quinta-feira, 19 de julho de 2007

SENTIMENTO COLETIVO

*Minha primeira crônica, escrita exatamente há 5 anos atrás.


Cheio daquela multidão suarenta, ameaçadora da tranqüilidade alheia que sarra e é sarrada, o coletivo rebola, treme, bagunça nossa relação com a condução do dia-a-dia. Mais que meio de transporte, ele é palco, é praça, é pedacinho da vida para muita gente. Não existe opinião pública que exclua a de dentro dos ônibus. Naquela de mentirinha, formada por quem diariamente lê jornal, destrincha o caderno de economia e discute sobre o plano de governo dos candidatos a presidência, não existe espaço para erro, ninguém acrescenta nada, no máximo, diverge opinião. Ao contrário do vox populi, mais conhecido como opinião de geral. “Anda geral dizendo”, assim começa todo caô. No entanto a gente acaba acreditando, ora por falta de saber mesmo; ora por ceder a insistência. Pouco importa que seja uma fórmula da bomba atômica, DNA, estratégias, geral sabe de tudo. Alguém diz que viu, que tem parente que estava lá, outro jura pela felicidade dos filhos, cada um tentando convencer de sua maneira. Os mais assustadores são os loroteiros de morro, reféns das inversões de valores, que falam dos bandidos como as tietes de seus ídolos. “Tinha que vê Elias, ali na banguela, trepado com uma bereta, escoltado por Boquinha e Leitão”. É sinistro amigo. O amor também pega carona nessa caravela contemporânea e as metades andam juntas, apertadinhas. Principalmente quando a garganta coça e o dinheiro da passagem paga a gelada. Passar os dois agarrados no mesmo espaço da roleta, também é uma forma de amar. E se ama muito, duas, três pessoas... a fidelidade está entre o indicador parando ônibus e a cigarra laranja soando a despedida. Se pula a roleta, ou melhor a cerca, inclusive nos frescões executivos de vidro fumê. Nele se ama no colo, de lado, com a cortina fechada e até se ama sozinho, espiando e imaginando pelas janelas da Zona Sul. No ônibus muitos amam calado, se olham por entre os reflexos dos vidros, desafiando maridos ou esperam pacientemente no último segundo da partida, o agradecimento de rabo de olho. São perseguições de mãos, sorrisos e carinhos gratuitos, declarações de amor quase desapercebidas. Assim foi o trocador que observava a menina todo dia, e quando ninguém viu, chamou o ambulante para oferecer anonimamente a balinha do coração a ela. A moça iludida procurou seu sonho, olhou para trás e passou a vista direto do galã, que nem se importou, valeu ser o admirador sem rosto. Desdigo quase tudo que disse ao comentar de viagens longas na condução. Os relacionamentos são monogâmicos, se constitui outra família. Na sexta sempre tem pagode, a celebração ao fim de semana, o motorista pára certo no botequim que a rapaziada gosta de calibrar, também fazem tática, guardando o lugar para os amigos. São personagens que falam alto, xingam, liberam toda opressão sofrida durante o dia. O pessoal da limpeza, a menina do sacolão, o segurança, estão todos reunidos espantando a descrença por dias melhores. Parecem crianças cortando a rotina numa excursão barulhenta . E chamar de família não é exagerar, já tive presente em aniversários de trocador, fiscal e passageiro, com direito a bola, salgado, bolo e parabéns. Tudo negociado na vaquinha, sorte de quem faz aniversário no começo do mês quando dá para arrancar mais dinheiro da galera. Um coro para quem se despede reforça a aliança coletiva e diz nas entrelinhas “amanhã tem mais” e apesar de querer paz para admirar a escuridão das ruas e descriminar a turba, dá uma inveja quando desço sozinho na Estrada do Monteiro e nem ouço, pelo menos, tchau.

4 comentários:

Anônimo disse...

Esse sentimento coletivo é bem saudável,`e ótimo para fazer amizades e até quem sabe se abrir com alguém que irá te ouvir sem te julgar,te ajudar e sumir, passando na sua vida como se estivesse sido "enviada" para isso. Pena que atualmente essa aventura esteja mais"emocionante" por conta da bandidagem que nos assola e as pessoas estejam ficando mais temerosas e andam caladas, desconfiadas...Uma pena... Bjão

Anônimo disse...

Mais uma vez consegui visualizar todas as situações perfeitamente!
Sua capacidade de descrever os detalhes é impressionate mesmo.
Beijocas

Anônimo disse...

Gostei muito Aru!
Vc sempre me emociona :)

Beijos

Anônimo disse...

Saudades papaya...