bonita tanto quanto à cicatriz do braço direito. A cada arremetida, sentia o abrir de seu corpo exatamente na mesma proporção da ferida em seu ventre, que rasgado pelo canivete, fazia jorrar um sangue grosso, fervente, vermelho-negro que pintava sensualmente suas coxas. O cheiro de manacá a embriagou, quase como um ópio, ficou de novo menina, deitada na relva fresca do jardim de vovó, olhando a infinitude azul do céu. Na última investida do membro, que coincidiu com a facada fatal, foi toda ela banhada por um líquido viscoso que encharcava da cintura para baixo. Experimentou o vazio da saída. Ainda teve tempo para encurvar um pouco a cabeça para o lado na tentativa de gravar na memória a última imagem daquele homem, deparou-se, no entanto, com seu reflexo na poça d’água, como um espelho, fixou o olhar já turvado e confuso pela perda de sangue e pode ainda ver a imagem de Vênus.
quinta-feira, 18 de outubro de 2007
O SÓTÃO DE NINA
Nina nunca teve gato, nem cachorro nem peixinho. Mas teve marido, que considerava seu melhor companheiro até que o descobriu chumbado ao corpo de outra, numa cama suja qualquer, surpreendido no meio do papai-mamãe, cujo rosto da dona ninguém jamais voltou a ver, tamanho foi o estrago feito pelas balas do revólver de seu amante ciumento. Para Nina, sobraram além da notícia impressa no jornal popular e uma pensão micha de cabo do exército reformado, o arrependimento de não ter filhos com ele, e agora, em seus quase cinqüenta, com mais ninguém.
É muito difícil para a mulher que entrega seu destino na mão de um homem, reencontrá-lo novamente no meio dos escombros de um falecimento. A casa e rotina construída por ele eram as únicas coisas que Nina tinha e tratou de preservá-las. Repetia a arrumação das roupas, as marcas de shampoo e os horários de evacuar, como se pudesse guardar dentro da caixa de sapato o eco de suas ordens. Durante três anos, oito meses e dois dias foi assim, até que Deus resolveu mostrar para Nina que somente Ele podia controlar o tempo e as coisas e mandou a natureza fazer-lhe uma visita.
Deitada sob a manta azul quadriculada, de olhos arregalados mirando o lustre do quarto que pendia do teto como um brinco gigante no meio do breu, a senhora sentia o pulsar do seu sangue cutucar-lhe os tímpanos, tamanho foi o susto quando ouviu barulhos no telhado. Sua primeira impressão foram passos de um ladrão estabanado, mas a intermitência do ruído e o agudo estridente não deixavam dúvida: tinha uma ratazana no sótão.
Nina sempre foi pobre, mas como única filha de uma leva de rapazes, recebeu tratamento de condessa, naquela época resumido a um pouco mais que presentes só para ela e um quarto com detalhes rosas e bonecas de olhos de botão. Nunca fora educada a ter atitude, pelo contrário, sua mãe cansava de repetir-lhe que a mulher na sociedade nunca deveria destacar-se mais que o homem. Por isso, aquela mulher solitária, prostrada em uma cama de ferro, com olhos arregalados como dois camafeus, simplesmente ignorou as evidências do bicho asqueroso no telhado, assim como fez com o batom no colarinho e o cheiro de conhaque barato no ronco do seu marido. Desta vez, porém, não havia amantes ciumentos em seu sótão e a ratazana parecia cada vez mais à vontade em sua nova casa. Sapateava com as unhas afiadas pelo forro de madeira a ponto de vazar-lhe poeira pelas juntas, que desciam do teto como a areia escoa pelas ampulhetas, sujando os bibelôs da cama. Também arrastava seus alimentos encarniçados durante o dia lá pra cima, tornando as madrugadas de calor pestilentas em qualquer cômodo.
Assim como os calouros que moram nas repúblicas precisam se ajeitar às novas regras de convívio, Nina foi abrindo mão dos prazeres que tinha perante a ameaça indestrutível no telhado. Sem seus hábitos, último dos quesitos que lhe davam uma certa individualidade, a moça anulou-se completamente, pois, se existia algo mais impenetrável que a rotina conservada após a viuvez, era seu papel de vítima indefesa praticado por toda a vida, com voz fraquinha, cor pálida e sorriso sem firmeza em qualquer fotografia. As orações, as 12 horas bem dormidas e a esperança diária de sonhar com as mãos quentes do seu homem entre o ventre a coberta foram substituídas por calmantes, antes cortados com a faca, agora mastigados como chicletes. A limpeza da casa, indiferente frente ao futum que o bicho deixava, foi substituída pelo spray desodorizador de ambientes tornando o ar tão grosso que era difícil entrar pelas narinas. O sol também foi expulso da casa, graças ao papel pardo colado nos vidros que impediam o despertar prematuro do sono quando este finalmente chegava. Nina não dormia mais no quarto, mas em qualquer lugar que pudesse recostar. A falta de pudor, que temos mais pelos outros do que por nós mesmos, fazia da moça um maltrapilho vestido apenas com pijamas velhos todo o tempo, jantando e almoçando enlatados que nem percebia estar fora da validade, por estes não exprimirem nem cheiro nem gosto.
A maior repugnância que poderia existir naquela casa de fundos tão igual a qualquer outra casa de fundos em qualquer bairro de qualquer periferia do mundo, não morava no sótão da casa de Nina, mas sim dentro de algum cômodo escuro de sua consciência, pois, durante toda a existência, não percebeu os andares de sua personalidade, a bipolaridade de seus sentimentos. Ao mesmo tempo que sentia um ódio colérico pelo animal, por atrapalhar seus dias iguais, cagando e roendo seu vestido de noiva e outra lembranças que entocou no local, sentia gratidão por ele, a quem pôde novamente entregar as rédeas de sua vida.
Nina despediu-se do mundo no dia do 5o aniversário de falecimento de seu marido, dando a ela o falso status de mulher que morreu por amar demais. Indiferente, a ratazana teve filhotes e seguiu seu rumo, instintivamente.
É muito difícil para a mulher que entrega seu destino na mão de um homem, reencontrá-lo novamente no meio dos escombros de um falecimento. A casa e rotina construída por ele eram as únicas coisas que Nina tinha e tratou de preservá-las. Repetia a arrumação das roupas, as marcas de shampoo e os horários de evacuar, como se pudesse guardar dentro da caixa de sapato o eco de suas ordens. Durante três anos, oito meses e dois dias foi assim, até que Deus resolveu mostrar para Nina que somente Ele podia controlar o tempo e as coisas e mandou a natureza fazer-lhe uma visita.
Deitada sob a manta azul quadriculada, de olhos arregalados mirando o lustre do quarto que pendia do teto como um brinco gigante no meio do breu, a senhora sentia o pulsar do seu sangue cutucar-lhe os tímpanos, tamanho foi o susto quando ouviu barulhos no telhado. Sua primeira impressão foram passos de um ladrão estabanado, mas a intermitência do ruído e o agudo estridente não deixavam dúvida: tinha uma ratazana no sótão.
Nina sempre foi pobre, mas como única filha de uma leva de rapazes, recebeu tratamento de condessa, naquela época resumido a um pouco mais que presentes só para ela e um quarto com detalhes rosas e bonecas de olhos de botão. Nunca fora educada a ter atitude, pelo contrário, sua mãe cansava de repetir-lhe que a mulher na sociedade nunca deveria destacar-se mais que o homem. Por isso, aquela mulher solitária, prostrada em uma cama de ferro, com olhos arregalados como dois camafeus, simplesmente ignorou as evidências do bicho asqueroso no telhado, assim como fez com o batom no colarinho e o cheiro de conhaque barato no ronco do seu marido. Desta vez, porém, não havia amantes ciumentos em seu sótão e a ratazana parecia cada vez mais à vontade em sua nova casa. Sapateava com as unhas afiadas pelo forro de madeira a ponto de vazar-lhe poeira pelas juntas, que desciam do teto como a areia escoa pelas ampulhetas, sujando os bibelôs da cama. Também arrastava seus alimentos encarniçados durante o dia lá pra cima, tornando as madrugadas de calor pestilentas em qualquer cômodo.
Assim como os calouros que moram nas repúblicas precisam se ajeitar às novas regras de convívio, Nina foi abrindo mão dos prazeres que tinha perante a ameaça indestrutível no telhado. Sem seus hábitos, último dos quesitos que lhe davam uma certa individualidade, a moça anulou-se completamente, pois, se existia algo mais impenetrável que a rotina conservada após a viuvez, era seu papel de vítima indefesa praticado por toda a vida, com voz fraquinha, cor pálida e sorriso sem firmeza em qualquer fotografia. As orações, as 12 horas bem dormidas e a esperança diária de sonhar com as mãos quentes do seu homem entre o ventre a coberta foram substituídas por calmantes, antes cortados com a faca, agora mastigados como chicletes. A limpeza da casa, indiferente frente ao futum que o bicho deixava, foi substituída pelo spray desodorizador de ambientes tornando o ar tão grosso que era difícil entrar pelas narinas. O sol também foi expulso da casa, graças ao papel pardo colado nos vidros que impediam o despertar prematuro do sono quando este finalmente chegava. Nina não dormia mais no quarto, mas em qualquer lugar que pudesse recostar. A falta de pudor, que temos mais pelos outros do que por nós mesmos, fazia da moça um maltrapilho vestido apenas com pijamas velhos todo o tempo, jantando e almoçando enlatados que nem percebia estar fora da validade, por estes não exprimirem nem cheiro nem gosto.
A maior repugnância que poderia existir naquela casa de fundos tão igual a qualquer outra casa de fundos em qualquer bairro de qualquer periferia do mundo, não morava no sótão da casa de Nina, mas sim dentro de algum cômodo escuro de sua consciência, pois, durante toda a existência, não percebeu os andares de sua personalidade, a bipolaridade de seus sentimentos. Ao mesmo tempo que sentia um ódio colérico pelo animal, por atrapalhar seus dias iguais, cagando e roendo seu vestido de noiva e outra lembranças que entocou no local, sentia gratidão por ele, a quem pôde novamente entregar as rédeas de sua vida.
Nina despediu-se do mundo no dia do 5o aniversário de falecimento de seu marido, dando a ela o falso status de mulher que morreu por amar demais. Indiferente, a ratazana teve filhotes e seguiu seu rumo, instintivamente.
quinta-feira, 11 de outubro de 2007
MICROONDAS, TALVEZ NÃO
Por Héllen Dutra
Só se passaram 91 dias do meu último adeus. Marcado por lágrimas, soluços e súplicas que não foram suficientes para reter, a areia a escorrer pelos meus dedos, o homem que, há mais ou menos nove anos, eu escolhera como o parceiro da minha vida. Desde então o que faço é me adaptar. Me adaptar a morar sozinha, me adaptar a fazer compras, equilibrar contas, cozinhar para uma pessoa só, escutar o silêncio da noite que não passa,do fim de semana que não se agita, da televisão monótona na sala, dos latidos estridentes e reconfortantes dos meus cães que denunciam haver vida além da minha, me adaptar ao telefone que não toca, ao barulho do rato no forro da casa, me adaptar a torneira que pinga e cadencia o escorrer das minhas horas vazias, me adaptar a estar sozinha com os meus dias, sozinha comigo.
Aprender a me conhecer tem sido um desafio diário: dormir até a hora quero, lavar a louça, se der vontade, sair sem hora pra chegar, não dar satisfações, dançar na Lapa até cair ou sair para beber em plena segunda-feira. Nesse mar de coisas novas a que eu preciso me adaptar, está o fantástico mundo dos solteiros. Trocar um olhar, trocar um beijo, pode virar telefonema no dia seguinte ou apenas sexo na mesma noite. De uma forma ou de outra, vai ser difícil mais do que isso. Me pergunto: por que essas pessoas têm tanto medo de se relacionar de verdade? Conhecer o outro mais do que no superficial, se permitir embrenhar no labiríntico ser que cada um de nós se constitui, se decepcionar sim, por que não? Faz parte do que chamamos de vida. Conhecer a si mesmo é um processo que necessita da presença do outro, pois é no intermédio entre o que sou e o que o outro é, que nos encontramos.
Os homens com quem eu tenho cruzado ou que têm cruzado o meu caminho, nesta minha solteirice, parecem sair de uma escola, cuja cartilha prega que o prazer está na novidade e não na intimidade. Intimidade requer a paciência de conhecer o outro. O maior número possível de parceiros vai trazer experiências fugazes. Experiência vem de experimentar e experimentar várias coisas pode ser menos instrutivo do que experimentar a mesma coisa, buscando diferentes ângulos de apreciação. Me parece, e isso serve para homens e mulheres, que a única coisa que se quer dos relacionamentos são os bônus, o que mostra uma extrema imaturidade de nossa geração, já que todos sabemos que os ônus são intrínsecos aos bônus, inclusive na materialidade física das duas palavras. Eu, na minha ainda cabeça de mulher recém-divorciada, custo a entender como a aquisição de experiência se funda na quantidade e não na qualidade. Experiência que eu chamo de líquida, volátil, pouco aproveitável.
Como curiosa investigadora dos comportamentos afetivos na pós-modernidade, com base numa filosofia, discutida geralmente em botecos às tantas da madrugada de sábado com bastante cevada nos neurônios, percebo uma diferença natural entre homens e mulheres. Nós não temos medo de nos apaixonar, aliás, acho que a progesterona causa amolecimento agudo do miocárdio. Se gostamos do carinha, esperamos o telefonema no dia seguinte, repassamos mentalmente os detalhes do último encontro, não exitamos em pensar nele quando toca uma música romântica; se temos programa para o fim de semana, queremos convidá-lo e convidamos (ou tentamos se o telefone não der desligado ou se ele simplesmente não atender porque é fim de semana). Mandamos mensagens carentes em manhãs de chuva ou excitantes em noites de luar. Para ficarmos assim totalmente apaixonadas não precisa de muito tempo, uma semana, às vezes, é suficiente. Isso porque não somos apenas ansiosas, temos a urgência da paixão. Até corremos o risco de sofrermos mais, porém este é o preço que se paga por ter um útero. Ou acham que não faz diferença na vida de um ser humano o poder de gerar um outro ser nas entranhas. Somos naturalmente intensas. Sabemos, porque trazemos na veia o antigo ofício de cozinhar de nossas ancestrais avós, que é preciso, para apurar o sabor dos alimentos, cozinhar em fogo brando, porém nunca deixando de mexer. Mexer é fundamental, provar também. Toda cozinheira sabe que nada melhor do que aguardar ansiosa o prato ficar pronto.
Ter vários encontros numa mesma semana pode ser legal. Até quando? O namoro acontece naturalmente? Sim, mas eu não conheço rosa que brote em jardim algum (mesmo com a melhor terra) sem que primeiro seja plantada uma sementinha e que se regue todos os dias. Para que se descubra namorando, é necessário um mínimo de investimento, senão o que se tem são relacionamentos de finais de semana, que deixam um vazio na segunda-feira. Com medo de monótonos domingos de casado, tem-se apostado em monótonos sábados de solteiro.
Meu bom de verdade, e não tenho medo de assumir, é dvd rolando, pipoca estourando e intimidade no edredom. É ligar com saudade, abandonar o orgulho e pedir desculpas, passar a noite em claro ensaiando um sermão ou passar o dia refletindo sobre a ultima bronca. Transar no elevador ou no carro também é legal, mas é a paixão, e não a aventura, que garante o prazer.
Se passaram 91 dias que eu perdi o último amor, mesmo com o coração sangrando ainda e com uma marca indissolúvel que só um grande amor deixa na alma, não abro mão de sentir o friozinho na barriga, de ficar ansiosa por um telefonema, de comprar um vestido decotado e uma lingerie preta para o próximo encontro. Não abdico do prazer de me apaixonar sempre.
Só se passaram 91 dias do meu último adeus. Marcado por lágrimas, soluços e súplicas que não foram suficientes para reter, a areia a escorrer pelos meus dedos, o homem que, há mais ou menos nove anos, eu escolhera como o parceiro da minha vida. Desde então o que faço é me adaptar. Me adaptar a morar sozinha, me adaptar a fazer compras, equilibrar contas, cozinhar para uma pessoa só, escutar o silêncio da noite que não passa,do fim de semana que não se agita, da televisão monótona na sala, dos latidos estridentes e reconfortantes dos meus cães que denunciam haver vida além da minha, me adaptar ao telefone que não toca, ao barulho do rato no forro da casa, me adaptar a torneira que pinga e cadencia o escorrer das minhas horas vazias, me adaptar a estar sozinha com os meus dias, sozinha comigo.
Aprender a me conhecer tem sido um desafio diário: dormir até a hora quero, lavar a louça, se der vontade, sair sem hora pra chegar, não dar satisfações, dançar na Lapa até cair ou sair para beber em plena segunda-feira. Nesse mar de coisas novas a que eu preciso me adaptar, está o fantástico mundo dos solteiros. Trocar um olhar, trocar um beijo, pode virar telefonema no dia seguinte ou apenas sexo na mesma noite. De uma forma ou de outra, vai ser difícil mais do que isso. Me pergunto: por que essas pessoas têm tanto medo de se relacionar de verdade? Conhecer o outro mais do que no superficial, se permitir embrenhar no labiríntico ser que cada um de nós se constitui, se decepcionar sim, por que não? Faz parte do que chamamos de vida. Conhecer a si mesmo é um processo que necessita da presença do outro, pois é no intermédio entre o que sou e o que o outro é, que nos encontramos.
Os homens com quem eu tenho cruzado ou que têm cruzado o meu caminho, nesta minha solteirice, parecem sair de uma escola, cuja cartilha prega que o prazer está na novidade e não na intimidade. Intimidade requer a paciência de conhecer o outro. O maior número possível de parceiros vai trazer experiências fugazes. Experiência vem de experimentar e experimentar várias coisas pode ser menos instrutivo do que experimentar a mesma coisa, buscando diferentes ângulos de apreciação. Me parece, e isso serve para homens e mulheres, que a única coisa que se quer dos relacionamentos são os bônus, o que mostra uma extrema imaturidade de nossa geração, já que todos sabemos que os ônus são intrínsecos aos bônus, inclusive na materialidade física das duas palavras. Eu, na minha ainda cabeça de mulher recém-divorciada, custo a entender como a aquisição de experiência se funda na quantidade e não na qualidade. Experiência que eu chamo de líquida, volátil, pouco aproveitável.
Como curiosa investigadora dos comportamentos afetivos na pós-modernidade, com base numa filosofia, discutida geralmente em botecos às tantas da madrugada de sábado com bastante cevada nos neurônios, percebo uma diferença natural entre homens e mulheres. Nós não temos medo de nos apaixonar, aliás, acho que a progesterona causa amolecimento agudo do miocárdio. Se gostamos do carinha, esperamos o telefonema no dia seguinte, repassamos mentalmente os detalhes do último encontro, não exitamos em pensar nele quando toca uma música romântica; se temos programa para o fim de semana, queremos convidá-lo e convidamos (ou tentamos se o telefone não der desligado ou se ele simplesmente não atender porque é fim de semana). Mandamos mensagens carentes em manhãs de chuva ou excitantes em noites de luar. Para ficarmos assim totalmente apaixonadas não precisa de muito tempo, uma semana, às vezes, é suficiente. Isso porque não somos apenas ansiosas, temos a urgência da paixão. Até corremos o risco de sofrermos mais, porém este é o preço que se paga por ter um útero. Ou acham que não faz diferença na vida de um ser humano o poder de gerar um outro ser nas entranhas. Somos naturalmente intensas. Sabemos, porque trazemos na veia o antigo ofício de cozinhar de nossas ancestrais avós, que é preciso, para apurar o sabor dos alimentos, cozinhar em fogo brando, porém nunca deixando de mexer. Mexer é fundamental, provar também. Toda cozinheira sabe que nada melhor do que aguardar ansiosa o prato ficar pronto.
Ter vários encontros numa mesma semana pode ser legal. Até quando? O namoro acontece naturalmente? Sim, mas eu não conheço rosa que brote em jardim algum (mesmo com a melhor terra) sem que primeiro seja plantada uma sementinha e que se regue todos os dias. Para que se descubra namorando, é necessário um mínimo de investimento, senão o que se tem são relacionamentos de finais de semana, que deixam um vazio na segunda-feira. Com medo de monótonos domingos de casado, tem-se apostado em monótonos sábados de solteiro.
Meu bom de verdade, e não tenho medo de assumir, é dvd rolando, pipoca estourando e intimidade no edredom. É ligar com saudade, abandonar o orgulho e pedir desculpas, passar a noite em claro ensaiando um sermão ou passar o dia refletindo sobre a ultima bronca. Transar no elevador ou no carro também é legal, mas é a paixão, e não a aventura, que garante o prazer.
Se passaram 91 dias que eu perdi o último amor, mesmo com o coração sangrando ainda e com uma marca indissolúvel que só um grande amor deixa na alma, não abro mão de sentir o friozinho na barriga, de ficar ansiosa por um telefonema, de comprar um vestido decotado e uma lingerie preta para o próximo encontro. Não abdico do prazer de me apaixonar sempre.
quinta-feira, 4 de outubro de 2007
MULHER MICROONDAS
Já se passaram 365 dias depois daquele fatídico adeus. O último namoro foi embora e levou com ele qualquer vontade de recomeçar tudo de novo. Se a ressaca de bebedeira fosse tão marcante quanto o fim de um relacionamento, não existiria o A.A. Terminar uma relação, abandonar uma mulher com olhos afogados e o coração no final da efervescência, sem ao menos poder confortá-la, fica no sangue, dói na alma para o resto da vida.
Ser dono da minha própria órbita foi a grande lição. Abusar da falta de planejamento e sair e chegar sem rumo, sabendo que o único comprometimento que tenho é comigo mesmo, foi o primeiro passo para me conhecer. Como uma adolescente que apalpa seu corpo na procura de novas sensações, palmo-a-palmo me deparei com as debilidades e exclusividades que carrego, mapeando quem realmente sou e não apenas quem eu achava que era. O romântico inveterado, que expunha seus sentimentos no varal da janela, cedeu lugar para becos úmidos e mal iluminados onde nem todo mundo tem coragem de entrar.
Se o amor agora se disfarça com capa-preta e se mostra tão difícil de acertar quanto cesta de três pontos, a lucidez escancara os prós e contras de cada relacionamento. Assim como o flash da máquina fotográfica revela as rugas e acnes, a racionalidade deixa tudo tão sem graça quanto os muros das fábricas.
Neste último movimento de translação da terra, muitas foram as tentativas, porém as poucas que valiam a pena esbarraram na natureza cronológica das mulheres. Penso que as moças da minha idade, em sua maioria, possuem uma pressa de não sei o quê, como o coelho do país das maravilhas. Na idade da afirmação, onde o trem de pouso começa a fazer menção a subir, o mundo feminino se vê de frente ao desafio de equilibrar suas prioridades na ilusão de deixar para a próxima década de sua vida tudo tão arrumado quanto armário de militar.
Entre o tempo do casamento com seu espreguiçar lento de domingo de manhã e o tempo da adolescência, tão cítrico e contrastante com suas emoções, a geração pré-balzaquiana erra a medida dos seus ternos, a fermentação de seus vinhos e transforma a procura pela pessoa certa em um jogo cronometrado de programa de auditório. Mesmo vislumbrando um horizonte infinito de novas mentalidades, estas deveriam aprender com suas avós, no antigo ofício do simples cozinhar, o procedimento necessário para reencontrar o amor. Já fui congelado por elas. Já fui engolido por elas. Já fui raspado do prato por elas, que se alimentam das minhas intenções em pé no balcão. Será que não existirá mais ninguém capaz de perceber que as pessoas são como bacalhaus e quanto mais relacionamentos frustrados viveram, mais se preservam chafurdando os sentimentos no sal?
A cada fim de relacionamento destes, me sinto recém-saído do microondas, que deixa tudo torrado por fora e cru por dentro. Prometi a mim mesmo que nunca mais ensinaria a lição básica que deveria vir ilustrada nos cadernos do primeiro grau. Namoro não é uma esmola, é uma conquista. Não se pede ninguém em namoro, simplesmente descobre-se já namorando. Diferente da época que eu acendia um novo amor no outro, hoje vejo que relacionamento não é um título na bolsa de valores e sim uma experiência acumulada.
Este tempo de amolecimento, de cozimento em banho-maria, é tão necessário quanto o girar completo que o boxeador faz para estudar seu adversário, afinal é ali, no travesseiro ao lado, que você pretende ancorar sua nau, descer seus mantimentos e explorar as regiões mais íntimas do seu companheiro, e nesta eterna procura pela ilha certa, a ansiedade crispa o mar, chacoalha as velas e afasta as esperanças do cais.
Enquanto este alguém não toca a campainha, não cruza as avenidas dos meus olhos nem tropeça nas sinuosidades das minhas palavras eu fico aqui, como uma estação de metrô das grandes cidades, que ora existe deserta, ora não consegue comportar tudo em seus vagões que nunca esperam.
Ser dono da minha própria órbita foi a grande lição. Abusar da falta de planejamento e sair e chegar sem rumo, sabendo que o único comprometimento que tenho é comigo mesmo, foi o primeiro passo para me conhecer. Como uma adolescente que apalpa seu corpo na procura de novas sensações, palmo-a-palmo me deparei com as debilidades e exclusividades que carrego, mapeando quem realmente sou e não apenas quem eu achava que era. O romântico inveterado, que expunha seus sentimentos no varal da janela, cedeu lugar para becos úmidos e mal iluminados onde nem todo mundo tem coragem de entrar.
Se o amor agora se disfarça com capa-preta e se mostra tão difícil de acertar quanto cesta de três pontos, a lucidez escancara os prós e contras de cada relacionamento. Assim como o flash da máquina fotográfica revela as rugas e acnes, a racionalidade deixa tudo tão sem graça quanto os muros das fábricas.
Neste último movimento de translação da terra, muitas foram as tentativas, porém as poucas que valiam a pena esbarraram na natureza cronológica das mulheres. Penso que as moças da minha idade, em sua maioria, possuem uma pressa de não sei o quê, como o coelho do país das maravilhas. Na idade da afirmação, onde o trem de pouso começa a fazer menção a subir, o mundo feminino se vê de frente ao desafio de equilibrar suas prioridades na ilusão de deixar para a próxima década de sua vida tudo tão arrumado quanto armário de militar.
Entre o tempo do casamento com seu espreguiçar lento de domingo de manhã e o tempo da adolescência, tão cítrico e contrastante com suas emoções, a geração pré-balzaquiana erra a medida dos seus ternos, a fermentação de seus vinhos e transforma a procura pela pessoa certa em um jogo cronometrado de programa de auditório. Mesmo vislumbrando um horizonte infinito de novas mentalidades, estas deveriam aprender com suas avós, no antigo ofício do simples cozinhar, o procedimento necessário para reencontrar o amor. Já fui congelado por elas. Já fui engolido por elas. Já fui raspado do prato por elas, que se alimentam das minhas intenções em pé no balcão. Será que não existirá mais ninguém capaz de perceber que as pessoas são como bacalhaus e quanto mais relacionamentos frustrados viveram, mais se preservam chafurdando os sentimentos no sal?
A cada fim de relacionamento destes, me sinto recém-saído do microondas, que deixa tudo torrado por fora e cru por dentro. Prometi a mim mesmo que nunca mais ensinaria a lição básica que deveria vir ilustrada nos cadernos do primeiro grau. Namoro não é uma esmola, é uma conquista. Não se pede ninguém em namoro, simplesmente descobre-se já namorando. Diferente da época que eu acendia um novo amor no outro, hoje vejo que relacionamento não é um título na bolsa de valores e sim uma experiência acumulada.
Este tempo de amolecimento, de cozimento em banho-maria, é tão necessário quanto o girar completo que o boxeador faz para estudar seu adversário, afinal é ali, no travesseiro ao lado, que você pretende ancorar sua nau, descer seus mantimentos e explorar as regiões mais íntimas do seu companheiro, e nesta eterna procura pela ilha certa, a ansiedade crispa o mar, chacoalha as velas e afasta as esperanças do cais.
Enquanto este alguém não toca a campainha, não cruza as avenidas dos meus olhos nem tropeça nas sinuosidades das minhas palavras eu fico aqui, como uma estação de metrô das grandes cidades, que ora existe deserta, ora não consegue comportar tudo em seus vagões que nunca esperam.
quinta-feira, 27 de setembro de 2007
VULGARMENTE SECRETÁRIA
Texto resgatado de 06/08/2002.
De tempo em tempo, minha tia passa o dedo nos cantos inóspitos da estante e descobre trilhas de poeira, faz uma cara de reprovação e vai andando e reclamando até sumir pela imensidão da casa. “E não tem jeito”, digo pacificando “empregada é assim mesmo”. Elas chegam por indicações das mais variadas, no entanto, reúnem as mesmas qualificações de currículo: “É honesta e trabalhadeira”; “é superlimpa e discreta”; “acho até que é crente”. E numa mistura de critério de admissão e mercado negreiro, são contratadas. A partir daí segue uma trama de competição e traição que acirram mais a rivalidade. É a mulher moderna que aprendeu a valorizar seu trabalho e desvalorizar o dos outros contra a menina que vê tudo e não tem nada. Na verdade está em jogo a vaidade feminina e a ignorância do homem em achar que só da sua maneira é que dá. “São profissionais”, lamenta a moça no caixa me contando seus infortúnios. A dela foi pega em flagrante, tinha um mini-mercado na bolsa: limpeza, cama, mesa e banho, alimentação, perfumaria, tava tudo ali. E quando questionada, estufou o peito com o restante da dignidade e disse: “o papel higiênico eu trouxe de casa”, pegou as coisas e foi, sem remorso, em busca da próxima vítima. Levam orégano, porta-retrato, CD do Belo, vale até roubar o pedigree da patroa, se passando por ela na hora de atender o vendedor . A mesma que pode tornar a vida das patroas num inferno, pode levar almas cheias de espinha e vergonha aos céus. Nada de caridade com o rapazinho, afinal para ser rainha é preciso começar a investir no príncipe, que mal levantou do troninho e já quer encarar o banquete. E a mulher que cabia nos buracos das fechaduras se mostra perigosamente insaciável, querendo mais e mais... Faz parte da vida ficar febril por elas, seja que idade for. Com a vida já encaminhada e o coração abrasado, o marido faz sua dieta sexual com sucesso, relê na cama o álbum de figurinha repetida na esperança de encontrar o detalhe que faça a diferença, suas formas também perderam a imponência grega de antigamente e as brigas acrescentam diariamente uma parede para o labirinto chamado esposa. Então aparece dentro de casa a solução, boa bonita e barata, e lá se vai o marido, o pai das crianças, rebocado pela mulata reboladeira. É inexplicável a complacência do homem com a empregada, se arranhar o esmalte do dente da esposa o cara já olha para ela meio atravessado, em compensação, se a moça tiver uma janelinha no sorriso, tudo bem, ninguém é perfeito. “Cravo, celulite, verruga e perna cabeluda só a esposa que tem” finalizou minha prima, novamente solteira. Passado o período de experiência, implicância, cleptomania, sexo, suor e lágrima, começa-se a colher frutos da erva daninha. Tudo funciona direito e seus dotes passam a ter admiração da família, vira pauta nos jantares, e com o tempo ninguém consegue viver sem a secretária do lar. Os pares de meia, a baixela, o vestido azul, só elas conhecem seu paradeiro. Também tem a malandragem, em casa de nanico não se limpa em cima do armário, de míope não precisa desembaçar os vidros, de solteiro é só por tudo no lugar e jogar um cheiro. Assim seguem felizes. Mal acabou de limpar o dedo sujo de poeira, minha tia foi abordada pela secretária lá de casa, que contava com empolgação, as últimas notícias da vida alheia. Tática, nada mais.
De tempo em tempo, minha tia passa o dedo nos cantos inóspitos da estante e descobre trilhas de poeira, faz uma cara de reprovação e vai andando e reclamando até sumir pela imensidão da casa. “E não tem jeito”, digo pacificando “empregada é assim mesmo”. Elas chegam por indicações das mais variadas, no entanto, reúnem as mesmas qualificações de currículo: “É honesta e trabalhadeira”; “é superlimpa e discreta”; “acho até que é crente”. E numa mistura de critério de admissão e mercado negreiro, são contratadas. A partir daí segue uma trama de competição e traição que acirram mais a rivalidade. É a mulher moderna que aprendeu a valorizar seu trabalho e desvalorizar o dos outros contra a menina que vê tudo e não tem nada. Na verdade está em jogo a vaidade feminina e a ignorância do homem em achar que só da sua maneira é que dá. “São profissionais”, lamenta a moça no caixa me contando seus infortúnios. A dela foi pega em flagrante, tinha um mini-mercado na bolsa: limpeza, cama, mesa e banho, alimentação, perfumaria, tava tudo ali. E quando questionada, estufou o peito com o restante da dignidade e disse: “o papel higiênico eu trouxe de casa”, pegou as coisas e foi, sem remorso, em busca da próxima vítima. Levam orégano, porta-retrato, CD do Belo, vale até roubar o pedigree da patroa, se passando por ela na hora de atender o vendedor . A mesma que pode tornar a vida das patroas num inferno, pode levar almas cheias de espinha e vergonha aos céus. Nada de caridade com o rapazinho, afinal para ser rainha é preciso começar a investir no príncipe, que mal levantou do troninho e já quer encarar o banquete. E a mulher que cabia nos buracos das fechaduras se mostra perigosamente insaciável, querendo mais e mais... Faz parte da vida ficar febril por elas, seja que idade for. Com a vida já encaminhada e o coração abrasado, o marido faz sua dieta sexual com sucesso, relê na cama o álbum de figurinha repetida na esperança de encontrar o detalhe que faça a diferença, suas formas também perderam a imponência grega de antigamente e as brigas acrescentam diariamente uma parede para o labirinto chamado esposa. Então aparece dentro de casa a solução, boa bonita e barata, e lá se vai o marido, o pai das crianças, rebocado pela mulata reboladeira. É inexplicável a complacência do homem com a empregada, se arranhar o esmalte do dente da esposa o cara já olha para ela meio atravessado, em compensação, se a moça tiver uma janelinha no sorriso, tudo bem, ninguém é perfeito. “Cravo, celulite, verruga e perna cabeluda só a esposa que tem” finalizou minha prima, novamente solteira. Passado o período de experiência, implicância, cleptomania, sexo, suor e lágrima, começa-se a colher frutos da erva daninha. Tudo funciona direito e seus dotes passam a ter admiração da família, vira pauta nos jantares, e com o tempo ninguém consegue viver sem a secretária do lar. Os pares de meia, a baixela, o vestido azul, só elas conhecem seu paradeiro. Também tem a malandragem, em casa de nanico não se limpa em cima do armário, de míope não precisa desembaçar os vidros, de solteiro é só por tudo no lugar e jogar um cheiro. Assim seguem felizes. Mal acabou de limpar o dedo sujo de poeira, minha tia foi abordada pela secretária lá de casa, que contava com empolgação, as últimas notícias da vida alheia. Tática, nada mais.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
CASA NA ÁRVORE
Ufa, acabei de despachar o último job às 18:30. Tirei disfarçadamente o tênis, malocando-o entre as CPUs e arrisquei uma caminhada até a recepção. Tudo tranqüilo. Sem clientes e diretores por perto, foi fácil me presentear com um pequeno capricho. Jornal sensacionalista na mão e, na primeira risada que dei, Plin! Chegou trabalho novo pelo email. Acabou a farra, malandro.
A corrida pelo próximo centavo do varejo transformou as agências - especialmente as pequenas – em empresas mais burocráticas que fechamento de conta corrente. Funcionando no gargalo dos custos fixos e variados, o ritmo interno é ditado pelo bumbo que puxa o bloco na ladeira. Em todos estes ambientes de trabalho, redator e diretor de arte sentam juntos. Na hora do almoço, claro, que já consta na planilha do tráfego como “processo de criação”. Infelizmente o que sai na ponta da máquina em geral é trabalho pasteurizado, tão indistinguível um do outro como o doce e o salgado do biscoito Globo.
A lógica do quanto-mais-melhor afasta muito o criador do seu instinto natural, o mesmo que levava os ratinhos para o local certo no livro “quem mexeu no meu queijo?”. As visitas em site são podadas, os horários seguidos na risca e, na verificação do celular que grita uma mensagem de pagamento, sente-se a ameaça silenciosa da mão-de-ferro.
Quem dera o futuro da profissão se resumisse a maquiavelice de um ou outro diretor de propaganda. O que se configura no horizonte é uma nuvem ainda mais negra. Na ausência de gente de negócio disposta a apostar suas economias no longo e árduo processo de construção de marca, sobram atendimentos obedientes que transcrevem à risca os pedidos de “leve agora”, “quem ganha o presente é você” e “qualidade e menor preço”. Como contrapeso de tanta poluição visual e auditiva veiculada, as agências investem em si, no espaço físico, nas inovações high-techs, nos prêmios perecíveis e na mudança do seu próprio discurso a cada vez que a bússola varia.
Parece um destino certo: quanto mais se busca solidez nessa área, mais engessado os trabalhos ficam.
Obrigado a traduzir seus valores para os olhos de São Tomé dos empresários de hoje em dia, o diretor de propaganda não vê saída e se tangibiliza. Abre escritórios em outros estados. Contrata nomes de peso. Aluga andares inteiros de um prédio comercial. Tudo para fazer vista ao mercado e, no entanto, acaba esquecendo de algo, que diz pelos quatro cantos, ser o maior ativo de qualquer negócio: sua própria marca.
Nos áureos sonhos de garoto em busca da profissão, imaginava os escritórios da minha área como uma casa na árvore e não como um quarto de menino criado por vó. Saem os brinquedos de pilha e entram as idéias, saem os joguinhos de vídeo-game com começo, meio e fim, e entram as travessuras de rua, cheias de riscos e êxitos. Na casa da árvore nem é preciso dar ordem pois todos fazem pelo tesão de se manter ali, no topo. Não existem cargos e funções, todos colaboram com sua vocação natural. Os prazos são dados pela noite que cai ou pela chuva que invade as ripas mal emendadas. Se a casa desmorona, reconstroem-se quantas vezes for necessário, pois a crença daquele ser o melhor lugar no mundo já mora no coração de cada criança ali.
Novidades invadem a nossa praia em propaganda, que surfa nos conhecimentos de marketing e suas ferramentas. Marketing de guerrilha, viral, comunicação interdisciplinar, por conteúdo, integrada, assim como a volta dos modelos hot shops, bureaus criativos mais preocupados com resultados que inserções, trazem aquela brisa de renovação idêntica a que soprava no barraco de madeira em cima da mangueira. Naquele tempo, o tal vento fresco era sinônimo de pipa em ascensão em um céu de brigadeiro. Que faça o mesmo por nossas agências de propaganda.
O jornal sensacionalista eu tive que deixar novamente na recepção e calçar depressa meu tênis. O tal email anunciava reunião geral com o pessoal da criação para uma comunicação não convencional de uma grande marca de canetas. Oba, casa na árvore aí vamos nós.
A corrida pelo próximo centavo do varejo transformou as agências - especialmente as pequenas – em empresas mais burocráticas que fechamento de conta corrente. Funcionando no gargalo dos custos fixos e variados, o ritmo interno é ditado pelo bumbo que puxa o bloco na ladeira. Em todos estes ambientes de trabalho, redator e diretor de arte sentam juntos. Na hora do almoço, claro, que já consta na planilha do tráfego como “processo de criação”. Infelizmente o que sai na ponta da máquina em geral é trabalho pasteurizado, tão indistinguível um do outro como o doce e o salgado do biscoito Globo.
A lógica do quanto-mais-melhor afasta muito o criador do seu instinto natural, o mesmo que levava os ratinhos para o local certo no livro “quem mexeu no meu queijo?”. As visitas em site são podadas, os horários seguidos na risca e, na verificação do celular que grita uma mensagem de pagamento, sente-se a ameaça silenciosa da mão-de-ferro.
Quem dera o futuro da profissão se resumisse a maquiavelice de um ou outro diretor de propaganda. O que se configura no horizonte é uma nuvem ainda mais negra. Na ausência de gente de negócio disposta a apostar suas economias no longo e árduo processo de construção de marca, sobram atendimentos obedientes que transcrevem à risca os pedidos de “leve agora”, “quem ganha o presente é você” e “qualidade e menor preço”. Como contrapeso de tanta poluição visual e auditiva veiculada, as agências investem em si, no espaço físico, nas inovações high-techs, nos prêmios perecíveis e na mudança do seu próprio discurso a cada vez que a bússola varia.
Parece um destino certo: quanto mais se busca solidez nessa área, mais engessado os trabalhos ficam.
Obrigado a traduzir seus valores para os olhos de São Tomé dos empresários de hoje em dia, o diretor de propaganda não vê saída e se tangibiliza. Abre escritórios em outros estados. Contrata nomes de peso. Aluga andares inteiros de um prédio comercial. Tudo para fazer vista ao mercado e, no entanto, acaba esquecendo de algo, que diz pelos quatro cantos, ser o maior ativo de qualquer negócio: sua própria marca.
Nos áureos sonhos de garoto em busca da profissão, imaginava os escritórios da minha área como uma casa na árvore e não como um quarto de menino criado por vó. Saem os brinquedos de pilha e entram as idéias, saem os joguinhos de vídeo-game com começo, meio e fim, e entram as travessuras de rua, cheias de riscos e êxitos. Na casa da árvore nem é preciso dar ordem pois todos fazem pelo tesão de se manter ali, no topo. Não existem cargos e funções, todos colaboram com sua vocação natural. Os prazos são dados pela noite que cai ou pela chuva que invade as ripas mal emendadas. Se a casa desmorona, reconstroem-se quantas vezes for necessário, pois a crença daquele ser o melhor lugar no mundo já mora no coração de cada criança ali.
Novidades invadem a nossa praia em propaganda, que surfa nos conhecimentos de marketing e suas ferramentas. Marketing de guerrilha, viral, comunicação interdisciplinar, por conteúdo, integrada, assim como a volta dos modelos hot shops, bureaus criativos mais preocupados com resultados que inserções, trazem aquela brisa de renovação idêntica a que soprava no barraco de madeira em cima da mangueira. Naquele tempo, o tal vento fresco era sinônimo de pipa em ascensão em um céu de brigadeiro. Que faça o mesmo por nossas agências de propaganda.
O jornal sensacionalista eu tive que deixar novamente na recepção e calçar depressa meu tênis. O tal email anunciava reunião geral com o pessoal da criação para uma comunicação não convencional de uma grande marca de canetas. Oba, casa na árvore aí vamos nós.
quinta-feira, 13 de setembro de 2007
WORKSHOP DO INFERNO
Um homem muito bom, talvez nunca enriqueceu por isso. Amava a mulher e considerava a fidelidade coisa séria. Nunca trocou de casa e nem deixou os filhos na pendenga. Foi a melhor educação. Tocava seus negócios a moda antiga. Assim, montou fábrica, comprou terreno, alugou imóveis e morreu. Benedito foi na paz de Deus. Na noite do acontecido, a esposa chorosa ligou para as três filhas, deu o ultimato e todos chegaram antes de amanhecer, inclusive a mais nova com o antigo namorado. A senhora fez chá e contou do silêncio que sondava o velho homem, parecia a cada dia se fechar para o mundo num autismo espiritual. Depois da rodada de histórias de família o namorado da filhinha, até então mudo, se dispôs a homenageá-lo, algo que a cidade nunca viu. " Jamais, seu aproveitador." - Pensou a sogra, "Sim. Quem sabe." - Respondeu. A família não gozava de fartura depois do patriarca se afastar dos negócios, inclusive muitos na mão do genro. Por um lado, seria bom deixar as responsabilidades na mão dele, os gastos e as burocracias como forma de retribuição. "Não vamos gastar um tostão. Já está tudo arranjado" disse após desligar o telefone. O velório aconteceria durante o dia inteiro na casa do morto. Como manda a tradição, a mulher já preparava o doce de abóbora com coco para receber os convidados, quando teve a interrupção. O genro dizia ter contratado um buffet com salgadinhos e barquetas, nada de docinho, "a vida é amarga igual ao Wisky". Dava vontade de deitar na urna, forrada de veludo e bem quentinha, era um convite no inverno do Mendanha. Leões dourados seguravam com a boca as alças, a madeira era a melhor já vista ali, diziam até ser carvalho. Realmente o rapaz fez um grande trabalho, organizou tudo, pôs alguém para atender os telefones e agendar as visitas, esticou um tapete vermelho na porta, encomendou o melhor terno do lugar. Tudo rapidinho. A casa sempre tranqüila era agora um entra e sai, com gente esticando cortinas tricolores, acertando o foco de luz no centro da sala, encantando a todos. A esposa assustada não tinha como frear os exageros, imaginava cerimônia simples, mas tudo girava rápido; nem podia tomar as rédeas das coisas. Chamou as filhas e no momento particular foram vestir o pai. Estava durinho o homem, tão gelado quanto a pia da cozinha, ele sorria sereno, parecia bem. Então fizeram as orações e desembrulharam o terno, que carregava um dizer bordado no bolso do paletó: - Tô Na Night Aluguel de roupas. Sua melhor companhia . Uma choradeira rompeu a sala e a esposa foi como um bicho no pescoço do rapaz, que explicou: - O dono da loja cedeu a roupa e vai vir aqui, temos que fazer um agrado. Muito blablablá e acabou assim mesmo, puseram um lenço e ficou tudo bem. Mas desconfiada a mulher foi direto nas coroas de flores: "Faça como Seu benedito. Durma em paz - Colchões Clarim"; "Não deixe seu carro morrer como Seu benedito - Oficina do Luís" ; "Faça como seu benedito, conquiste seus sete palmos de terra - financiamentos Mourão" Tudo na casa estava sendo patrocinado, como o defunto era conhecido não faltariam convidados e empresa querendo aparecer. E já era tarde para qualquer reação, o pessoal estava chegando. Só a família já era bem grande, apareceu primo distante, vizinho, amigos, gente de tudo quanto foi lado. Um som ambiente recepcionava os convidados, que ganhavam lencinhos com a marca da decoradora de ambientes, um botão de rosas da floricultura vizinha e todos admiravam as fotos de Seu benedito em banners cheios de logomarcas das pequenas empresas. Um workshop do inferno. Foram horas de negociações, discussões, jogadas políticas e risadas até a hora do cortejo. E lá foi o defunto, no trio elétrico do deputado amigo da família ao som de We are the Champion. Parou o bairro e quase o coração da velha esposa, vendo a multidão se arrastando, mães levando os filhos na porta para ver o carro cheio de néon passar. Lá do alto alguém gritava do microfone: "Pára o Benedito nada?" "Tudo!!" A Galera respondia prontamente. O cemitério estava bonito e reservado, aparentemente sem nenhuma empresa por perto eles teriam paz. Um segurança autorizava somente as pessoas com credenciais no pescoço e o número de convidados diminuiu. Rezaram e choraram muitas vezes. O padre disse coisas bonitas e não deixou de convidar a todos presentes para uma visita na paróquia; as filhas cantaram juntas a música que o pai as ninava, a esposa por fim agradeceu. Humilde, o genro falou de boa intenção e emoção. E foi ele que assumiu a pior das responsabilidades: fechar o caixão. Cada vez que ameaçava, alguém pedia para ver o presunto pela última vez, até que chegou a hora. Bem no centro da tampa, em letras garrafais a funerária também havia deixado sua marca, com anjinhos sacanas carregando-as para o céu. E antes de recomeçar a choradeira alguém gritou: "Já que está embrulhado vai assim mesmo". Desceram o caixão e terminou o desespero. O genro justificava que as lembranças ficam, a publicidade morre e que ninguém lembraria de quem patrocinou e sim de quem se foi. Acabou sendo conhecido no lugar e foi próspero nos negócios. Graças ao garoto-propaganda Benedito que morreu sem entender a alma do negócio.
quinta-feira, 6 de setembro de 2007
SE EU TIVESSE UM FILHO AGORA
Se eu tivesse um filho agora talvez ele ficasse sentado ali na cama me ajudando a decidir se uso a camisa verde com estampa preta ou a camisa preta de estampa verde. Se ele já existisse, a tv estaria ligada em algum desenho animado que esqueço de ver. Sairíamos juntos nesta manhã azul de outono, depois de comer biscoito de maisena com leite, e suas mãos repetiriam os meus gestos ao fazer sinal para o ônibus parar.
Seria para ele que eu ensinaria minhas infinitas teorias, minha falta de crença e o revelaria os mais incrustados segredos da minha alma. Um filho tem o tamanho certo de qualquer solidão, inclusive aquelas que nascem com a gente, quando pai e mãe não fazem seu papel e deixam o eco do vazio falar mais alto.
Só um filho teria o poder de meter os bedelhos no meu trabalho sem me dar chance de defesa. Sei que seria meu maior fã, presente em meus pensamentos quando canto com a banda ou quando dou palestra na faculdade. Quem sabe não seriam dos próprios anúncios que crio que retiraríamos as primeiras letras de seu trabalhinho de alfabetização?Ou quem sabe com um outdoor gigante do seu herói preferido que eu arrancaria dele o sorriso mais sincero do mundo?
Gostaria que meu filho tivesse os olhos da Ângela e seu jeito todo próprio de dormir sorrindo. Porém não abro mão da altivez da Renata, da garra da Polyana, da amizade da Danúbia e muito menos da espontaneidade da Lílian. Na bibliografia de seu DNA também poderiam estar a genialidade do bisavô e a libido dos tios, amantes incorrigíveis.
Se fosse um moleque me ensinaria já velho a jogar bola de gude e andar de carrinho de rolimã, afinal não seria criado pela avó, soltando pipa no ventilador. Eu ficaria feliz em ajoelhar na areia para aprender sobre bulicas e mata-matas e resgatar dibiques e cabrestos do meu vocabulário burocrático. Vindo menina adoraria brincar de pai bravo, com poltrona própria e bigode, olhando de cara feia para seus rompantes adolescentes mesmo rindo por dentro. Teríamos conversas longas na cozinha enquanto à duas mãos o jantar improvisado estaria sendo feito. Por ela, tiraria os pêlos do nariz, depilaria a sobrancelha e a deixaria espremer meus cravos das costas com as unhas.
Ter um filho é a oportunidade que todo adulto tem de se reinventar, sem ouvir questionamento do chefe ou da vizinhança. Assistir novela, mudar de time e parar de fumar podem ser atitudes que precisem de uma forcinha extra para acontecer.
Minha cria crescerá em uma casa arejada como foi a minha, de janelas grandes de vidro onde o sol entra colorido pelo vitral. Terá um cachorro que poderá escolher o nome, uma enorme varanda com rede onde brincará de voar e uma praça arborizada na frente, onde todos o conhecerão. Falando nisso, seu nome será tão esquisito quanto o do pai para um dia discutirmos os sabores e dissabores que provocamos a cada vez que a professora faz a chamada.
Mesmo com tanto para oferecer, sei que ainda esquecerei de lhe dar uma coisa básica: o direito dele ser ele mesmo. Afinal ainda projeto na criança tudo aquilo que fui ou que gostaria de ser. Talvez por isso meu filho ainda more nos meus sonhos, mesmo acenando, de vez em quando, que está próximo o seu dia de chegar.
Seria para ele que eu ensinaria minhas infinitas teorias, minha falta de crença e o revelaria os mais incrustados segredos da minha alma. Um filho tem o tamanho certo de qualquer solidão, inclusive aquelas que nascem com a gente, quando pai e mãe não fazem seu papel e deixam o eco do vazio falar mais alto.
Só um filho teria o poder de meter os bedelhos no meu trabalho sem me dar chance de defesa. Sei que seria meu maior fã, presente em meus pensamentos quando canto com a banda ou quando dou palestra na faculdade. Quem sabe não seriam dos próprios anúncios que crio que retiraríamos as primeiras letras de seu trabalhinho de alfabetização?Ou quem sabe com um outdoor gigante do seu herói preferido que eu arrancaria dele o sorriso mais sincero do mundo?
Gostaria que meu filho tivesse os olhos da Ângela e seu jeito todo próprio de dormir sorrindo. Porém não abro mão da altivez da Renata, da garra da Polyana, da amizade da Danúbia e muito menos da espontaneidade da Lílian. Na bibliografia de seu DNA também poderiam estar a genialidade do bisavô e a libido dos tios, amantes incorrigíveis.
Se fosse um moleque me ensinaria já velho a jogar bola de gude e andar de carrinho de rolimã, afinal não seria criado pela avó, soltando pipa no ventilador. Eu ficaria feliz em ajoelhar na areia para aprender sobre bulicas e mata-matas e resgatar dibiques e cabrestos do meu vocabulário burocrático. Vindo menina adoraria brincar de pai bravo, com poltrona própria e bigode, olhando de cara feia para seus rompantes adolescentes mesmo rindo por dentro. Teríamos conversas longas na cozinha enquanto à duas mãos o jantar improvisado estaria sendo feito. Por ela, tiraria os pêlos do nariz, depilaria a sobrancelha e a deixaria espremer meus cravos das costas com as unhas.
Ter um filho é a oportunidade que todo adulto tem de se reinventar, sem ouvir questionamento do chefe ou da vizinhança. Assistir novela, mudar de time e parar de fumar podem ser atitudes que precisem de uma forcinha extra para acontecer.
Minha cria crescerá em uma casa arejada como foi a minha, de janelas grandes de vidro onde o sol entra colorido pelo vitral. Terá um cachorro que poderá escolher o nome, uma enorme varanda com rede onde brincará de voar e uma praça arborizada na frente, onde todos o conhecerão. Falando nisso, seu nome será tão esquisito quanto o do pai para um dia discutirmos os sabores e dissabores que provocamos a cada vez que a professora faz a chamada.
Mesmo com tanto para oferecer, sei que ainda esquecerei de lhe dar uma coisa básica: o direito dele ser ele mesmo. Afinal ainda projeto na criança tudo aquilo que fui ou que gostaria de ser. Talvez por isso meu filho ainda more nos meus sonhos, mesmo acenando, de vez em quando, que está próximo o seu dia de chegar.
quinta-feira, 30 de agosto de 2007
AMORES FÚTEIS
Amores fúteis me perseguem
são como frutas podres de um pomar.
De longe todos a querem,
Mas são poucas que se pode aproveitar.
A minha inconveniência
é que o mundo é conivente com você,
com seus mimos de criança
que nem sempre sou obrigado a fazer.
Os buracos da sua estrada
todo dia mudam de direção
distanciamos um do outro
cansados de andar na contra-mão.
Eu queria era uma aposta
mas esqueci, se chamam jogos de azar,
minha vida são dois dados
nas mãos de quem não sabe brincar.
Amor a casa caiu, amor o sol já sumiu, amor foi tudo ilusão,
fiquei vazio de você mas fiquei cheio de razão.
Amor a casa caiu, amor o sol já sumiu, amor foi tudo ilusão,
eu só queria ter você e um pouquinho de atenção.
são como frutas podres de um pomar.
De longe todos a querem,
Mas são poucas que se pode aproveitar.
A minha inconveniência
é que o mundo é conivente com você,
com seus mimos de criança
que nem sempre sou obrigado a fazer.
Os buracos da sua estrada
todo dia mudam de direção
distanciamos um do outro
cansados de andar na contra-mão.
Eu queria era uma aposta
mas esqueci, se chamam jogos de azar,
minha vida são dois dados
nas mãos de quem não sabe brincar.
Amor a casa caiu, amor o sol já sumiu, amor foi tudo ilusão,
fiquei vazio de você mas fiquei cheio de razão.
Amor a casa caiu, amor o sol já sumiu, amor foi tudo ilusão,
eu só queria ter você e um pouquinho de atenção.
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
TENTATIVAS
Será que um dia eu consigo entender
O que seu sorriso alheio quer dizer?
Será que eu dia eu consigo escutar
O que foi que seu silêncio quis falar?
Tento entrar no seu ritmo pra não dançar.
(ela sabe sambar, eu não consigo acertar)
Tento andar nos seus passos pra não tropeçar.
Hoje eu quero acordar com você.
Edredon, pipoca e filme na TV.
Me desculpe se eu falo demais
Só quero te fazer o bem que você me faz.
O que seu sorriso alheio quer dizer?
Será que eu dia eu consigo escutar
O que foi que seu silêncio quis falar?
Tento entrar no seu ritmo pra não dançar.
(ela sabe sambar, eu não consigo acertar)
Tento andar nos seus passos pra não tropeçar.
Hoje eu quero acordar com você.
Edredon, pipoca e filme na TV.
Me desculpe se eu falo demais
Só quero te fazer o bem que você me faz.
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
JOGOS DA MEMÓRIA
Não era uma casa muito engraçada. Sinistra até. Entre o portão e o imóvel, um terreno mal iluminado dava poucas pistas sobre o dono. Onde seria um antigo jardim, o mato e a trepadeira deitavam sua soberania verde-escura, cobrindo anões e sapos de gesso. Ela abriu o portão em um só golpe, como nenhum cachorro ladrou, seguiu as pedras no chão pouco visíveis naquele horário lusco-fusco. Via-se uma luz fraca pela portilhola e nada mais. Chamou baixinho e nada de resposta. Entrou na varanda, tentou de novo. Viu um bilhete preso: “Por favor cuide dele. Não posso mais.” Não se assustou. Como enfermeira em tantos asilos, já estava acostumada com abandono e mal-trato. Abriu a porta de madeira detalhada e foi tentando se encontrar. Entre móveis velhos identificou a entrada de onde vinha a luz. No banheiro de azulejos detalhados, chamava atenção o espelho quebrado com marca de sangue seco, onde Luzia se viu pela primeira vez. Estava despenteada e suada depois de tantos ônibus lotados. Começou o procedimento de assepsia, colocando luvas, gorro e jaleco distraída com as notícias de terremoto em Lima que havia lido cedo, mas foi surpreendida pelo vulto estranho entrando no banheiro, esbarrando na porta, com o pênis na mão. O observou sem ser notada. Tinha textura de um pão de queijo, sem um pêlo cobrindo o corpo de tom amarelado, coberto de pintas. Era tão alto que precisava abaixar a cabeça para passar sobre o umbral que revelava marcas de antigas pancadas. Esperou que voltasse e o seguiu. No quarto fétido, sem luz, o velho deitou-se novamente resmungando coisas indecifráveis e logo adormeceu. Luzia catou a indicação que recebera, tentando relembrar o histórico do paciente.
Pouco sabia-se dele. Estrangeiro, vindo de uma família de poloneses, estruturou sua vida trabalhando no serviço de correios e telégrafos mas perdeu tudo por causa do jogo. Os vizinhos juravam que já havia sucumbido pela presença de urubus no quintal, mas foi visto por estudantes que fumavam baseado em sua varanda. Dele, era impossível saber algo, afinal, o mal de Alzheimer em estágio avançado nem o permitia lembrar como mijar direito.
Luzia sentou-se ao seu lado numa cadeira e aos poucos se aproximou. No exame de toque detectou anemia pelas pálpebras e alguma chagas nas costas e nas pernas. O paciente imóvel, parecia morto. Seguiu conferindo ossos e veias, até que, ao seu lado, uma velha caixinha de música dá seu alarde, despertando o velho que levanta-se gritando, indo de um cômodo ao outro, como se procurasse uma saída. Sentindo o sangue gelar, Luzia refugiou-se no quarto ao lado, onde adormece vencida pelo dia estranho. Muitos pensamentos a seguiram naquela noite porém o que prevaleceu foi seu compromisso assumido como aluna exemplar na Escola de Enfermagem Dra. Adair Teixeira.
A luz do dia seguinte revelou cômodos repletos de bibelôs coloridos, calendários antigos e sofás e camas de madeira Luis XV. Seu paciente também parecia mais calmo, sentado na cadeira de balanço, fingindo ler um jornal de 15 de abril de 1988, de cabeça para baixo. Mesmo contra sua vontade deu uma geral na casa, arrastando móveis e abrindo janelas. Aos poucos tudo voltaria ao normal. Chamou sua atenção os inúmeros porta-retratos espalhados por todos os lugares, sempre com paisagens incríveis de recantos desconhecidos. Ora ou outra, o velho levantava-se, escolhia uma das fotos e a contemplava longamente, por vezes chorando em silêncio. Luzia lembrou da caixinha de música e foi desarmá-la evitando novos sustos. Na penteadeira de pernas arcadas e tampo redondo meio rococó, ela repousava no centro, sozinha. Com cuidado a enfermeira a pegou nos braços. Era grande e pesada, do tamanho de uma caixa de sapato e, em cima , marcado com algo pontiagudo, lia-se “Herança”.
Um sentimento estranho tomou conta dela, que viu naqueles segundos a oportunidade da sua vida mudar. “Depois de limpar tanto velho cagão, eu mereço”. Pela porta dos fundos, foi até o limite do terreno e, numa distância onde o dono não pudesse ouvir, a abriu. Um par de óculos, uma caneta tinteiro e muitos bilhetes de loteria preenchido. Sentiu-se burra em lembrar que o velho havia perdido tudo em apostas e, desanimada, analisou os papéis, na esperança de alguma dica que a fizesse ganhar dinheiro. Os números eram desencontrados e sem qualquer lógica. Mesmo assim, anotou alguns e foi fazer sua fezinha.
Orgulhava-se de sua natureza cigana, explicada em uma regressão feita quando jovem. Por isso mesmo Luzia adaptou-se rapidamente ao seu novo lar, decorando-o com flores e determinando hábitos. O velho, um pouco mais sadio, vestia conjuntos floridos de viscose, única coisa que ela sabia costurar, e passeava pelo jardim diariamente para tomar sol. Seguiam os dois, num pacto de silêncio, interrompido pelo radio baixinho na cozinha, que um dia anunciou o resultado da Loterj.
“Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem cú”, repetia Luzia várias vezes naquele dia. Ficou tão indignada com a falta de sorte do velho que não se conteve. Pegou a caixinha e, derramando sobre a cama o perguntou sobre a herança. Ele a observava de olhos arregalados sem entender, até que identificou seu bilhete. Correu desesperado para a sala e, numa braçada, recolheu seus porta-retratos, que caíam no chão, quebrando seus vidros. Com os pés cortados, o polonês tentava fugir pela casa, escorregando em seu próprio sangue. Luzia arrependida, pedia calma aos berros, tentando arrumar a bagunça. Passou a noite limpando a sujeirada e pensando nos números. Não era possível. Precisava entender que herança era aquela.
Ao copiá-los repetidas vezes, percebeu algumas coincidências numéricas. Estava chegando lá. Lembrou dos retratos. Lembrou da Polônia, dos jogos, da família abandonada, da profissão...
Junto com os primeiros raios da manhã, Luzia deu um salto da mesa da cozinha. Depois de consultar o mapa de ruas e bairros, recolheu alguns itens na bolsa, inclusive algumas peças de roupa de ambos, todos os bilhetes e acordou o velho de súbito. Com dificuldade em carregá-lo, tomou um ônibus até a rodoviária e, antes do meio-dia já se encontrava a quilômetros da casa. No ponto que desceram consultou os números novamente e determinou a direção. Subiram a ladeira escorando-se com muita dificuldade e após muitas horas de sacrifício, finalmente chegaram ao local. Uma praça com muito verde, mesinhas e caramanchão. O velho, sem reação até ali, seguiu andando até um mirante invisível daquele ângulo. De lá os dois viram as montanhas do Mendanha, a plantação de laranja e e o mar da restinga da Marambaia. O velho, antigo carteiro da cidade, pode rever os lugares que andou e nunca gostaria de ter esquecido. Anotar o CEP com os números do bilhete da loteria foi sua forma de lembrar sua maior lição, que algumas coisas da vida, não há dinheiro que compre.
Pouco sabia-se dele. Estrangeiro, vindo de uma família de poloneses, estruturou sua vida trabalhando no serviço de correios e telégrafos mas perdeu tudo por causa do jogo. Os vizinhos juravam que já havia sucumbido pela presença de urubus no quintal, mas foi visto por estudantes que fumavam baseado em sua varanda. Dele, era impossível saber algo, afinal, o mal de Alzheimer em estágio avançado nem o permitia lembrar como mijar direito.
Luzia sentou-se ao seu lado numa cadeira e aos poucos se aproximou. No exame de toque detectou anemia pelas pálpebras e alguma chagas nas costas e nas pernas. O paciente imóvel, parecia morto. Seguiu conferindo ossos e veias, até que, ao seu lado, uma velha caixinha de música dá seu alarde, despertando o velho que levanta-se gritando, indo de um cômodo ao outro, como se procurasse uma saída. Sentindo o sangue gelar, Luzia refugiou-se no quarto ao lado, onde adormece vencida pelo dia estranho. Muitos pensamentos a seguiram naquela noite porém o que prevaleceu foi seu compromisso assumido como aluna exemplar na Escola de Enfermagem Dra. Adair Teixeira.
A luz do dia seguinte revelou cômodos repletos de bibelôs coloridos, calendários antigos e sofás e camas de madeira Luis XV. Seu paciente também parecia mais calmo, sentado na cadeira de balanço, fingindo ler um jornal de 15 de abril de 1988, de cabeça para baixo. Mesmo contra sua vontade deu uma geral na casa, arrastando móveis e abrindo janelas. Aos poucos tudo voltaria ao normal. Chamou sua atenção os inúmeros porta-retratos espalhados por todos os lugares, sempre com paisagens incríveis de recantos desconhecidos. Ora ou outra, o velho levantava-se, escolhia uma das fotos e a contemplava longamente, por vezes chorando em silêncio. Luzia lembrou da caixinha de música e foi desarmá-la evitando novos sustos. Na penteadeira de pernas arcadas e tampo redondo meio rococó, ela repousava no centro, sozinha. Com cuidado a enfermeira a pegou nos braços. Era grande e pesada, do tamanho de uma caixa de sapato e, em cima , marcado com algo pontiagudo, lia-se “Herança”.
Um sentimento estranho tomou conta dela, que viu naqueles segundos a oportunidade da sua vida mudar. “Depois de limpar tanto velho cagão, eu mereço”. Pela porta dos fundos, foi até o limite do terreno e, numa distância onde o dono não pudesse ouvir, a abriu. Um par de óculos, uma caneta tinteiro e muitos bilhetes de loteria preenchido. Sentiu-se burra em lembrar que o velho havia perdido tudo em apostas e, desanimada, analisou os papéis, na esperança de alguma dica que a fizesse ganhar dinheiro. Os números eram desencontrados e sem qualquer lógica. Mesmo assim, anotou alguns e foi fazer sua fezinha.
Orgulhava-se de sua natureza cigana, explicada em uma regressão feita quando jovem. Por isso mesmo Luzia adaptou-se rapidamente ao seu novo lar, decorando-o com flores e determinando hábitos. O velho, um pouco mais sadio, vestia conjuntos floridos de viscose, única coisa que ela sabia costurar, e passeava pelo jardim diariamente para tomar sol. Seguiam os dois, num pacto de silêncio, interrompido pelo radio baixinho na cozinha, que um dia anunciou o resultado da Loterj.
“Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem cú”, repetia Luzia várias vezes naquele dia. Ficou tão indignada com a falta de sorte do velho que não se conteve. Pegou a caixinha e, derramando sobre a cama o perguntou sobre a herança. Ele a observava de olhos arregalados sem entender, até que identificou seu bilhete. Correu desesperado para a sala e, numa braçada, recolheu seus porta-retratos, que caíam no chão, quebrando seus vidros. Com os pés cortados, o polonês tentava fugir pela casa, escorregando em seu próprio sangue. Luzia arrependida, pedia calma aos berros, tentando arrumar a bagunça. Passou a noite limpando a sujeirada e pensando nos números. Não era possível. Precisava entender que herança era aquela.
Ao copiá-los repetidas vezes, percebeu algumas coincidências numéricas. Estava chegando lá. Lembrou dos retratos. Lembrou da Polônia, dos jogos, da família abandonada, da profissão...
Junto com os primeiros raios da manhã, Luzia deu um salto da mesa da cozinha. Depois de consultar o mapa de ruas e bairros, recolheu alguns itens na bolsa, inclusive algumas peças de roupa de ambos, todos os bilhetes e acordou o velho de súbito. Com dificuldade em carregá-lo, tomou um ônibus até a rodoviária e, antes do meio-dia já se encontrava a quilômetros da casa. No ponto que desceram consultou os números novamente e determinou a direção. Subiram a ladeira escorando-se com muita dificuldade e após muitas horas de sacrifício, finalmente chegaram ao local. Uma praça com muito verde, mesinhas e caramanchão. O velho, sem reação até ali, seguiu andando até um mirante invisível daquele ângulo. De lá os dois viram as montanhas do Mendanha, a plantação de laranja e e o mar da restinga da Marambaia. O velho, antigo carteiro da cidade, pode rever os lugares que andou e nunca gostaria de ter esquecido. Anotar o CEP com os números do bilhete da loteria foi sua forma de lembrar sua maior lição, que algumas coisas da vida, não há dinheiro que compre.
quinta-feira, 9 de agosto de 2007
AMOR ENTRE IMAGEM E PALAVRA
* Mais uma tentativa de compor uma canção.
A Imagem descia a ladeira
mini-saia, decote e batom
a Palavra falou da janela
"Que coisa mais bela", ganhou atenção
A Imagem era exibida
fez de tudo para aparecer
chamou a palavra pro samba
que disse "Caramba, essa eu pago pra ver".
Palavra na ponta da língua
Imagem na ponta do pé
sairam as duas da quadra
andando abraçada, jurando amor
Palavra era mais animada,
fez juras, pediu pra casar
Imagem estava calada, mostrou-se empolgada
em subir no altar
Palavra ficou engasgada
quando viu a Imagem dizer
que valia mil vezes a outra
palavra nenhuma vai a descrever
Imagem ficou arranhada
Palavra foi quem agrediu
Sem ofensas ou xingamentos 2x
se fez o silêncio e Palavra sumiu.
A Imagem descia a ladeira
mini-saia, decote e batom
a Palavra falou da janela
"Que coisa mais bela", ganhou atenção
A Imagem era exibida
fez de tudo para aparecer
chamou a palavra pro samba
que disse "Caramba, essa eu pago pra ver".
Palavra na ponta da língua
Imagem na ponta do pé
sairam as duas da quadra
andando abraçada, jurando amor
Palavra era mais animada,
fez juras, pediu pra casar
Imagem estava calada, mostrou-se empolgada
em subir no altar
Palavra ficou engasgada
quando viu a Imagem dizer
que valia mil vezes a outra
palavra nenhuma vai a descrever
Imagem ficou arranhada
Palavra foi quem agrediu
Sem ofensas ou xingamentos 2x
se fez o silêncio e Palavra sumiu.
quinta-feira, 2 de agosto de 2007
OS PASSARINHOS QUE MORAM NA MINHA AGÊNCIA
Crônica publicada no site do CCRJ (site do Clube de Criação do RJ em 16/08/2005
Finjo que não ouço as bitocas dadas no final da sala, senão seria obrigado a moralizar algo imoralizável, que é o beijo. Apesar de estar compenetrado nos organogramas de mil pernas, que aprendi a fazer já nos primeiros computadores, sei de onde partiram os carinhos. Observo, entrincheirado entre os dois macintoch da agência, e lá está o casal, amontoado como mochilas, em cima de uma única cadeira.
Seguem seus estalinhos, seguidos de risos, como se o mundo se resumisse ao metro quadrado que habitavam. Desde o dia em que leram um e-mail, se beijam em locais inusitados pois acreditam que cada lugar tem seu significado, além daqueles tradicionais que conhecemos. Na mão, admiração, no rosto, amizade, na testa, respeito, e por aí vai. Fica claro a qualquer estagiário, colaborador ou visitante, que nada que fazem naquele momento, nenhuma ação, é destinada a outra pessoa senão eles próprios. Existe um alinhamento olho-no-olho, parecido com monitoramento GPS, que não permite mais que alguns centímetros saiam fora do eixo. Ela, uma moça de seus 20 anos, usa um rabo-de-cavalo pretinho, intrépido, na parte de trás da cabeça e uns brincos tão grandes que parecem ser de sua mãe. Veste um casaco moderno, de cortes futuristas, vermelho e branco, calça jeans, cuidadosamente desgastada na fábrica e um chinelo de borracha repousado entre os dedos. Está recostada no ombro direito dele, com as mãos se apoiando no esquerdo e o nariz fuxicando seu pescoço. Ele, mais moreno que ela, tem olhos verdes e o cabelo ainda com a mesma forma da sua infância, usa camisa de malha com detalhes amarelos, calça azul e tênis combinando. De repente, o rapaz a faz levantar de seu colo numa atitude brusca que quase a leva ao chão. Ela xinga alguma coisa, dá um beliscão na perna dele e seguem se ferindo até que tudo termina em cócegas e, conseqüentemente, beijos. Já os observo há tempo e também não me espantam com seus rompantes, pois existe uma sincronia em seus movimentos, humores e objetivos, que mais parecem amestrados em algum circo do amor.
Profissionalmente, também se acertam. A moça escolheu ser atendimento da agência - aos menos informados sobre propaganda, é a pessoa responsável por saber do cliente quais serão os problemas a serem resolvidos -, mas também quer o planejamento, onde se faz pesquisa e mostra-se caminhos. O rapaz, segue meus passos e doa-se ao ofício de redator publicitário. Dificilmente estão juntos trabalhando, pois onde termina o trabalho de um, começa o do outro, são como elos de uma corrente esticada, cada um sendo puxado para um lado. Mesmo assim, não é raro vê-los como passarinhos na cobertura, um ajudando o outro, no difícil esculpir do ofício, ou cada um no extremo da sala na mesma semana, por conta de uma maior concentração nos trabalhos que encerram seus prazos.
São tão donos de si, tão cheios de razão, que dificilmente sucumbirão por causa do amor, seja juntos ou separados. Nunca deixarão os pesares do macro-ambiente atrapalhar, nem a falta de criatividade transformá-los em qualquer coisa igual. Farão análise SWOT para ver quais são os pontos forte, fracos, ameaças e oportunidades, para morarem juntos e futuramente montarem um escritório no quartinho de empregada. Não faltarão bilhetinhos escondidos pela casa e teasers criando uma expectativa para mais tarde.
Como supervisor, admito em vistas grossas o namoro pois acredito na sinergia, que somam um mais um e dão três. Mas como pessoa, respeito-os como casal, por talvez achar que são uma evolução de mim mesmo ou, no mínimo, porque gostaria que fossem...
Eles acabaram de vir a minha mesa entregar o planejamento que deviam e fui surpreendido também com um beijo. Na testa.
Finjo que não ouço as bitocas dadas no final da sala, senão seria obrigado a moralizar algo imoralizável, que é o beijo. Apesar de estar compenetrado nos organogramas de mil pernas, que aprendi a fazer já nos primeiros computadores, sei de onde partiram os carinhos. Observo, entrincheirado entre os dois macintoch da agência, e lá está o casal, amontoado como mochilas, em cima de uma única cadeira.
Seguem seus estalinhos, seguidos de risos, como se o mundo se resumisse ao metro quadrado que habitavam. Desde o dia em que leram um e-mail, se beijam em locais inusitados pois acreditam que cada lugar tem seu significado, além daqueles tradicionais que conhecemos. Na mão, admiração, no rosto, amizade, na testa, respeito, e por aí vai. Fica claro a qualquer estagiário, colaborador ou visitante, que nada que fazem naquele momento, nenhuma ação, é destinada a outra pessoa senão eles próprios. Existe um alinhamento olho-no-olho, parecido com monitoramento GPS, que não permite mais que alguns centímetros saiam fora do eixo. Ela, uma moça de seus 20 anos, usa um rabo-de-cavalo pretinho, intrépido, na parte de trás da cabeça e uns brincos tão grandes que parecem ser de sua mãe. Veste um casaco moderno, de cortes futuristas, vermelho e branco, calça jeans, cuidadosamente desgastada na fábrica e um chinelo de borracha repousado entre os dedos. Está recostada no ombro direito dele, com as mãos se apoiando no esquerdo e o nariz fuxicando seu pescoço. Ele, mais moreno que ela, tem olhos verdes e o cabelo ainda com a mesma forma da sua infância, usa camisa de malha com detalhes amarelos, calça azul e tênis combinando. De repente, o rapaz a faz levantar de seu colo numa atitude brusca que quase a leva ao chão. Ela xinga alguma coisa, dá um beliscão na perna dele e seguem se ferindo até que tudo termina em cócegas e, conseqüentemente, beijos. Já os observo há tempo e também não me espantam com seus rompantes, pois existe uma sincronia em seus movimentos, humores e objetivos, que mais parecem amestrados em algum circo do amor.
Profissionalmente, também se acertam. A moça escolheu ser atendimento da agência - aos menos informados sobre propaganda, é a pessoa responsável por saber do cliente quais serão os problemas a serem resolvidos -, mas também quer o planejamento, onde se faz pesquisa e mostra-se caminhos. O rapaz, segue meus passos e doa-se ao ofício de redator publicitário. Dificilmente estão juntos trabalhando, pois onde termina o trabalho de um, começa o do outro, são como elos de uma corrente esticada, cada um sendo puxado para um lado. Mesmo assim, não é raro vê-los como passarinhos na cobertura, um ajudando o outro, no difícil esculpir do ofício, ou cada um no extremo da sala na mesma semana, por conta de uma maior concentração nos trabalhos que encerram seus prazos.
São tão donos de si, tão cheios de razão, que dificilmente sucumbirão por causa do amor, seja juntos ou separados. Nunca deixarão os pesares do macro-ambiente atrapalhar, nem a falta de criatividade transformá-los em qualquer coisa igual. Farão análise SWOT para ver quais são os pontos forte, fracos, ameaças e oportunidades, para morarem juntos e futuramente montarem um escritório no quartinho de empregada. Não faltarão bilhetinhos escondidos pela casa e teasers criando uma expectativa para mais tarde.
Como supervisor, admito em vistas grossas o namoro pois acredito na sinergia, que somam um mais um e dão três. Mas como pessoa, respeito-os como casal, por talvez achar que são uma evolução de mim mesmo ou, no mínimo, porque gostaria que fossem...
Eles acabaram de vir a minha mesa entregar o planejamento que deviam e fui surpreendido também com um beijo. Na testa.
quinta-feira, 26 de julho de 2007
ADOTE UM CARRO VELHO
Quem dirige sabe: todo carro tem alma. Mesmo que seja alma penada. Quando passo na frente do Ceará Automóveis eles me olham com faróis baixos, mendigando atenção. Estão abandonados, fadados ao esquecimento. Porém a esperança se renova: Se as pessoas estão sendo capazes de usar calça legging e ouvir ursinho blau-blau novamente, quem sabe andar de Fiat 147 volte a ser onda?
Para os que estão engajados neste movimento de ressocialização das banheiras e caixote com roda ou que simplesmente são simpatizantes, aperte o cinto – ou, se o encaixe estiver com defeito, deixe ele por cima do corpo, só pra polícia não encrencar.
TERMINOLOGIA - Antes de qualquer coisa esteja por dentro da linguagem. Carros com Injeção eletrônica e direção hidráulica são heresias por aqui. Peça um fusca joaninha ou fafá de Belém ou até um gol chaleira ou batedeira. As peças também acompanham o modelo, por isso prepare-se para encomendar uma cebolinha, um brinco de crioulo ou focinho de porco na loja.
DESIGN E TECNOLOGIA – Uma preocupação a menos: quase todos são quadrados, portanto concentre-se nas cores. Estereótipos como brasília amarela e fuscão preto não estão com nada. Prefira tons ousados como azul-cor-de-geladeira e abóbora-siri-cozido.
INVESTIMENTO – Carro velho é fácil de negociar. Na loja, o décimo terceiro cobre, porém a melhor barganha é comprar de um amigo podendo pagar as parcelas com bicicleta de corrida sem pneu, impressora com defeito e gaiola de passarinho sem o bicho dentro.
ACESSÓRIOS – Qualquer peça você encontra, menos as originais. Portanto a ordem é soltar a imaginação. Numa emergência substitua tanque por garrafa pet, cabo de aço por verganhão, gasolina por conhaque. Faça uma pesquisa rápida de mercado e também adapte acessórios extras, agregando valores ao veículo. Aos poucos você vai perceber que criou modelos exclusivos como CheVectra, MonzAstra e FusKa. Status garantido.
CONFORTO – Não tem muito, porém compensa na hora da pegação. Primeiro: fica fácil pular para o carona alegando que o banco não reclina mais, sendo muitas vezes uma verdade. Segundo: Qualquer dano no estofado, no retrovisor ou amasso do caput é barato consertar. Terceiro: o desembaçador está sempre quebrado e a privacidade garantida.
SAÚDE – De três em três meses ele pára de funcionar te fazendo caminhar obrigatoriamente ou esbandalha peças inimagináveis, te colocando em posições constrangedoras, bem parecido com pilates. Por último, charanga que se preze sempre pega no tranco, o que te deixa sarado de empurrar, principalmente se estiver na frente da boate ou na hora do rush.
O último foi um Escort 89 vermelho-cereja que piscou pra mim. Já vem com motor refeito e muitas ausências de série, como maçaneta, bateria e esguicho d’água. Já foram quatro até hoje, afinal como diria meu pai, carro-velho só te dá uma alegria maior que a hora de comprar: a hora de vender.
Para os que estão engajados neste movimento de ressocialização das banheiras e caixote com roda ou que simplesmente são simpatizantes, aperte o cinto – ou, se o encaixe estiver com defeito, deixe ele por cima do corpo, só pra polícia não encrencar.
TERMINOLOGIA - Antes de qualquer coisa esteja por dentro da linguagem. Carros com Injeção eletrônica e direção hidráulica são heresias por aqui. Peça um fusca joaninha ou fafá de Belém ou até um gol chaleira ou batedeira. As peças também acompanham o modelo, por isso prepare-se para encomendar uma cebolinha, um brinco de crioulo ou focinho de porco na loja.
DESIGN E TECNOLOGIA – Uma preocupação a menos: quase todos são quadrados, portanto concentre-se nas cores. Estereótipos como brasília amarela e fuscão preto não estão com nada. Prefira tons ousados como azul-cor-de-geladeira e abóbora-siri-cozido.
INVESTIMENTO – Carro velho é fácil de negociar. Na loja, o décimo terceiro cobre, porém a melhor barganha é comprar de um amigo podendo pagar as parcelas com bicicleta de corrida sem pneu, impressora com defeito e gaiola de passarinho sem o bicho dentro.
ACESSÓRIOS – Qualquer peça você encontra, menos as originais. Portanto a ordem é soltar a imaginação. Numa emergência substitua tanque por garrafa pet, cabo de aço por verganhão, gasolina por conhaque. Faça uma pesquisa rápida de mercado e também adapte acessórios extras, agregando valores ao veículo. Aos poucos você vai perceber que criou modelos exclusivos como CheVectra, MonzAstra e FusKa. Status garantido.
CONFORTO – Não tem muito, porém compensa na hora da pegação. Primeiro: fica fácil pular para o carona alegando que o banco não reclina mais, sendo muitas vezes uma verdade. Segundo: Qualquer dano no estofado, no retrovisor ou amasso do caput é barato consertar. Terceiro: o desembaçador está sempre quebrado e a privacidade garantida.
SAÚDE – De três em três meses ele pára de funcionar te fazendo caminhar obrigatoriamente ou esbandalha peças inimagináveis, te colocando em posições constrangedoras, bem parecido com pilates. Por último, charanga que se preze sempre pega no tranco, o que te deixa sarado de empurrar, principalmente se estiver na frente da boate ou na hora do rush.
O último foi um Escort 89 vermelho-cereja que piscou pra mim. Já vem com motor refeito e muitas ausências de série, como maçaneta, bateria e esguicho d’água. Já foram quatro até hoje, afinal como diria meu pai, carro-velho só te dá uma alegria maior que a hora de comprar: a hora de vender.
quinta-feira, 19 de julho de 2007
SENTIMENTO COLETIVO
*Minha primeira crônica, escrita exatamente há 5 anos atrás.
Cheio daquela multidão suarenta, ameaçadora da tranqüilidade alheia que sarra e é sarrada, o coletivo rebola, treme, bagunça nossa relação com a condução do dia-a-dia. Mais que meio de transporte, ele é palco, é praça, é pedacinho da vida para muita gente. Não existe opinião pública que exclua a de dentro dos ônibus. Naquela de mentirinha, formada por quem diariamente lê jornal, destrincha o caderno de economia e discute sobre o plano de governo dos candidatos a presidência, não existe espaço para erro, ninguém acrescenta nada, no máximo, diverge opinião. Ao contrário do vox populi, mais conhecido como opinião de geral. “Anda geral dizendo”, assim começa todo caô. No entanto a gente acaba acreditando, ora por falta de saber mesmo; ora por ceder a insistência. Pouco importa que seja uma fórmula da bomba atômica, DNA, estratégias, geral sabe de tudo. Alguém diz que viu, que tem parente que estava lá, outro jura pela felicidade dos filhos, cada um tentando convencer de sua maneira. Os mais assustadores são os loroteiros de morro, reféns das inversões de valores, que falam dos bandidos como as tietes de seus ídolos. “Tinha que vê Elias, ali na banguela, trepado com uma bereta, escoltado por Boquinha e Leitão”. É sinistro amigo. O amor também pega carona nessa caravela contemporânea e as metades andam juntas, apertadinhas. Principalmente quando a garganta coça e o dinheiro da passagem paga a gelada. Passar os dois agarrados no mesmo espaço da roleta, também é uma forma de amar. E se ama muito, duas, três pessoas... a fidelidade está entre o indicador parando ônibus e a cigarra laranja soando a despedida. Se pula a roleta, ou melhor a cerca, inclusive nos frescões executivos de vidro fumê. Nele se ama no colo, de lado, com a cortina fechada e até se ama sozinho, espiando e imaginando pelas janelas da Zona Sul. No ônibus muitos amam calado, se olham por entre os reflexos dos vidros, desafiando maridos ou esperam pacientemente no último segundo da partida, o agradecimento de rabo de olho. São perseguições de mãos, sorrisos e carinhos gratuitos, declarações de amor quase desapercebidas. Assim foi o trocador que observava a menina todo dia, e quando ninguém viu, chamou o ambulante para oferecer anonimamente a balinha do coração a ela. A moça iludida procurou seu sonho, olhou para trás e passou a vista direto do galã, que nem se importou, valeu ser o admirador sem rosto. Desdigo quase tudo que disse ao comentar de viagens longas na condução. Os relacionamentos são monogâmicos, se constitui outra família. Na sexta sempre tem pagode, a celebração ao fim de semana, o motorista pára certo no botequim que a rapaziada gosta de calibrar, também fazem tática, guardando o lugar para os amigos. São personagens que falam alto, xingam, liberam toda opressão sofrida durante o dia. O pessoal da limpeza, a menina do sacolão, o segurança, estão todos reunidos espantando a descrença por dias melhores. Parecem crianças cortando a rotina numa excursão barulhenta . E chamar de família não é exagerar, já tive presente em aniversários de trocador, fiscal e passageiro, com direito a bola, salgado, bolo e parabéns. Tudo negociado na vaquinha, sorte de quem faz aniversário no começo do mês quando dá para arrancar mais dinheiro da galera. Um coro para quem se despede reforça a aliança coletiva e diz nas entrelinhas “amanhã tem mais” e apesar de querer paz para admirar a escuridão das ruas e descriminar a turba, dá uma inveja quando desço sozinho na Estrada do Monteiro e nem ouço, pelo menos, tchau.
Cheio daquela multidão suarenta, ameaçadora da tranqüilidade alheia que sarra e é sarrada, o coletivo rebola, treme, bagunça nossa relação com a condução do dia-a-dia. Mais que meio de transporte, ele é palco, é praça, é pedacinho da vida para muita gente. Não existe opinião pública que exclua a de dentro dos ônibus. Naquela de mentirinha, formada por quem diariamente lê jornal, destrincha o caderno de economia e discute sobre o plano de governo dos candidatos a presidência, não existe espaço para erro, ninguém acrescenta nada, no máximo, diverge opinião. Ao contrário do vox populi, mais conhecido como opinião de geral. “Anda geral dizendo”, assim começa todo caô. No entanto a gente acaba acreditando, ora por falta de saber mesmo; ora por ceder a insistência. Pouco importa que seja uma fórmula da bomba atômica, DNA, estratégias, geral sabe de tudo. Alguém diz que viu, que tem parente que estava lá, outro jura pela felicidade dos filhos, cada um tentando convencer de sua maneira. Os mais assustadores são os loroteiros de morro, reféns das inversões de valores, que falam dos bandidos como as tietes de seus ídolos. “Tinha que vê Elias, ali na banguela, trepado com uma bereta, escoltado por Boquinha e Leitão”. É sinistro amigo. O amor também pega carona nessa caravela contemporânea e as metades andam juntas, apertadinhas. Principalmente quando a garganta coça e o dinheiro da passagem paga a gelada. Passar os dois agarrados no mesmo espaço da roleta, também é uma forma de amar. E se ama muito, duas, três pessoas... a fidelidade está entre o indicador parando ônibus e a cigarra laranja soando a despedida. Se pula a roleta, ou melhor a cerca, inclusive nos frescões executivos de vidro fumê. Nele se ama no colo, de lado, com a cortina fechada e até se ama sozinho, espiando e imaginando pelas janelas da Zona Sul. No ônibus muitos amam calado, se olham por entre os reflexos dos vidros, desafiando maridos ou esperam pacientemente no último segundo da partida, o agradecimento de rabo de olho. São perseguições de mãos, sorrisos e carinhos gratuitos, declarações de amor quase desapercebidas. Assim foi o trocador que observava a menina todo dia, e quando ninguém viu, chamou o ambulante para oferecer anonimamente a balinha do coração a ela. A moça iludida procurou seu sonho, olhou para trás e passou a vista direto do galã, que nem se importou, valeu ser o admirador sem rosto. Desdigo quase tudo que disse ao comentar de viagens longas na condução. Os relacionamentos são monogâmicos, se constitui outra família. Na sexta sempre tem pagode, a celebração ao fim de semana, o motorista pára certo no botequim que a rapaziada gosta de calibrar, também fazem tática, guardando o lugar para os amigos. São personagens que falam alto, xingam, liberam toda opressão sofrida durante o dia. O pessoal da limpeza, a menina do sacolão, o segurança, estão todos reunidos espantando a descrença por dias melhores. Parecem crianças cortando a rotina numa excursão barulhenta . E chamar de família não é exagerar, já tive presente em aniversários de trocador, fiscal e passageiro, com direito a bola, salgado, bolo e parabéns. Tudo negociado na vaquinha, sorte de quem faz aniversário no começo do mês quando dá para arrancar mais dinheiro da galera. Um coro para quem se despede reforça a aliança coletiva e diz nas entrelinhas “amanhã tem mais” e apesar de querer paz para admirar a escuridão das ruas e descriminar a turba, dá uma inveja quando desço sozinho na Estrada do Monteiro e nem ouço, pelo menos, tchau.
quinta-feira, 12 de julho de 2007
EU ESCREVO PRA VOCÊ. VOCÊ ESCREVE PRA MIM
Eu e Liu Brito topamos o desafio de inverter os papéis. Cada um devia escrever sobre a presença do sexo oposto dentro de sí. Eu encarei a meia-calça, ela calçou a botina. O resultado você vê agora...
SEJIS HOMI! Por Liu Brito
Invadindo um blog de menino para tentar escrever alguma coisa que não choque o público do meu querido e talentoso amigo Aru.
Foi assim que resolvi escrever sobre as vezes que paro diante do espelho e digo:
-Nossa, tô parecendo um homem...
Não me entendam mal, na aparência e no gestual sou tão feminina que até pareço uma bicha. Estou falando mesmo de comportamento.
Meu cabeleireiro diz que sou mais homem que ele, o que não é muito difícil, mas ele justifica dizendo que sou bem humorada demais pra ser mulher. Ora bolas, as mulheres não são mal humoradas, levam esta fama por causa da maldita TPM. Experimente ter uma maré de hormônios, que muda de acordo com a lua e depois falamos sobre humor regular.
Bem, mas verdade seja dita, às vezes sou muito homem mesmo e por isso não tolero homem mulherzinha, esses que fazem charminho pra ligar, só ligam na terça, porque se ligar no Domingo vai parecer que está apaixonado, me poupem.
Outro exemplo de Homem mulherzinha é aquele tipo que liga no meio da noite pra ex-namorada porque bateu saudade e inventa uma desculpa esfarrapada qualquer, ah, seja homem meu filho.
Sou muito homem pra ligar pra quem eu quiser e fazer um convite. Azar dos que dizem não. Afinal, homem que é homem não tem medo de porta na cara.
As mulheres conquistaram o sagrado direito de dizer o que querem e como querem, coisa que os homens já fazem há milênios, então antes que eu me esqueça, as mulheres gostam sim de sexo oral, desde que bem feito, ok? Pra fazer de qualquer jeito, melhor não.
E por falar em ser homem, de uma vez por todas, acabou aquela história de mulher achar que todos os homens podem ser o potencial homem da sua vida. Hoje em dia, as mulheres já conseguem colocar os homens em suas devidas gavetinhas. Cada um na sua. Tem gaveta para amigo, gaveta para potenciais, gaveta de ex e principalmente, gaveta para equilibrador hormonal, isso mesmo, porque toda mulher precisa de um.
Antes que eu me esqueça, mulher quer ser respeitada, em todos os aspectos, então por favor, cuidem bem das suas cuecas e pensem muito antes de puxar uma mulher pelo braço sem tê-la levado pra jantar, depois até pode e pelo amor de Deus, mudem a ordem da entrevista, qual seu nome, o que você faz e onde você mora, já basta no senso.
Então fica certo assim, me dá seu telefone e se eu quiser ligo logo no Domingo, se eu não ligar, esquece. Minha cor predileta? Verde. Livro? Vários, inclusive o pequeno príncipe (o Aru também leu). Bicho nojento? Cobra, tolero as baratas. Time? Vitória. Não tenho diário e adoro ser solteira, ser casada e namorada também, tudo depende de com quem.
E aí? Vai encarar?
mais textos da autora no blog www.todaprosa.blogspot.com
MENTIRAS DE SALTO ALTO por Aruanã Bento
Por dentro de um grande homem existe uma grande mulher.
É ela quem cochicha no meu ouvido os compromissos marcados duas semanas antes, o presente certo e as palavras secretas que só podem ser ditas quando as mãos se tocam pela primeira vez. Moramos no mesmo corpo mas não é sempre que a vejo. A última vez foi na despedida de um amigo que acabei chorando no saguão do aeroporto. É minha porção mulher quem brinca com o cachorro, me livra invariavelmente do mau-humor, e consegue, nas formas das nuvens ou na espuma do shampoo, descobrir desenhos, imaginar coisas.
No dia-a-dia de redator publicitário que preciso tirar a gancho minha criatividade, a porção feminina me salva e busca em sua habilidade de pensar mil coisas e assimilar mil palavras, associações fantásticas, que se transformam em títulos impossíveis de não ler. Foi com ela que também descobri como o azeite valoriza a comida, como o vinho seco pode ter tanta complexidade em aromas e texturas, como identificar as pessoas através de seu signo e, principalmente, como o sexo oral se torna um grande coringa se estiver situado entre a paciência de um monge e a obediência de um cão-sem-dono.
Olhando assim fica difícil de imaginar, mas até a porção mulher é capaz de mentir.
“Você gostou da minha unha?Ah, que fofo!Tenho tatuagem sim, adoro. Nossa temos muito em comum. Podemos marcar, adoro jantar no japonês. Cara, você é muito especial, me amarrei na sua...como amigo”.
Desde que me entendo por gente procurei fazer coisas que realmente tocassem as mulheres, que estivesse dentro dos seus sonhos mais distantes. Acreditei que elas gostassem de homens com senso de humor, com conteúdo e sensibilidade para percebê-las como nenhum outro. Tolice. Assim como todas as outras, minha porção mulher passou a vida me mostrando o cara que ela pretendia gostar e não quem ela realmente gostava.
Por isso, decidi faz tempo não dar ouvido a minha voz feminina interior e, aos poucos, silenciou-se. Hoje não me procura mais.
Sozinho, invado noites atrás de diversão e as vejo batendo cabeça, ou como diria Liu Brito, na vitrine. Todas seguem a mesma tática pelas mesmas finalidades e seguem trocando blefes por beijos. O primeiro e mais duro golpe que aprendi foi que, para conquistar uma mulher é preciso, antes de tudo, ignorá-la. Depois de milênios presa dentro das cavernas, as moças conquistaram seu direito de caçar mas ainda não sabem usá-lo: são fantoches nas mãos masculinas calejadas na arte da conquista. Andam, passam, esbarram, olham, insinuam, como cardumes que disputam quem será comido primeiro pelos tubarões.
Sem minha porção mulher me olho no espelho e me sinto um nômade que usa, gasta uma terra e depois a abandona, mas tenho a convicção que não poderei mais reencontrá-la sozinho. Preciso da cumplicidade de alguém, que saiba dar colo e ganhar colo, que aceite convite e também os faça, que me traga elogios e críticas novas, que me surpreenda com girassóis em um dia de chuva. Alguém que saiba rir de si mesmo e não se importe em anoitecer na Lapa e amanhecer no Arpoador. Alguém que não dance apenas para os outros, que tenha ambições profissionais, pessoais, sexuais e, principalmente, que goste de si próprio. Quem sabe assim uma dia eu acorde e volte a ouvir no meu ouvido novamente uma voz sussurrando: “Acorde mocinho. Você precisa estar bem bonito para reencontrar o amor da sua vida”.
SEJIS HOMI! Por Liu Brito
Invadindo um blog de menino para tentar escrever alguma coisa que não choque o público do meu querido e talentoso amigo Aru.
Foi assim que resolvi escrever sobre as vezes que paro diante do espelho e digo:
-Nossa, tô parecendo um homem...
Não me entendam mal, na aparência e no gestual sou tão feminina que até pareço uma bicha. Estou falando mesmo de comportamento.
Meu cabeleireiro diz que sou mais homem que ele, o que não é muito difícil, mas ele justifica dizendo que sou bem humorada demais pra ser mulher. Ora bolas, as mulheres não são mal humoradas, levam esta fama por causa da maldita TPM. Experimente ter uma maré de hormônios, que muda de acordo com a lua e depois falamos sobre humor regular.
Bem, mas verdade seja dita, às vezes sou muito homem mesmo e por isso não tolero homem mulherzinha, esses que fazem charminho pra ligar, só ligam na terça, porque se ligar no Domingo vai parecer que está apaixonado, me poupem.
Outro exemplo de Homem mulherzinha é aquele tipo que liga no meio da noite pra ex-namorada porque bateu saudade e inventa uma desculpa esfarrapada qualquer, ah, seja homem meu filho.
Sou muito homem pra ligar pra quem eu quiser e fazer um convite. Azar dos que dizem não. Afinal, homem que é homem não tem medo de porta na cara.
As mulheres conquistaram o sagrado direito de dizer o que querem e como querem, coisa que os homens já fazem há milênios, então antes que eu me esqueça, as mulheres gostam sim de sexo oral, desde que bem feito, ok? Pra fazer de qualquer jeito, melhor não.
E por falar em ser homem, de uma vez por todas, acabou aquela história de mulher achar que todos os homens podem ser o potencial homem da sua vida. Hoje em dia, as mulheres já conseguem colocar os homens em suas devidas gavetinhas. Cada um na sua. Tem gaveta para amigo, gaveta para potenciais, gaveta de ex e principalmente, gaveta para equilibrador hormonal, isso mesmo, porque toda mulher precisa de um.
Antes que eu me esqueça, mulher quer ser respeitada, em todos os aspectos, então por favor, cuidem bem das suas cuecas e pensem muito antes de puxar uma mulher pelo braço sem tê-la levado pra jantar, depois até pode e pelo amor de Deus, mudem a ordem da entrevista, qual seu nome, o que você faz e onde você mora, já basta no senso.
Então fica certo assim, me dá seu telefone e se eu quiser ligo logo no Domingo, se eu não ligar, esquece. Minha cor predileta? Verde. Livro? Vários, inclusive o pequeno príncipe (o Aru também leu). Bicho nojento? Cobra, tolero as baratas. Time? Vitória. Não tenho diário e adoro ser solteira, ser casada e namorada também, tudo depende de com quem.
E aí? Vai encarar?
mais textos da autora no blog www.todaprosa.blogspot.com
MENTIRAS DE SALTO ALTO por Aruanã Bento
Por dentro de um grande homem existe uma grande mulher.
É ela quem cochicha no meu ouvido os compromissos marcados duas semanas antes, o presente certo e as palavras secretas que só podem ser ditas quando as mãos se tocam pela primeira vez. Moramos no mesmo corpo mas não é sempre que a vejo. A última vez foi na despedida de um amigo que acabei chorando no saguão do aeroporto. É minha porção mulher quem brinca com o cachorro, me livra invariavelmente do mau-humor, e consegue, nas formas das nuvens ou na espuma do shampoo, descobrir desenhos, imaginar coisas.
No dia-a-dia de redator publicitário que preciso tirar a gancho minha criatividade, a porção feminina me salva e busca em sua habilidade de pensar mil coisas e assimilar mil palavras, associações fantásticas, que se transformam em títulos impossíveis de não ler. Foi com ela que também descobri como o azeite valoriza a comida, como o vinho seco pode ter tanta complexidade em aromas e texturas, como identificar as pessoas através de seu signo e, principalmente, como o sexo oral se torna um grande coringa se estiver situado entre a paciência de um monge e a obediência de um cão-sem-dono.
Olhando assim fica difícil de imaginar, mas até a porção mulher é capaz de mentir.
“Você gostou da minha unha?Ah, que fofo!Tenho tatuagem sim, adoro. Nossa temos muito em comum. Podemos marcar, adoro jantar no japonês. Cara, você é muito especial, me amarrei na sua...como amigo”.
Desde que me entendo por gente procurei fazer coisas que realmente tocassem as mulheres, que estivesse dentro dos seus sonhos mais distantes. Acreditei que elas gostassem de homens com senso de humor, com conteúdo e sensibilidade para percebê-las como nenhum outro. Tolice. Assim como todas as outras, minha porção mulher passou a vida me mostrando o cara que ela pretendia gostar e não quem ela realmente gostava.
Por isso, decidi faz tempo não dar ouvido a minha voz feminina interior e, aos poucos, silenciou-se. Hoje não me procura mais.
Sozinho, invado noites atrás de diversão e as vejo batendo cabeça, ou como diria Liu Brito, na vitrine. Todas seguem a mesma tática pelas mesmas finalidades e seguem trocando blefes por beijos. O primeiro e mais duro golpe que aprendi foi que, para conquistar uma mulher é preciso, antes de tudo, ignorá-la. Depois de milênios presa dentro das cavernas, as moças conquistaram seu direito de caçar mas ainda não sabem usá-lo: são fantoches nas mãos masculinas calejadas na arte da conquista. Andam, passam, esbarram, olham, insinuam, como cardumes que disputam quem será comido primeiro pelos tubarões.
Sem minha porção mulher me olho no espelho e me sinto um nômade que usa, gasta uma terra e depois a abandona, mas tenho a convicção que não poderei mais reencontrá-la sozinho. Preciso da cumplicidade de alguém, que saiba dar colo e ganhar colo, que aceite convite e também os faça, que me traga elogios e críticas novas, que me surpreenda com girassóis em um dia de chuva. Alguém que saiba rir de si mesmo e não se importe em anoitecer na Lapa e amanhecer no Arpoador. Alguém que não dance apenas para os outros, que tenha ambições profissionais, pessoais, sexuais e, principalmente, que goste de si próprio. Quem sabe assim uma dia eu acorde e volte a ouvir no meu ouvido novamente uma voz sussurrando: “Acorde mocinho. Você precisa estar bem bonito para reencontrar o amor da sua vida”.
quinta-feira, 5 de julho de 2007
DEVANEIOS ENTRE PORRES E PALAVRAS
Troquei o computador pelo papel de mesa. Isso é grave. Mas, desde criança, amanheço com a noite, escureço com o dia e só o zumzumzum dos bares é que me põe pra dormir. O garçom daqui nem repara mais. Passa por mim e, com os olhos compridos, tenta decifrar esta letra engalfinhada que fui talhando com muita preguiça e desprezo. Tenho uma teoria definitiva sobre isso: quem escreve muito tem letra feia. A intimidade com suas próprias palavras é tanta que bastam três ou quatro riscos, com ponto ou acento para estar formada uma frase. Deus que me livre dos grafologistas. Terão mais pra dizer sobre mim que um pai-de-santo.
Um dia, o dono do boteco sentou na minha mesa. Pediu um slogan, uma chamada ou "sei lá qual é a porra deste nome", me disse. Antes que terminasse de contar a história do novo empreendimento, rasguei um pedacinho da folha e, com toda vaidade e soberba de um publicitário, dei escrito um posicionamento pra ele. Falei: “Você vai ficar rico com isso. Pague pelo menos minha conta”. Ele gostou, sorriu e me serviu uma dose do conhaque que carrega debaixo do braço. Me senti Pablo Picasso nas românticas noites de Montmartre. Aliás, a noite é o contraste ideal para quem quer se destacar dos mortais. Aqui mesmo, em pé, de costas para mim, conversando com uns outros dois, está André Serrote, escritor quase famoso, de gestos e riso contido. Do seu lado, Benac, o mais baixinho, músico virtuoso que se relaciona com seu violão como um amante: sozinho, no escuro. Por último, Doca, poeta gaiteiro e apaixonado, que recita em voz alta e rasga suas obras, dando um ar de expectativa e ineditismo ao seu personagem. Não os telefono e nem mesmo sei se são estes seus nomes verdadeiros, mas sempre os encontro. Gente nobre como essa se reúne assim, no meio da semana, nesta varanda de chão de ardósia, com telhas coloniais e toldos remendados, pendurando contas e trazendo luz com sua áurea. Depois de insistirem para eu os acompanhar em uma seresta na rodoviária, saíram em bando como andorinhas. Para eles, sou um anjo caído, pois vendo minhas fagulhas criativas para a máquina capitalista do mercado. Nem ligo, mas escondo debaixo da cadeira uma inveja imensa da maneira particular que olham para a vida.
Tinha abandonado estes meus manuscritos por uns minutos para atender um olhar interessado. Com a testosterona descontrolada quase o perco: a pequena derrubou seu Martini, batizando tudo que pôde. Depois de me secar, fui obrigado a molhar o dedo em uma poçinha e oferecer à ela. Era um teste que se aprende com a vida. Se ela chupa, quer sexo. Se ela morde e sorri, quer apenas companhia. Ela se afastou, me deixando com o indicador no ar, apontando para o vento, enquanto seguia rebolativa rumo ao banheiro. Faz parte. Aprendi a deixar meu coração em ponto-morto e passei a curtir os blefes. Telefones que nunca se atendem, promessas que nunca se cumprem e beijos que nunca chegam na boca fazem parte do repertório, assim como o jogo inverso, onde as mais recatadas das moças, com suas saias no meio do joelho e blusas sem decote, perdem o juízo, cheias de tesão por uma ou duas músicas cantadas olho-no-olho.
Retomo a escrita começando uma brincadeira solitária. Recolho com a orelha em pé as frases soltas dos outros freqüentadores e tento montar algo interessante com isso. Todo padre deveria atender seus fiéis aqui, pois nunca vi lugar para inspirar tantas mentiras e confissões. Ouço falar de semelhanças, de almas gêmeas e viajo sem querer para as lembranças de antigos relacionamentos. Elas moram entre o bem e o mal, entre a certeza e o risco, o prazer e a dor, como dormir no vento sem camisa. Escrevo seus nomes, um a um, e tento estabelecer um padrão, o possível perfil da minha próxima cúmplice. Chego a apenas uma conclusão: tá na hora de ir embora.
As portas do bar se arriam com a lua mingüante e ainda tenho a difícil missão de chegar em casa. Mas não antes de lembrar a última filosofia barata: criança pequena e homem bêbado, Deus protege.
Um dia, o dono do boteco sentou na minha mesa. Pediu um slogan, uma chamada ou "sei lá qual é a porra deste nome", me disse. Antes que terminasse de contar a história do novo empreendimento, rasguei um pedacinho da folha e, com toda vaidade e soberba de um publicitário, dei escrito um posicionamento pra ele. Falei: “Você vai ficar rico com isso. Pague pelo menos minha conta”. Ele gostou, sorriu e me serviu uma dose do conhaque que carrega debaixo do braço. Me senti Pablo Picasso nas românticas noites de Montmartre. Aliás, a noite é o contraste ideal para quem quer se destacar dos mortais. Aqui mesmo, em pé, de costas para mim, conversando com uns outros dois, está André Serrote, escritor quase famoso, de gestos e riso contido. Do seu lado, Benac, o mais baixinho, músico virtuoso que se relaciona com seu violão como um amante: sozinho, no escuro. Por último, Doca, poeta gaiteiro e apaixonado, que recita em voz alta e rasga suas obras, dando um ar de expectativa e ineditismo ao seu personagem. Não os telefono e nem mesmo sei se são estes seus nomes verdadeiros, mas sempre os encontro. Gente nobre como essa se reúne assim, no meio da semana, nesta varanda de chão de ardósia, com telhas coloniais e toldos remendados, pendurando contas e trazendo luz com sua áurea. Depois de insistirem para eu os acompanhar em uma seresta na rodoviária, saíram em bando como andorinhas. Para eles, sou um anjo caído, pois vendo minhas fagulhas criativas para a máquina capitalista do mercado. Nem ligo, mas escondo debaixo da cadeira uma inveja imensa da maneira particular que olham para a vida.
Tinha abandonado estes meus manuscritos por uns minutos para atender um olhar interessado. Com a testosterona descontrolada quase o perco: a pequena derrubou seu Martini, batizando tudo que pôde. Depois de me secar, fui obrigado a molhar o dedo em uma poçinha e oferecer à ela. Era um teste que se aprende com a vida. Se ela chupa, quer sexo. Se ela morde e sorri, quer apenas companhia. Ela se afastou, me deixando com o indicador no ar, apontando para o vento, enquanto seguia rebolativa rumo ao banheiro. Faz parte. Aprendi a deixar meu coração em ponto-morto e passei a curtir os blefes. Telefones que nunca se atendem, promessas que nunca se cumprem e beijos que nunca chegam na boca fazem parte do repertório, assim como o jogo inverso, onde as mais recatadas das moças, com suas saias no meio do joelho e blusas sem decote, perdem o juízo, cheias de tesão por uma ou duas músicas cantadas olho-no-olho.
Retomo a escrita começando uma brincadeira solitária. Recolho com a orelha em pé as frases soltas dos outros freqüentadores e tento montar algo interessante com isso. Todo padre deveria atender seus fiéis aqui, pois nunca vi lugar para inspirar tantas mentiras e confissões. Ouço falar de semelhanças, de almas gêmeas e viajo sem querer para as lembranças de antigos relacionamentos. Elas moram entre o bem e o mal, entre a certeza e o risco, o prazer e a dor, como dormir no vento sem camisa. Escrevo seus nomes, um a um, e tento estabelecer um padrão, o possível perfil da minha próxima cúmplice. Chego a apenas uma conclusão: tá na hora de ir embora.
As portas do bar se arriam com a lua mingüante e ainda tenho a difícil missão de chegar em casa. Mas não antes de lembrar a última filosofia barata: criança pequena e homem bêbado, Deus protege.
quinta-feira, 28 de junho de 2007
SENTIMENTOS NO PORTA-RETRATO
Essa semana teve 26 anos. Todo o meu passado resolveu romper pela janela adentro como os ventos sudoestes vindos da Pedra de Guaratiba. Revi vídeos, álbuns de fotografias e recontei momentos, que a cada dia ganham mais eco, ficam mais distantes.
Foi nessa semana que o cara casou. Um daqueles amigos que já reservaram uma alça no meu caixão, juntou suas escovas de dente com a namorada eterna. Metido numa roupa cinza, cheia de detalhes engraçados, nos recebeu como um mordomo na escadaria. Ao meu lado, todos aqueles garotos, que jogavam vídeo-game e RPG, que sonhavam transar com as professoras e fotografar para o outro ver, estavam fantasiados em um meio-fraque, sem menor intimidade com a roupa nem com a cerimônia.
Nos ajeitamos uns aos outros, apertando um nó de gravata aqui, recolocando um lenço ali, revivendo o amor paterno que sempre tivemos no grupo, desde a primeira barba que fiz, passando pelo dia de tirar a carteira ou fazer a mudança para a quitinete: sempre estivemos juntos.
A expectativa de uma alegria extrema, de um chororô absoluto, foi substituída pelo desânimo e pelo medo, afinal, o casamento do cara era a bifurcação, mais um grande teste de resistência. A cada ano que passa galopamos em sentidos distintos: um virou músico, o outro pretende morar no exterior, tem aquele que tá solteiro e rico, o outro casado e pobre, o outro com filho, e mais o último que não sei. Nos entrincheiramos de frente para a igreja, disfarçando o inevitável, com futilidades do dia-a-dia.
Em nossa marcha dos pingüins, unidos a um tanto de madrinhas compenetradas e muito mais tensas que nós, nos enfileiramos olhando fixamente para o altar e, sem saber se agradecia pelo momento ou se confessava meu sentimento de posse com o amigo, preferi o silêncio. Um, dois, pára, um dois, pára. Assim caminhamos lentamente, sob o olhar ansioso dos convidados. Convenhamos que ninguém vai a cerimônia para ver os padrinhos. Acostumados ao papel principal, era estranho ser um enfeite, um adereço de algo muito maior, traduzido pelas lágrimas discretas do noivo, quando ela entrou.
Depois da gravidez, não existe um estado de graça maior de uma mulher. Toda de branco, vestido tomara que caia, rosas vermelhas e uma longa cauda, a noiva radiante silenciou o mundo, distribuindo um sorriso de dentes trincados para todos. Qualquer indiferença ou estresse pré-casamento havia sido deixado fora da igreja: ela estava linda, como nunca.
Terminadas as juras de amor eterno, troca de aliança e pai-nosso, procurei os olhos de cada um dos meus e encontrei, por trás da alegria e votos sinceros de felicidade, o nó na garganta, a tensão perante o novo, igualável a dos soldados que entram em um campo de batalha sem saber o que existe por trás da moita. Já era, o cara casou e um enorme ponto de interrogação roubou seu lugar. O que acontecerá agora?Será o fim de choppinhos de terça-feira e viagem de ônibus juntos?Acabarão os assaltos ao bolo de domingo que minha avó faz?Até que ponto seremos bem-vindos em sua nova casa?
Desentalamos com cerveja, em uma festa de arromba oferecida pelos pombinhos longe dali. Aos poucos, foram saindo coletes, penteados, camisas pra fora da calça e os rancores ciumentos. Seja lá qual for a resolução, não tenho dúvidas que estaremos do lado, pois, durante toda a vida, esta amizade foi o barro de criação para qualquer momento, somos parte de um todo, referência um para o outro. Nos despedimos cedo, cada um rumo a sua próxima aventura, mas não antes de roubar o porta-retrato que adornava o hall de entrada. Talvez para lembrarmos eternamente deste momento ou talvez para não esquecermos que um dia fomos simplesmente crianças.
Parabéns Isaac.
Foi nessa semana que o cara casou. Um daqueles amigos que já reservaram uma alça no meu caixão, juntou suas escovas de dente com a namorada eterna. Metido numa roupa cinza, cheia de detalhes engraçados, nos recebeu como um mordomo na escadaria. Ao meu lado, todos aqueles garotos, que jogavam vídeo-game e RPG, que sonhavam transar com as professoras e fotografar para o outro ver, estavam fantasiados em um meio-fraque, sem menor intimidade com a roupa nem com a cerimônia.
Nos ajeitamos uns aos outros, apertando um nó de gravata aqui, recolocando um lenço ali, revivendo o amor paterno que sempre tivemos no grupo, desde a primeira barba que fiz, passando pelo dia de tirar a carteira ou fazer a mudança para a quitinete: sempre estivemos juntos.
A expectativa de uma alegria extrema, de um chororô absoluto, foi substituída pelo desânimo e pelo medo, afinal, o casamento do cara era a bifurcação, mais um grande teste de resistência. A cada ano que passa galopamos em sentidos distintos: um virou músico, o outro pretende morar no exterior, tem aquele que tá solteiro e rico, o outro casado e pobre, o outro com filho, e mais o último que não sei. Nos entrincheiramos de frente para a igreja, disfarçando o inevitável, com futilidades do dia-a-dia.
Em nossa marcha dos pingüins, unidos a um tanto de madrinhas compenetradas e muito mais tensas que nós, nos enfileiramos olhando fixamente para o altar e, sem saber se agradecia pelo momento ou se confessava meu sentimento de posse com o amigo, preferi o silêncio. Um, dois, pára, um dois, pára. Assim caminhamos lentamente, sob o olhar ansioso dos convidados. Convenhamos que ninguém vai a cerimônia para ver os padrinhos. Acostumados ao papel principal, era estranho ser um enfeite, um adereço de algo muito maior, traduzido pelas lágrimas discretas do noivo, quando ela entrou.
Depois da gravidez, não existe um estado de graça maior de uma mulher. Toda de branco, vestido tomara que caia, rosas vermelhas e uma longa cauda, a noiva radiante silenciou o mundo, distribuindo um sorriso de dentes trincados para todos. Qualquer indiferença ou estresse pré-casamento havia sido deixado fora da igreja: ela estava linda, como nunca.
Terminadas as juras de amor eterno, troca de aliança e pai-nosso, procurei os olhos de cada um dos meus e encontrei, por trás da alegria e votos sinceros de felicidade, o nó na garganta, a tensão perante o novo, igualável a dos soldados que entram em um campo de batalha sem saber o que existe por trás da moita. Já era, o cara casou e um enorme ponto de interrogação roubou seu lugar. O que acontecerá agora?Será o fim de choppinhos de terça-feira e viagem de ônibus juntos?Acabarão os assaltos ao bolo de domingo que minha avó faz?Até que ponto seremos bem-vindos em sua nova casa?
Desentalamos com cerveja, em uma festa de arromba oferecida pelos pombinhos longe dali. Aos poucos, foram saindo coletes, penteados, camisas pra fora da calça e os rancores ciumentos. Seja lá qual for a resolução, não tenho dúvidas que estaremos do lado, pois, durante toda a vida, esta amizade foi o barro de criação para qualquer momento, somos parte de um todo, referência um para o outro. Nos despedimos cedo, cada um rumo a sua próxima aventura, mas não antes de roubar o porta-retrato que adornava o hall de entrada. Talvez para lembrarmos eternamente deste momento ou talvez para não esquecermos que um dia fomos simplesmente crianças.
Parabéns Isaac.
quinta-feira, 21 de junho de 2007
A VIRGEM E O GATO
O Charanga sempre foi um lugar de vadios. Toda gente sem muito escrúpulo zanza por ali. Boteco pestilento, onde as ratazanas espantam os cachorros e o azulejo acumula gordura no rejunte, já foi teto de golpes militares seguido de desaparecimentos misteriosos, e hoje sobrevive do patrocínio dos bicheiros que montam seu ponto de distribuição ali.
Nesta noite, o calor impetuoso de janeiro espantou todos os moradores de casa, lotando o Charanga de maltrapilhos em busca de alguma alegria. Entre músicas de videokê e o tilintar dos caça-níqueis, a mesa barulhenta de uns tantos moços chamava atenção. Pelos gestos, falavam de mulher, pelos palavrões, eram amigos de infância. Nem precisava esticar o pescoço quem quisesse se interar do assunto, porém, do nada, fez-se silêncio. Ninguém cantou, ninguém jogou, ninguém bebeu um gole. O Charanga inteiro reverenciou mudo a entrada da Virgem. Em gestos simples, olhando para baixo, ela entrou, comprou uma coca-cola com moedinhas e partiu, rapidamente. Deixou em seu rastro um perfume fresco, que parecia exalado das flores de seu vestido de pano azul. O estouro da boiada foi inevitável e todos, sem exceção, falavam dela. Filha de fazendeiro, moça prometida de barão assassinado, freira deposta, a cada visita dela a especulação aumentava.
Da mesma mesa barulhenta alguém falou em aposta, a língua oficial dos vagabundos, e casados uns tantos montinhos de 10 pratas, levava o bolão quem deitasse com a pequena. Regras: não valia força bruta nem arma, tinha que ter lábia.
A malandragem se coçou para conquistar a moça. Só de rosas, diziam as vizinhas desocupadas, enchiam dois caminhões, assim como bombons, fabricados nos lugares mais diferentes do mundo. Chegavam também vinhos, cestas de café da manhã, bichos de pelúcia, perfumes importados e até um disco do Julio Iglesias. Tudo amontoado na calçada; a virgem fazia questão de mostrar indiferença a tantos gracejos.
Depois de perder mais uma milhar apostando no número da placa que sonhou, Gato leu o cartaz feito a mão, sob a banca do jogo do bicho, sobre a aposta da tal virgem. Essa era mole. Seu apelido, não por acaso, se dava por sua manha com as mulheres e sua falta de escrúpulo com os homens. Vivia enroscado na esposa dos outros e diziam que, uma vez escapou de fuzilamento com mais de 30 tiros.
O Charanga foi um dos pioneiros dos empreendimentos 24 horas e se orgulhava em arriar suas portas uma vez por ano, apenas na procissão de santo Antônio. Dois meses depois, quando o andor apontou no final da rua, trazendo a imagem centenária do santo homem, meia porta foi arriada e todos os pecadores foram para o lado de fora, mostrar seu respeito. Um tal de se benzer da direita pra esquerda, beijar medalhinha de São Jorge, rezar pai-nosso, demonstrava a devoção, ainda que breve, dos freqüentadores do boteco.
Logo a multidão tomou conta das calçadas e as folhas das árvores frutíferas, que tradicionalmente cobrem o chão, foram tapete para uma cena inesperada: Gato, suando em bicas, carregava junto com outros fiéis a imagem do padroeiro em seus ombros magros, sob o olhar apaixonado da Virgem.
- herege, filho de uma puta! Gritou alguém no meio do bar, pouco se importando com as beatas e crianças vestidas de anjo para pagar promessa.
Gato agiu rápido. Era voluntário na igreja, começou a fazer bico no supermercado, carregando compras e espalhou entre os fiéis que nunca havia tido uma relação sexual sequer com alguém. As semelhanças inevitáveis aproximaram os dois pombinhos e justamente no dia do festejo, assumiam publicamente a relação que, por enquanto, se resumia em beijos estalinhos e mãos dadas na praça. O malandro ralou durante toda noite, vendendo de pescaria a maçã do amor, soltou rojão e rezou muito, dos joelhos ficarem doloridos de tanto sobe e levanta das missas. Na despedida foi surpreendido pela Virgem, que o convidou a tomar um banho e comer algo em sua casa.
A sala, mal iluminada, com apenas duas almofadas vermelhas destoando da estante em alvenaria e as paredes azuis, parecia sufocar Gato, tamanha era a expectativa. Lembrou das tantas meninas que iniciou e, no seu íntimo, se sentia mesmo um benfeitor. De repente, um murmuro. Era um choro, a virgem estava em lágrimas. Falou descompassada de janela aberta, do recolhimento das ofertas para a festa e do roubo a sua bolsa. Não conseguia completar uma frase sem antes soluçar como criança, ao mesmo tempo que pedia desculpas, aninhando-se nos braços do moço, e lamentando não tornar aquela noite a mais especial de sua vida. Gato calou, não sabia o que fazer. A ordem das coisas parecia confusa em sua cabeça, dois fios importantes, dinheiro e mulher, haviam entrado em curto. Precisava agir rápido, acalmar ela, ganhar a aposta. Não sabia o quanto gostava da Virgem, não conseguia calcular riscos. Saiu desembestado até o bicheiro que já recolhia sua banca e pediu grana. Insistiu. Jurou. Deixou cordão de ouro penhorado e a promessa que voltaria pra buscar.
A moça não disfarçou a alegria quando viu o montante de notas enroladinhas no elástico. Pegou de uma vez, contou tudinho com a habilidade de trocador de ônibus, e, assim que terminou, olhou para Gato de uma maneira estranha. A três passos de distância, abriu sua blusa listradinha de botão em um lance, como a rapidez de dançarina de tango, revelando o sutiã meia taça e um colo pintado de sardas. Virou de costas com vigor, desceu o zíper da saia cinza que, antes medindo no joelho, foi escorregando até chegar aos pés. O capeta tinha tomado conta do corpo dela que, depois do strip, prendeu o novo bichinho de estimação entre as pernas e só o deixou sair depois de encaixarem seus sexos. Um breve suspiro e as palavras mágicas soaram em seu ouvido “Conseguiu o que você queria.”. Sentiu a virgindade dela indo embora, cedendo espaço devagar, entre gemidos e apertões. Em meio a palavrões e impropérios, Gato foi submetido as mais ridículas das posições, sendo usado como um brinquedo na mão de uma criança mimada e ansiosa.
Dormiram agarradinhos mas não acordaram do mesmo jeito. A luz do sol pelas frestas revelou o que o coração e os olhos de Gato teimavam em não enxergar no escuro: uma casa vazia, com móveis abandonados. Não morava ninguém ali, em muitos e muitos anos. A Virgem havia deixado seu cativeiro ainda na mesma noite, depois de ver seu amado pregado na esteira improvisada. Na estrada, pedindo carona aos caminhoneiros, sua cabeça maquinava a próxima cidade, a próxima vítima. Assim como Gato ela também se sentia uma benfeitora, dando aos homens o prazer do desvirginar. No íntimo teria preferido ser puta, mas o destino – e seu hímen complacente – não lhe davam qualquer alternativa.
Nesta noite, o calor impetuoso de janeiro espantou todos os moradores de casa, lotando o Charanga de maltrapilhos em busca de alguma alegria. Entre músicas de videokê e o tilintar dos caça-níqueis, a mesa barulhenta de uns tantos moços chamava atenção. Pelos gestos, falavam de mulher, pelos palavrões, eram amigos de infância. Nem precisava esticar o pescoço quem quisesse se interar do assunto, porém, do nada, fez-se silêncio. Ninguém cantou, ninguém jogou, ninguém bebeu um gole. O Charanga inteiro reverenciou mudo a entrada da Virgem. Em gestos simples, olhando para baixo, ela entrou, comprou uma coca-cola com moedinhas e partiu, rapidamente. Deixou em seu rastro um perfume fresco, que parecia exalado das flores de seu vestido de pano azul. O estouro da boiada foi inevitável e todos, sem exceção, falavam dela. Filha de fazendeiro, moça prometida de barão assassinado, freira deposta, a cada visita dela a especulação aumentava.
Da mesma mesa barulhenta alguém falou em aposta, a língua oficial dos vagabundos, e casados uns tantos montinhos de 10 pratas, levava o bolão quem deitasse com a pequena. Regras: não valia força bruta nem arma, tinha que ter lábia.
A malandragem se coçou para conquistar a moça. Só de rosas, diziam as vizinhas desocupadas, enchiam dois caminhões, assim como bombons, fabricados nos lugares mais diferentes do mundo. Chegavam também vinhos, cestas de café da manhã, bichos de pelúcia, perfumes importados e até um disco do Julio Iglesias. Tudo amontoado na calçada; a virgem fazia questão de mostrar indiferença a tantos gracejos.
Depois de perder mais uma milhar apostando no número da placa que sonhou, Gato leu o cartaz feito a mão, sob a banca do jogo do bicho, sobre a aposta da tal virgem. Essa era mole. Seu apelido, não por acaso, se dava por sua manha com as mulheres e sua falta de escrúpulo com os homens. Vivia enroscado na esposa dos outros e diziam que, uma vez escapou de fuzilamento com mais de 30 tiros.
O Charanga foi um dos pioneiros dos empreendimentos 24 horas e se orgulhava em arriar suas portas uma vez por ano, apenas na procissão de santo Antônio. Dois meses depois, quando o andor apontou no final da rua, trazendo a imagem centenária do santo homem, meia porta foi arriada e todos os pecadores foram para o lado de fora, mostrar seu respeito. Um tal de se benzer da direita pra esquerda, beijar medalhinha de São Jorge, rezar pai-nosso, demonstrava a devoção, ainda que breve, dos freqüentadores do boteco.
Logo a multidão tomou conta das calçadas e as folhas das árvores frutíferas, que tradicionalmente cobrem o chão, foram tapete para uma cena inesperada: Gato, suando em bicas, carregava junto com outros fiéis a imagem do padroeiro em seus ombros magros, sob o olhar apaixonado da Virgem.
- herege, filho de uma puta! Gritou alguém no meio do bar, pouco se importando com as beatas e crianças vestidas de anjo para pagar promessa.
Gato agiu rápido. Era voluntário na igreja, começou a fazer bico no supermercado, carregando compras e espalhou entre os fiéis que nunca havia tido uma relação sexual sequer com alguém. As semelhanças inevitáveis aproximaram os dois pombinhos e justamente no dia do festejo, assumiam publicamente a relação que, por enquanto, se resumia em beijos estalinhos e mãos dadas na praça. O malandro ralou durante toda noite, vendendo de pescaria a maçã do amor, soltou rojão e rezou muito, dos joelhos ficarem doloridos de tanto sobe e levanta das missas. Na despedida foi surpreendido pela Virgem, que o convidou a tomar um banho e comer algo em sua casa.
A sala, mal iluminada, com apenas duas almofadas vermelhas destoando da estante em alvenaria e as paredes azuis, parecia sufocar Gato, tamanha era a expectativa. Lembrou das tantas meninas que iniciou e, no seu íntimo, se sentia mesmo um benfeitor. De repente, um murmuro. Era um choro, a virgem estava em lágrimas. Falou descompassada de janela aberta, do recolhimento das ofertas para a festa e do roubo a sua bolsa. Não conseguia completar uma frase sem antes soluçar como criança, ao mesmo tempo que pedia desculpas, aninhando-se nos braços do moço, e lamentando não tornar aquela noite a mais especial de sua vida. Gato calou, não sabia o que fazer. A ordem das coisas parecia confusa em sua cabeça, dois fios importantes, dinheiro e mulher, haviam entrado em curto. Precisava agir rápido, acalmar ela, ganhar a aposta. Não sabia o quanto gostava da Virgem, não conseguia calcular riscos. Saiu desembestado até o bicheiro que já recolhia sua banca e pediu grana. Insistiu. Jurou. Deixou cordão de ouro penhorado e a promessa que voltaria pra buscar.
A moça não disfarçou a alegria quando viu o montante de notas enroladinhas no elástico. Pegou de uma vez, contou tudinho com a habilidade de trocador de ônibus, e, assim que terminou, olhou para Gato de uma maneira estranha. A três passos de distância, abriu sua blusa listradinha de botão em um lance, como a rapidez de dançarina de tango, revelando o sutiã meia taça e um colo pintado de sardas. Virou de costas com vigor, desceu o zíper da saia cinza que, antes medindo no joelho, foi escorregando até chegar aos pés. O capeta tinha tomado conta do corpo dela que, depois do strip, prendeu o novo bichinho de estimação entre as pernas e só o deixou sair depois de encaixarem seus sexos. Um breve suspiro e as palavras mágicas soaram em seu ouvido “Conseguiu o que você queria.”. Sentiu a virgindade dela indo embora, cedendo espaço devagar, entre gemidos e apertões. Em meio a palavrões e impropérios, Gato foi submetido as mais ridículas das posições, sendo usado como um brinquedo na mão de uma criança mimada e ansiosa.
Dormiram agarradinhos mas não acordaram do mesmo jeito. A luz do sol pelas frestas revelou o que o coração e os olhos de Gato teimavam em não enxergar no escuro: uma casa vazia, com móveis abandonados. Não morava ninguém ali, em muitos e muitos anos. A Virgem havia deixado seu cativeiro ainda na mesma noite, depois de ver seu amado pregado na esteira improvisada. Na estrada, pedindo carona aos caminhoneiros, sua cabeça maquinava a próxima cidade, a próxima vítima. Assim como Gato ela também se sentia uma benfeitora, dando aos homens o prazer do desvirginar. No íntimo teria preferido ser puta, mas o destino – e seu hímen complacente – não lhe davam qualquer alternativa.
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