quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CÃO CORAÇÃO

Todo coração tem dentro um cão
Cérbero das vias coronárias
Guardião das semanas solitárias
Couro de besta, uivo de leão.

Dentes repousados sobre a presa
Sangue temperando sua certeza
Raiva transbordando a cada não.

Todo coração é mesmo um cão.
Bravo, destemido e corajoso.
Fraco, covarde e melindroso
faminto de qualquer motivação.

Leal, para quem o alimenta.
Fatal, para quem o atormenta
Igual para quem não tem paixão.

Todo coração. Todo coração. Todo coração é cão.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

12 VEZES

Minha vida caminha para os 30 anos como um navio fantasma sem timoneiro, chacoalhando em seu rumo certo e inevitável, enfrentando marés e corais. Dá saudade das calmarias de domingo à tarde, das férias intermináveis e das promessas de amor eterno cozidas em fogo brando. Tudo se tornou tão passageiro, pontual, provisório, transitivo, que tenho a impressão de estar decidindo o meu futuro com a mesma displicência dedicada as revistas semanais, folheadas ao acaso num salão de beleza. Fazer aniversário me faz olhar para trás e remexer gavetas de bibelôs com poeira da mesma maneira que me força a tornar público e notório, inclusive para mim mesmo, o que devo fazer do próximo ano. Yo no hablo español, não conheci Lisboa, não paguei as contas da TIM, não cumpri metade de tudo que eu queria e ainda enchi a agenda de novas coisas que se entulham no aterro da memória, tornando meu salário mesquinho, apesar dos aumentos, e as realizações mais distantes. Farei 28 anos sem nenhum novo curso de aperfeiçoamento, mas com a fama de cantor de padaria, sem nenhum grande relacionamento, mas com a agenda de telefone cheia sem lembrar o nome de ninguém. Entraram para o meu testamento músicas antigas que voltei a cantar, uma banda nova no mp3, duas doenças inéditas, uma paixão na correspondida, triglicerídeo acima da média, tatuagem nova, muitos litros de coca zero no sangue e mais um canal dentário.

A ansiedade me acordou na quinta-feira com a latência dos filmes de terror de Hitcock. Meus parentes, agitados, vivem a expectativa da reforma de onde moro, financiada pela casa de praia recentemente vendida, sem dó nem piedade, calando os ecos de saudade que se escondiam nela. Foi aonde tive noções básicas do que é ter família e amigos e conviver em comunhão com estes seres tão parecidos comigo, dividindo a grade que se debruçava no pôr-do-sol da baía , os improvisos dos baldes embaixo das goteiras e fantasias de carnaval feitas de saco de carvão. Mudarei meu quarto para uma sala mais arejada, com saída independente, onde comportarei os tantos cacarecos eletrônicos adquiridos este ano; notícia que recebi com sorriso amarelo pois este tempo já passou. Quero uma casa, um bairro, um país só pra mim. Vejo, como o rastejar despretensioso de uma trepadeira, que a vida vai me libertando de coisas, descascando minha pele morta de jibóia para deixar tudo exposto a outras descobertas e aquisições. Assim como a casa de praia, a variant azul, os amigos de infância, o cheiro de café da fábrica demolida e a primeira bicicleta herdada do primo, um dia minha avó se vai, minha mãe e tias também, e precisarei ter amigos, mulher e filhos, para não terminar a vida sozinho, afogado por descuido no próprio vômito. Há 10 anos atrás não pensaria nisso. Mas se deixar passar mais 10 anos pode ser tarde demais.

A voz de protesto, inconformismo, o tudo pra dizer, vão se calando, sumindo como a chama de uma vela, deixando o breu, o nada, engolir tudo. Ficamos mais quietos, mais observadores e mais cansados de lutar por problemas cíclicos como a barriguinha de chopp e os candidatos populistas, heranças malditas de centena de gerações. É verdade que o tempo nos deixa egoísta substituindo a vontade de mudar o mundo pela necessidade de fazer da mediocridade da vida algo um pouco melhor. Conforto passa a ser um diferencial considerado tanto nas propostas bancárias quanto nos serviços delivery. Perto dos 30 ainda temos a imaturidade para lidar com o poder. Compramos pessoas e coisas e a distancia entre os pequenos sonhos e as realizações tornam tudo sem graça. Não esperamos mais até o natal para ter uma bicicleta nova, não toleramos mais que uma noite para transar, nem aguardamos meia hora depois do almoço para entrar na piscina. Somos donos do próprio nariz e temos aval para fazer qualquer merda e defender a tese com legitimidade. Penso nisso porque está chegando a hora de assoprar a velinha e não teria nada para pedir além de saúde e paz. A felicidade de comemorar o aniversário agora divido em 12x no cartão.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

SENHOR ALGUÉM

Enquanto espero ser atendido, observo a praça na tentativa de encontrar um local discreto para me recostar e ler o jornal. Já sei que o atendimento vai demorar. Faz um frio fora de moda na cidade, deixando tudo cinza e desorganizado. Não se vê o Pão de Açúcar, a pedra da Gávea, não há passeio na orla, asa delta, samba na padaria. Tudo se encolhe. Tudo menos o pombo que pousou bem no ombro da estátua. Não sei qual é o personagem da história que ela representa e tenho vergonha de perguntar ao sapateiro, que sisma em costurar meu all star recém descolado. Parece algum membro da realeza, com muitos babados e pose burguesa. O pombo faceiro, no entanto, pouco se preocupa, esfrega o rabo no nariz do moço ali representado e logo aparece outro e outro em revoada. Uns quatro pássaros descansam agora sob seus ombros.
Penso no escândalo deste nobre se o acontecido fosse real. “Ultrajante. Nefastos. Escória.”. Seria um chilique só. Os novos amigos penosos que antes rabiscavam o céu, nem ligam e displicentemente conversam entre si, animados talvez com algum aposentado caridoso e seu saquinho de pipoca. Logo tomam o rumo novamente deixando o Senhor Alguém – nome que o batizei – sozinho. Que inveja ele sentiu! Um sujeito que galgou o caminho da glória, pisou no tapete da fama ali, preso em bloco de cimento, ostentando o único título que tem: a plaqueta gasta de cobre. Acho que a fama tem este preço. Enrijece, congela, esfria os corações. O que será melhor: ser um pombo como tantos outros pombos e não ter fronteiras ou ser tão reconhecido e venerado a ponto de não poder se mover para lugar algum?

Enquanto ainda observava o vôo dos pássaros, um grupo de adolescentes se amontoou no banquinho aos seus pés. Eram bonitos, sadios e traziam mochilas e um violão velho cheio de adesivos. O jovem cabeludo que o empunha tinha a mesma empáfia do Senhor Alguém, tomando a atenção para si depois de dedilhar o solo clássico de uma banda americana.
Alguns abraçados, outros distraídos escrevendo algo nas folhas de trás do caderno. Eram mágicos e poderosos como o circo que chega na cidade sem pedir licença. Os mais afoitos não demoram a descobrir meu novo amigo de lata. O imitam em pose, o patolam, ridicularizam suas calças largas e por final amarram sobre sua cabeça, fazendo uma alusão ao personagem do Rambo ou ao Renato Gaúcho, não sei bem, uma fita em sua testa. Não há quem dê limites para estes garotos grandes que vão dominar o mundo em breve, sendo médicos, advogados, políticos ou poetas. Vão embora cantando com tal alegria que deixam um rastro de inveja. Pois é Senhor Alguém, o reconhecimento não abre vagas para todos os amigos, em cima do seu monobloco só cabe você, por exemplo, por isso eles se vão, sem dó, buscar novos caminhos como uma manada de búfalos que nunca param.

Caminho de volta para o escritório devagar, rodeando as grades verde-musgo da praça. Ainda dá tempo de assistir ao passeio da babá que leva todos os dias o menino e o cão para passear. O poddle, alvo e exuberante, cheira todos os cantos, correndo ensandecido com a língua para fora em busca de novidades. Admiro a alegria canina, tão simples e sincera. A criança tenta acompanhá-lo mas cai de joelhos e ensaia um dengo. A moça, ridicularizada com seu uniforme de babados, rapidamente o distrai mostrando a estátua garbosa ali presente. Ela mesmo lê a placa com alguma dificuldade, gesticulando e explicando com caras e bocas quem seria aquele homem. A menininha, de cachos finos e ralos, aparentando ter uns quatro anos, parece compreender bem ou pelo menos achar graça da história que acaba de se descortinar. Falam de guerra, de batalha, de prestar continência, de um tiro perdido bem no meio do coração. A menininha não se espanta e, repetindo um gesto que viu em algum lugar, repousa sobre os pés da estátua umas flores murchas e incompletas colhidas no passeio. Já me disseram que foi a chuva mas posso garantir que vi Senhor Alguém chorar.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

QUARTA OU QUINTA

Nesta quarta o grupo de pagode canta seu mesmo repertório, as pessoas repetem suas mesmas mentiras e o guardador de carro cobra o mesmo preço a noite toda. Aqui dentro tento dormir cedo e não comer gordura. A urgência é de mudar ou pelo menos cuidar do que se tem. Tocar as músicas esquecidas, terminar as crônicas mal escritas, matar o chefão adormecido em algum jogo de vídeo game. O telefone acumula mensagens de carinho, ligações não atendidas cheias de esperança mas sinto um sono terrível, uma atração insuportável pelo nada. Assim é o desamor segundo Aruanã Bento, um dedo ferido, no qual o hematoma não desaparece, mas vai sendo expulso lentamente conforme a unha cresce. Não existem arestas a cortar nem lamentações a fazer, só uma imensa preguiça de subir a ladeira, de recomeçar o dever de casa que eu ainda não aprendi a fazer.
Ela procura, volta, sorri, joga suas pistas falsas de migalhas de pão. O organismo, revolto com tantas noites mal dormidas iludidas, nem deixa meu coração brincar. “Liga mais tarde?” Digo que sim, mas não. Com a certeza da total falta de tesão vou ao supermercado sem cueca e termino a noite vendo um filme clichê. Logo amanheço para as atividades mecânicas de ir, vir, escrever, ler e reler, no entanto, todos os dias escondem seus pontos, virgulas, reticências e na solidão do reflexo do vidro do metrô é que vejo meus olhos, ora iluminados, ora opacos, refletindo o que vem a ser repetitivo na minha vida. Ora vagões lotados, ora estações vazias.

Já nesta quinta amanheci doente, o corpo me fazia lembrar da existência de todos os músculos e artérias dilatando em dor. O sol por mais que se esforçasse não conseguia mudar o gelado que vinha de dentro. Me lembrei da maçã raspada com a colherzinha, vazia, sem polpa e vitamina, só uma casca mole, dispensável. Lembrei do colo de minha mãe, que pouco tive. Lembrei que depois deste amor, qualquer outro amor precisa ser conquistado. Ninguém, por mais subserviente que seja, ama sozinho. Lembrei como é sentir falta de alguém. Talvez me torne um velho solitário e hipocondríaco, andei pensando, pois tento ludibriar minha desconfiança com remédios mais caros e não genéricos, com médicos amigos e seus diagnósticos caóticos ou repetitivos, quando na verdade preciso apenas de uma mão quente, que me acorda em sobressalto para verificar a temperatura da testa ou lembrar do remédio esquecido na madrugada. Tudo que meus olhos febris procuram são outros olhos que tenham a certeza do bem que estão fazendo.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A LUA E A RUA

Em um instante preciso, estamos em comunhão
Seu tapete encantado lustra os passos, me mostra o caminho.
Sou gigante e sou menino, com a coragem e o pires na mão.
A destreza me faz andar sozinho. A tristeza, não.

A lua é a rua, que aponta minha direção.
A rua é a lua, onde pouso minha solidão.

Me reconheço em suas calçadas, galopando em cavalo de pau.
É a linha reta de uma infância torta, biografia escrita no chão.
Mas quem se importa? É só mais uma história da inocência morta
Viva a orgia nossa de cada dia então.

A lua é a rua, que aponta minha direção.
A rua é a lua, onde pouso minha solidão.

A VALSA DO AMOR IMAGINADO

Você some e aparece feito bola de chiclete não adianta que eu não quero explicação
Você aparece e some, lua cheia, lobisomem, uivando e arranhando meu portão.

Um dia após o outro, você com sorriso torto, alegando ser sua maré de azar
Me estende uma flor, diz que sou seu grande amor, ressuscita minha vontade de casar.


Estar contigo é festa, ta escrito na minha testa, já te disse isso mil vezes por que não?
As amigas não me entendem, dizem que estou carente, fazem tudo pra mudar minha opinião.

O seu nome na minha agenda, é razão pra meus poemas, que eu rasgo com vergonha de mostrar. Repito simpatias, minhas preces todo dia, santo Antonio um dia vai me abençoar.

Por que você não fica comigo?Não me assume como sua namorada?
Não quero um amigo colorido. As cores sem o amor não valem nada.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

COLCHA DE RETALHOS

Nunca me acostumo com o freeson que antecede uma apresentação. Todos olhando, esperando, me causa um enorme incômodo. Este sentimento é substituído pelo cansaço ao final. Me sinto carente, indefeso, esquisito, como se todos os sentimentos tivessem escorrido pelo palco durante as quase três horas de show. Desta vez não seria diferente se ela não tivesse aparecido assim, no susto. Estava de lado, conversando com alguém, me vigiando com o canto do olho, pronta para fingir o ritual assustado do encontro, provocando a revoada de borboletas no meu estômago. Fumava e repetia um de seus gestos típicos ao tragar, franzindo as sobrancelhas, antes de rir e comentar algo que não entendi. Nessa hora meu coração telegrafou seu memorando para a razão: é ela rapaz. Vai fundo.

O amor traz muitas incertezas penduradas em seu pára-choque mas a paixão não. Ela atropela, se joga no peito alheio, como um labrador faz ao ver o dono chegar. Me aproximei tentando montar ironias e piadinhas a fim de provocá-la mas todas as mulheres possuem o dom de anteceder os segundos. A dois passos atrás, ela mirou seus olhos brilhantes e respirei aliviado, como o piloto ao ver sua pista de aterrissagem. A mulher da minha vida estava de volta. Nossa conversa, inteligível para os demais, resumira-se na repetição de piadinhas que construímos, momices particulares que nos acompanhariam por álbuns de fotografias, cartões de natal e roda de amigos, contadas e recontadas incansavelmente. Gosto tanto do nosso contraste de cor, da nossa maneira de roçar os braços e nos observei em absoluto silêncio, apertando seu corpo pequeno contra o meu, remontando algo ancestral, comparado somente com a saudade que o continente africano deve sentir das Américas quando ainda existiam juntos. Fui interrompido pelo cutucão no ombro de outro alguém a minhas costas. Só então pude reparar e reconhecer. Tirando meia dúzia de rugas, uns pêlos assanhados de barba pra fazer e a barriga, pela primeira vez saliente, poderia afirmar que era o mesmo amigo, o grande amigo que conheci enquanto saques e cortadas no colégio eram a nossa maior ambição de vida. Trocaria todas as festas surpresas de aniversário e dias de sol por aquele momento, tão cheio de perguntas e respostas interessantes. Como as crianças que puxam seus brinquedos para a sala querendo dividi-los com as visitas, fiquei inquieto, indo de um para o outro, emendando conversas, costurando interesses, chamando gente, apresentando outros, até sentir a mão dela me tranqüilizando, passeando pela minha nuca e entrando com seus dedos entre os pêlos, desbravando esta pequena área com a autonomia de um nativo que caminha nas pedras. Não me lembro o momento que trocamos a agitação do bar pelo colchão macio e quente mas pelo ressonar de gente não estávamos sozinhos. Viajamos para algum lugar no meu passado que não demorei a reconhecer no escuro. A maré chiava devagar e a meia parada do ônibus na porta, se preparando para ultrapassar o quebra-molas eram a trilha sonora: paramos na casa de praia da família Vidal, onde vivi boas coisas em família. O cheiro doce, o piso áspero, os janelões abertos, sem medo do medo. Destranquei a porta, a outra, olhei os estandartes de carnaval pendurados que, não faz muito tempo, eram mais altos que eu. Sentia que por baixo da poeira, momentos de felicidade se escondiam, prontos para nos pregar uma peça e recomeçar seu falatório. Na extremidade da casa um pequeno mirante, onde se via a Rio-Santos e toda a Baía de Mangaratiba. Me sentei onde meu bisavô repousou ereto pela última vez antes de morrer e, assim como as colchas de retalho mofadas que estendíamos para pegar um sol, minha vida estava completa, com seus quadradrinhos tão diferentes e bem costurados. Chorei por não ter palavras de gratidão.

No caminhar discreto do ponteiro de segundos, acordei e observei o relógio da Central do Brasil, apontando uma hora de atraso. Eu deveria estar trabalhando se não fosse o engarrafamento. Nas mãos um livro sobre pessoas que se foram, sobre amores impossíveis, lembranças e perdas necessárias estava sendo apertado com toda força do mundo. No peito, saudade, culpa e impotência. Não confessarei pra ninguém o quanto queria ter tudo isso de volta.

terça-feira, 10 de junho de 2008

INVERNO PARTICULAR

Acordei com as veias endurecidas feito galhos secos e um sangue grosso de geléia de morango. O coração bate acelerado e sobrecarrega as baterias lembrando meu antigo Chevette tentando vencer as ladeiras do pontal do Atalaia. Ele não chegou lá, como eu. O dia dos namorados vem anunciado na rádio, no job de um cliente, na promoção do shopping, no convite para minha banda tocar. Não faço do dia 12 de junho um velório onde ficarei em volta de tudo que já morreu, relembrando as histórias felizes. Necas. Esta seria uma data oca que passaria batida se não tivesse ninguém morando nela, se eu não tivesse enfiado com colheradas de aviãozinho, goela abaixo da minha razão, uma mulher que ama outra pessoa, não a mim. Passar esta noite cantando para casais apaixonados, que repetirão comigo suas juras, tomando minha voz emprestada para dizer no tom certo o quanto estão apaixonados, se torna até assustadoramente encantador.

Um isqueiro que ela perdeu, um espelho de corpo inteiro, uma viagem, uma tatuagem. Precisaria de décadas para dar tudo que sonhei um dia. Mas ela não quer nada, vive dizendo com total desprezo. Não quer vínculo, responsabilidade, não quer estabelecer uma relação. Talvez para um dia me deixar dormindo e com um bilhete escrito no espelho se despedir pra sempre sem dor na consciência, sem levar lembrança consigo. Engulo este pirulito de areia e com um sorriso amarelo uso minha expressão gasta de amante barato fingindo não ligar. Caso contrário ela distancia, silencia, finge partir. Afinal para discutir relação, se enrolar na coberta, cuidar de verdade, ela já tem companhia. Resta-me apenas oferecer a boemia, o papo leve, os risos, a sacanagem. Definitivamente não tenho vocação pra isso. Quero alguém que me ame até nas luas mais minguantes.

Ouço os amigos, o colega do trabalho e a moça da padaria. Todos são unânimes no pessimismo. Mesmo assim assumo o risco desta corrida com os cadarços desamarrados, sabendo que em algum momento cairei. E não falta gente torcendo para que isso aconteça, seja pela dor de cotovelo ou pelo oportunismo de me ver fragilizado. Hoje eu entendo o Forrest Gump e sua eterna vontade de correr, sem saber se está em busca de algo ou fugindo dele.

Já se passaram três meses desde aquele dia que os strobles e slide-flash chacoalharam dentro de mim e não perco tempo em avaliar se vale a pena ou não, simplesmente porque a vida acontece com seu fluxo irregular, mas me culpo ao permitir a infiltração deste amor pelas paredes, me culpo pela prepotência de achar que posso manter tudo sob controle, me culpo pela ingenuidade de criança encantada com o picadeiro acreditando nos palhaços que choram e nos trapezistas que voam. Talvez este dia dos namorados torne-se um marco, o reinício do meu inverno particular, onde depois de noventa dias de sol quente e flores na janela, a saudade caia estragada do pé, o horizonte desapareça em nuvens e a esperança hiberne por mais dois longos anos.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ENCRUZILHADAS

Por Talita Balaroti

"Tu é pra mim o inesperado. E o inesperado nega a razão, nega a experiência, nega a inteligência. E os erros inesperados são as evoluções provocadas por uma alma imoral. Uma alma que busca libertação, que trai expectativas e transgride as morais do corpo".


Se não fosse a certeza de que aqueles dias no Rio, escureceriam a sua pele, renovariam seu humor e apertariam sua conta bancária, não teria ido.
Uma desculpa esfarrapada no trabalho, duas ligações a longa distância. Eram três da tarde e já estava andando vendo o arpoador. Tava inteira. E só se sentia inteira quando questionava, quando tinha dúvidas. Lembrou: é sempre na minha sutileza que deixo a dúvida se instalar. Parou novamente, recordou de quando discutiu isso com um amigo que já fora seu amante: a dúvida se instalar ou a certeza pregar?
Sabia que naquela noite acabaria na Lapa. Melhor lugar não há, diria D2. Democráticos.
Estava ainda com o biquíni de praia por baixo da roupa curta, afinal, nada melhor para esquecer a melancolia dos dias frios da capital do sul.

Suava em bicas, e dançava, e dançava. Um Moreno lindo tirou seu ar, mais do que toda a dança daquela noite. Pesou: tudo começa com a admiração que desperta o desejo, ou seria o desejo que gera a admiração? Já carregava naquele primeiro olhar: cobiça, ciúmes, inveja, admiração e desejo. Porque para ela, esses tornados nunca caminharam separados.
Suaram juntos. Tomaram café da manhã e falaram de trabalho, e ela levou pro sul a cor preta e vermelha desse Filho de Exú. E se infestou de sua astúcia, sua vaidade, sua indecência. Orixá do movimento teve o poder de fazer o acerto virar erro, e o erro virar acerto. E foi assim que ele a libertou.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

CORAÇÃO EM PAUSE

O amor é como poeira. Vai invadindo pela fechadura, pelo vão debaixo da porta, quando ninguém vê. Aos poucos, começa a tomar conta do ar, a sufocar. Mas hoje foi dia de faxina e o sentimento mais exaltado do mundo foi varrido para o quintal. Deixe ele lá. Assim como a conta de celular e o cartão de crédito, estou convencido que não posso usá-lo impunemente. Mas ela pede, provoca, estende a mão, sorri. Não resisto e toma de amor, toma, toma, toma. Ainda bem que o SERASA não anda por estas bandas do coração.

Não me ensinaram a amar e tenho dúvidas sinceras se alguém a minha volta amou de verdade. Nos meus álbuns de fotografia estão sorrisos alegres, olhares de esperança, abraços de alívio. Amor, necas. O que aprendi foi por extinto, no pulo do gato, e minha mentalidade emocional sinto que tem apenas oito anos. Não há outra explicação senão a inocência para me entregar de mãos beijadas a pessoas que nunca se propuseram a cuidar de mim. Criança idiota, agora fica aqui dentro me pedindo colo e atenção.

Vivo hoje uma excitação vista em filme de ficção. Tenho a capacidade de ressuscitar meus dinossauros mas morro de medo deles acabarem comigo. Sem eles não há lágrima, noites solitárias ou declarações cheias de babadinho. Só hedonismo. Foram dois anos satisfazendo apetites sexuais e exigências do ego. Na noite, homem decente é peça rara. Homem solteiro então, vale ouro. Conheci gente boa, gente fina, gentileza, gente só, que somem e aparecem. No final das contas, as companhias na boemia estão vivendo momentos passageiros de suas vidas e pegam carona em você até a próxima estação. Numa semana estão solteiras e disponíveis. Na outra, casadas e condescendentes. Resumindo: fiz da exceção da vida a regra destes meus dias.

Graças a Deus ela apareceu e trouxe de volta a beleza das coisas simples. É uma mulher com muitos valores e poucos pudores. Perfeita pra mim. Tem a malandragem da rua e a nobreza no mesmo ser e confunde meus faróis que nunca conseguem acompanhá-la. Sou antes de tudo seu admirador, seja pela fome que já passou ou pelas manias que até soam como certo mimo a si mesma. Me impressiona como ela conhece meus segredos e me desarma impiedosamente, como fazemos com os laços, por isso guardo sempre no bolso a meia-culpa, que utilizo sem dó.

Mas ela não é minha, digo sempre para mim como um mantra tibetano. Quando não convencido, abro sua foto acompanhada, no pc, e retalho minhas esperanças mais uma vez. Hoje me sinto apaixonado pela grama do vizinho onde, a cada ausência sua, pulo a cerca e vou brincar. Nosso relacionamento é intenso, verdadeiro, mas vive sob a vigilância do calendário, como uma menstruação. Poderia até te dizer que, como bom amante, acredito um dia assumir este cargo de confiança mas a descrença no amor também puxa meu outro braço rumo ao individualismo e a proteção de mim mesmo. Ainda não sei se sou o alpinista com fôlego infinito ou o cachorro que corre atrás do próprio rabo, na dúvida, dei um pause no meu coração e entreguei o controle remoto pra ela. Se vai acelerá-lo ou ejetá-lo, só ela poderá dizer.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

CONSIDERAÇÕES PARA UM SOLITÁRIO

De vez em quando, ao descer uma rua movimentada, fixe os olhos na multidão. No meio de casais apressados, grupos de amigos barulhentos e famílias felizes, sempre existe um solitário. Ele é o único que vai olhar pra você, mesmo que seja com um olhar despretensioso ou desconfiado. Não que te considere especial mas porque talvez não tenha mais nada a fazer. Porém não o considere uma vítima, pois, tirando Vinícius de Morais, é possível qualquer um ser feliz ou, pelo menos, se virar sozinho.

NO CINEMA – Nada de entrar depois do trailer. Um solitário de verdade chega com a luz acesa. Como não tem ninguém para conversar é interessante ocupar o tempo e o silêncio com o barulho no balde de pipoca. Coma sempre as do fundo primeiro e remexa bem, alegando para si mesmo que está salgando o lanche uniformemente. O segredo é fazer tudo aquilo que não faria se estivesse acompanhado. Se escangalhe de rir, coloque o pé para o alto ou durma quando estiver muito chato. Na saída, controle o ímpeto de comentar o filme e deboche, com risos abafados e balançar de cabeça, dos comentários absurdos.

NA BOATE – Cuidado, pois ali se trabalha sem retaguarda. Chegou na gatinha e ela te esnobou? Você não tem o ombro amigo para praguejar e tem que ficar parado no mesmo lugar com cara de pastel. O bote é preciso. Finja que não está nem aí para ninguém. Segure uma cerveja mesmo que esteja vazia. Dance moderadamente, senão pode dar pinta de que não gosta da fruta. O segredo para escapar da tentação é curtir o som de olhos fechados. Te dá um ar meio esnobe, como se estivesse ouvindo algo que ninguém está, e permite que te admirem mais calmamente. Se pintou o clima, negue-se a dizer que está sem ninguém. Não é que você vai dar uma de Pedro traíra não, mas é uma decisão estratégica. Mulheres nunca saem sozinhas e portanto suas amigas vão gostar se souberem que você tem um grupo de amigos disponíveis prestes a chegar.

CELULAR – Este é mais que um amigo. Ele é o portal para transformar as situações. Treine diálogos longos para falar sozinho, sobre assuntos variados que possam te aproximar ou afastar de uma situação. Importante é mostrar veracidade respeitando os tempos de chamada e resposta do amigo imaginário. Caso contrário parecerá que está contracenando com Tarcísio Meira. Um cuidado importante: quando estiver fingindo com o aparelho no ouvido mantenha-o desligado. Imagine se toca na hora...

NO ESTÁDIO – O mais fácil de todos. Não vão faltar tapinhas das costas e comentários. Se estiver com a camisa do time, melhor ainda. Mesmo assim, o importante para se enturmar e ganhar confiança é esperar os minutos de silêncio e ofender alguém. Qualquer um. Xingue mesmo. É certo que conquistará risadas. Depois cante todas as músicas e no final diga em alto e bom som que vai beber todas no bar da esquina para comemorar.

MOTEL – Teste final para quem tem coragem de andar sozinho. Preocupado em não sofrer retaliações encare um dos personagens: 1)bêbado feliz 2) empresário cansado 3) Amante ansioso. Lá dentro, ligue a TV com o canal pornô bem alto, deixe a porta entreaberta e fique apenas de toalha. Se pintar uma solidão, fique esperando o elevador no andar até alguém aparecer. Encare-o como se estivesse em uma fila do banco e só interrompa a conversa para dizer que vai voltar ao quarto porque sua mulher está impossível hoje.

Como pôde ver, mesmo sendo trabalhoso, é perfeitamente possível se divertir sozinho. Um sintoma típico de sua mudança é quando, encarando-se no espelho, nas muitas madrugadas silenciosas, você revê seus atos e tenta simular aquilo que os outros pensaram de você. É neste momento que a lágrima desce e você chora. De rir.

quinta-feira, 20 de março de 2008

DONT RAVE MONEY

Como todo filme de terror o início é cativante. Eu e um mineiro contra quinhentos gaúchos barulhentos. A disputa?O título de melhor vídeo publicitário no Festival de Gramado. Perdemos, fique sabendo. Na saída, uma filipeta “festa de encerramento?Foda-se, estamos dentro”.

Depois do sobe e desce de táxi, racha para pagar a entrada, lá estávamos. Era minha primeira vez numa RAVE e não sabia ao certo como me comportar. Despistei o amigo na primeira curva e fui me aventurar. Eu tinha namorada, era supervisor da agência, uma postura a zelar. Ficar ao lado do aluno era queimar o filme, já bastava ter perdido um prêmio que estava no maior clima de já ganhou.

Logo na entrada fui entendendo o mapa do local: Lado esquerdo, dedicado ao som ao vivo, do lado direito, som mecânico e embaixo, o mais cheio, o underground. Tudo igual. A música que chacoalhava a galera era a mesma. Um bate estaca de compasso repetido no qual o DJ usava o mesmo recurso que eu nas festas juvenis. Ora baixava, ora escancarava o volume. Deixa estar. Fora da habitual pegação sulista, encostei-me no balcão como um quarentão recém-separado, preparado para rodar as pedrinhas de gelo com o dedo. Daí que tudo começa. No paga daqui, paga de lá, não sobrou nada na carteira e o lugar, pra variar, não aceitava cartão.

Foi pensar em sentir sede e a saliva logo sumiu e, não demorou muito, a língua começou a crescer na boca, como a de um camelo. Implorei, pedi, juntei as mãos, mas não rolou. A moça do caixa estava inflexível, com aquele complexo de pequena autoridade irritante, me pediu licença e continuou seu trabalho. Primeira alternativa: O aluno. Ele era quietinho, franzino, gente boa, não negaria emprestar um qualquer pro amigo.

A incursão na multidão talvez tenha sido a melhor parte desta história. Eu, e um mar de loiras, sacudindo, dando e tomando beliscão na bunda. Pensar que eu poderia estar encaixado numa futura miss Brasil me deixou eufórico. Com tesão, vá lá. Aperta de um lado, afrouxa do outro e nada do meu camarada aparecer. A segunda tentativa seria usar a carioquice que Deus deu, mas logo vi que não dava. Com o pancadão comendo solto, eu poderia ser persa, judeu, iraniano, que ninguém conseguiria ouvir minha voz. Do nada, alguém pega na minha mão e um sorriso lindo – e úmido – apareceu na multidão. Acho que na RAVE é assim, na pescaria. Fui seguindo, muito mais de olho no seu copo de chopp que nos dotes físicos. Era na descida do underground e a fumaça já anunciava: aqui é chapa quente.

“Essa é fulana, essa é ciclana”, nem perguntaram meu nome, e nem me deram bola. Até hoje acho que a moça me confundiu com alguém, afinal fiquei ali, sem lá nem cá, ignorado solenemente por umas meninas que dançavam alucinadas. Nunca vi animação assim. Filmei o ambiente e nenhuma bebida, agora, somente copos vazios. Do pouco que compreendi naquele festa do inferno foi “Quer uma bala?” Aceitei de imediato. Já que eu não podia dar uns beijos, pelo menos algo para estimular a salivação. Do nada, fui tomado por uma onda esquisita, como se eu tivesse engolido todos os agudos e graves do ambiente. O coração socava meu sangue para os quatro cantos do corpo, dava para ouvir, e fui ficando emocionado com a minha própria existência de ser. No primeiro esbarrão senti todo os meus pêlos do braço ouriçados e o bico do meu peito ficou duro. Cruz-credo. Queria ir embora mas senti tanto medo que comecei a chorar e rir num destempero de sal e doce. Não sei qual foi a hora que comecei a dançar mas talvez tenha sido a melhor saída. Batia o pé no chão feito índio e passava a mão pela cara e a cabeça, suado e despenteado. Minha alegria durou até o celular tocar:

- Alô?Amor?Sou eu sua namorada...
- E o prêmio?Você ta na farra. Dá pra me explicar?

Não tinha percebido mas a minha mandíbula havia também travado com essa bala do capeta e nem conseguia falar nada. Quase babando, tentei escrever uma mensagem mas as teclas haviam triplicado e se mexiam conforme a música. Fui me escorando e descendo o corpo, lentamente, escorregando até o chão. Sentei, encolhi as penas, e percebi uns dois ou três malucos agarrados na caixa de som, tentando entrar pela corneta, pelo alto falante, completamente estranho, lembravam cupins na lâmpada em noite de verão. Com medo de ficar como eles, segui as paredes e depois de girar naquele buraco acabei encontrando o ar puro pela saída de emergência. Era demais pra mim. Descobri uma secura na boca como nunca havia visto e me peguei correndo a caminho de casa, de boca aberta, disposto a vencer quilômetros sozinho, a pé. Putz, começou a chover. Bom, agora o que não falta é água.

sexta-feira, 14 de março de 2008

PARAÍSO DE MIM

Tenho dias de rocha. Geralmente estes são motivados por notícias boas, expectativas ou conclusões pessoais. Mas também tenho dias de areia. Nestes me fragmento em mil e me dissolvo em ausências, discordâncias e saudades. Nos dias de rocha, sou pedregulho rolando ribanceira abaixo, não tenho dúvida nem medo. Aproveito a paisagem que passa na janela, sou o durante, não o antes, muito menos o depois. Nos dias de areia, não tenho rumo próprio, dependo do vento que me orienta e torço para encontrar a quina, o cantinho, onde a sujeira se acumula e o momento dá um tempo para eu ser feliz. Posso dizer que sublimes são os encontros onde alguém une seus dedos mágicos e, fazendo um punhado de mim, me faz sentir gigante. “Afinal basta cair um grãozinho no olho, que já era.” diz ela, se divertindo. Porém não há dúvida da decepção que rege os encontros destruidores de castelos, com suas ondas de egoísmo e insensibilidade, arrastando canais e trincheiras de alga e conchinhas do mar. Não julgue. Taque a primeira pedra quem nunca foi areia, grãozinho qualquer que amanhece encolhido no cantinho do dedão, torcendo para não ser espanado. Varra a primeira areia quem nunca foi rocha, dando cabeçada no vazio, vendo a lágrima cair sem se mexer. Grande ou pequeno, volúvel ou inflexível, estes são os paradoxos do paraíso de mim.

Nesta praia que me tornei sobram espaços para ver o pôr do sol e os cocos saltam
desanimados no chão. No entanto, com a soberba dos grandes resorts, insisto em limitar seu acesso, insistindo na segurança de ter dias completamente iguais. Às vezes, quando o frio bate, cato com um rastejar de lagarto as últimas pegadas que deixam sua identidade displicentemente, sem imaginar o quanto tatuadas elas ficaram na minha memória.
Elas são esquecidas apenas quando os vaga-lumes invadem minhas terras. Sou apaixonado por eles. Lindos, matreiros e egocêntricos, que ofuscam as estrelas e me acordam de uma letargia infinita. São como as fadas que tocam minha esperança com suas mãos leves e me fazem acreditar em coisas mágicas, inimagináveis. Espero aqui sentado, o dia que me crescerão asas e aprenderei com eles o quanto de amor próprio é necessário para se fazer acender por completo. Por enquanto aproveito sua breve presença, fazendo troça do meu amor, fazendo me segui-los por horas até o momento que cansam e desaparecem na escuridão.

Um dia, esta porção de terra, perdida no meio de tanto mar, já foi agarrada a outra porção, que por sua vez se agarrava a tantas outras que me davam um título de cidade ou país. Hoje bate um medo quando vejo as luzes da cidade no horizonte, se afastando de vento em popa e sempre me pergunto se não são mais felizes aqueles que se deixam habitar por qualquer trocado, colando cartazes de propaganda na porta do coração, acabando por criar uma superlotação sentimental. Acho que não. Afinal, ninguém paga pelo silêncio das manhãs sem culpa, da liberdade de ir, vir e ser. Quando esta nau em forma de ilha se encontrar com sua alma gêmea não pegará emprestado suas belezas naturais e sim as multiplicará, afinal, amor próprio é olhar para dentro de si e admirar sua própria paisagem.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

FIGURINHAS REPETIDAS

O fato de estar escrevendo agora, antes do combinado, esconde uma verdade: eu não quero me despedir deste dia. Já amanhece na cidade, mas dentro de mim, estrobles e slide-flashs ainda se chacoalham como vaga-lumes apaixonados. No meio deles, ela. Na minha pele, outras lembranças também se misturam, ora sinto o cheiro da máquina de fumaça, ora sinto seu perfume.

As calçadas estão vazias e sujas, quase silêncio. O homem que joga água na calçada para começar o dia de trabalho na loja, me olha com desprezo. Não sou vagabundo, apenas gosto de sair segunda feira. Caminho no sentido oposto, incomodado por virar de costas para o local onde tudo aconteceu. A paixão é como uma conjuntivite que não deixa dúvidas sobre seus sintomas. Vírus sacana, que me deu olhos turvos e por mais que tentasse olhar para outras, era ela que eu queria. Só ela, como se tivesse sempre me pertencido e todo o motivo pelo qual enfrentei corre-corre da chuva, caixa eletrônico, almoço em 30 minutos e ressaca inevitável, se compensasse naquele momento que cruzamos nossos sorrisos como duas gôndolas à passeio. Pelo reflexo na vitrine apagada da rua percebo que até agora ainda guardo parte desta alegria nos cantos da boca.

Conversamos como velhos amigos e foi de forma tão natural que não conseguiria lembrar como me aproximei. Falei, falei, falei até o ponto de me sentir idiota, como uma menina que encontra seu pai pela primeira vez e precisa mostrar urgentemente sua importância, sufocando um medo terrível de vê-lo partir novamente. No começo tentei desviar, blefar, minimizar, usar todos os artifícios que 18 meses de boemia e solidão me deram, mas bastou ouvir suas ironias e sentir sua mão delicada sob meus ombros, para deixar escapar elogios voadores e coloridos. Negar elogios a uma mulher é tão difícil quanto resistir a sobremesa.

Sentado no umbral do portão, recebo o afago do meu cão, me revisitando com seu nariz gelado e rosa. Eu que sempre o critiquei, por seu amor incondicional, quase patético, me vejo dividindo com ele o mesmo olhar melancólico a cada vez que a porta se fecha. Quando a convidei para sair dali e o pedido foi negado, soou o alarme, o reservatório do coração encheu de orgulho, expulsando as expectativas pelo ladrão. Me afastei e fiquei de longe, como uma esposa de pescador na beira do cais, vendo minhas esperanças se afastarem a cada rapaz que se aproximava dela. Ainda me assusto com seu jeito de mulher resolvida, fumante irreversível, que nunca está com o copo vazio tamanha é a oferta masculina para enche-lo. Ainda não encontrei em mim o motivo pelo qual me atraio por mulheres assim, de sorrisos largos e perigosos. Definitivamente jogos de amor são para adultos. O cara se aproximou. Abraçou. Fungou. Acarinhou. Cochichou. Partiu. Opa, melhor eu voltar.

Nunca gostei de apostas e acho que quanto mais necessitado o homem está, mais ele sucumbe na esperança por uma vida melhor repentinamente, porém hoje a bola caiu no 22 preto, onde, sem perceber, eu escondi minhas fichas. Sinto um troço preso na garganta a cada vez que penso nela, pois não consigo expulsar os pensamentos, muito menos engoli-los. Porém, mesmo com este refluxo, gozo de um prazer enorme ao relembrar este encaixe perfeito, geralmente encontrado nas peças de quebra-cabeças e nas rodinhas de caminhões de madeira. Sim, finalmente nos beijamos e nos olhamos e nos sentimos, tão efusivamente, que me confundi com ela mesma, numa cumplicidade rara. Nem a luz fria e impessoal do salão principal nos separou.

Tenho que ir trabalhar e resisto para não dormir sentado aqui. O sol já acena no final da rua e o cheiro de café abraça minha casa anunciando uma avó com insônia. Tiro do bolso nossas figurinhas repetidas, que não canso de rever, talvez para reafirmar que na vida colecionamos o mesmo álbum. Somos de escorpião, vamos estudar em outro país, somos debochados e risonhos, cantamos as mesmas canções. Porém esta é apenas uma noite, não uma vida, como ela costuma dizer, e preciso controlar meu impulsos de homem-bala. Com o lamento de um devedor que precisa penhorar seus bens, abro as mãos e ela escapa entre meus dedos, sem promessas, nem juras. Nada.
Estas são as regras da noite, onde o ideal e o desejado nem sempre andam de braços dados. O táxi amarelo some depois da curva à direita. Já amanhece na cidade, mas dentro de mim, estrobles e slide-flashs ainda se chacoalham como vaga-lumes apaixonados.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

ACONCHEGO ENTRE JOBS

“Sabe qual é a melhor coisa que Deus inventou depois da mulher?O fone de ouvido”

Lancei a piada como um espirro inevitável que respingou mais longe que o previsto. Pior que falar demais no trabalho novo é perceber, só depois, que a maioria em sua volta é mulher.

Amasso e coloco meu comentário no bolso torcendo para não ter sido ouvido e dou graças a Deus quando o silêncio é interrompido pelo telefonema que gera uma série de perguntas e respostas paralelas. De rabo de olho admiro essa capacidade das mulheres de concatenarem tantos pensamentos, como se jogassem palavras cruzadas simultaneamente. Minha diretora de criação por exemplo, consegue atender, corrigir, orçar, ler, layoutar e trocar confidências com o namorado ao mesmo tempo. E neste meio tempo, se comento algo, ela responde prontamente. Diferente de ambientes mistos, uma agencia dominada por mulheres tem temperos únicos. Chiliques, birras, tititis, são somados aos duros briefings e brainstorms dando um clima aconchegante a rotina mecânica da propaganda, como se, sempre que precisar, estarão à disposição um colo e um cafuné. As observo assim como fazia pequeno, da brecha da porta ou fingindo estar dormindo, para poder me aprofundar em seus mundos. O que mais me chama atenção são as piadas inocentes, que as acompanham desde a infância. Diferente dos homens que mandam tomar no cú pelo puro divertimento do desafio, as mulheres brincam com a delicadeza de um pianista, zombando de seus pequenos poderes. A que senta aqui na frente um dia desses deixou o telefone tocar, tocar, fez cara de tolerância, respirou fundo, todas riram, só depois atendeu. Adoro essas coisas de menina.

Observando o mercado e fazendo um corte e colagem de tantas Meio & Mensagens que leio, posso decretar: agências presididas por homens vão acabar. O pensamento é simples. A propaganda deixou de ser a vedete e se viu a necessidade de trabalhar outras ferramentas de comunicação, funcionando de maneira conjunta. Em miúdos: o cara que lançava um produto ontem anunciando no jornal nacional, hoje é obrigado a fazer uma ação no supermercado, desenvolver um site interativo e preparar uma promoção. No mínimo. Como administrar tudo isso ao mesmo tempo?Só usando saias.

Ela faz pose. Ela dança, Ela chora, Ela faz o mundo parar para ver algo fofo em seu Mac. É assim com os clientes, fornecedores e funcionários. Tentar entender os pensamentos da minha chefe é como olhar para o céu e conseguir prever quais são os próximos desenhos que as nuvens vão formar.

Neste primeiro mês tenho usufruído deliberadamente dos dengos, mesmo contidos, das minhas colegas de trabalho. Afinal faz muito tempo que alguém não leva uma gripe minha a sério, ou simplesmente nota o que tem desenhado na minha blusa. Confesso que passei virando algumas noites decifrando jobs com a obstinação de uma mãe que nina um bebê com cólicas, mas também tive o prazer de acompanhá-las em compras no meio do expediente ou me sentar para matar uma garrafa de champagne em plena quinta-feira.

“Sabe porque as baratas resistem a tudo?Por que nunca foram casadas com um homem”. Putz, elas ouviram.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

CRIA DO CARNAVAL

Pela janela do ônibus, Luciano viu os arcos no final da rua. Esse era o sinal para ele descer. Uma multidão se aboletava nas soleiras fugindo dos pingos, lotando ainda mais os bares. Estava começando mais um dia de trabalho e que seria até normal se não fosse terça-feira de carnaval. As fantasias multicoloridas e riso frouxo dos foliões resistiam com bravura ao mês de chuvas contínuas. Quando chove o Rio de Janeiro apaga suas velas e se torna tão sem graça quanto andar de carrossel.

Luciano já vinha com suas canelas molhadas e chinelo encardido, mesmo assim fugiu das poças com medo dos cacos de vidro disfarçados. Ainda tinha em sua lembrança a beiça que abriu na sola, quando matou a bola no peito e rachou com o goleiro no campinho da Barreira, onde morava. Não demorou muito alguém o abordou. Um real. Até que o dia começara bem. Pela Joaquim Silva, entrou na sinuca e sentou-se sem dar pinta. Era seu local preferido. Lembrava um pouco sua casa, cheia de irmãos barulhentos, amontoados em volta da mesa da cozinha, esperando a sopa de legumes com arroz no final da noite. Eram nove filhos, e, tirando a menor de dois anos, todos trabalhavam na rua. Lu vendia chiclete em tablete, de dois sabores, que a mãe organizava através de potes coloridos e transparentes. O do garoto era pequeno e azul, cabendo no máximo 15 unidades, isto é, 15 reais. Destes, cinco pratas ficarão para ele, que gostava de comprar pipa e figurinha para colar na cabeceira da cama coletiva.

Quando viu as luzes do poste acenarem da janela, teve que abandonar seus minutos de criança observadora, para garantir o ordenado. Caminhou pelas ruelas até se deparar com a multidão cantando atrás do bloco Quizomba, iniciando o desfile pelo bairro.
Luciano se encantou com o carro de som que parecia um barco à deriva no meio de tantas cabecinhas saltitantes. Empurra ali, toma um pisão aqui e lá foi o pequeno, sentado no pára-choque, onde somente ele ficaria confortável devida à altura. De repente, entre seus pés, aparece uma máscara de bate-bola, com fitas prateadas, amarradas no topo da cabeleira e flores no lugar dos olhos. Havia caído, se salvado de um zilhão de pisões, atravessando entre as quatro rodas do caminhão para finalmente ser resgatada por Luciano. Com a nova aquisição poderia começar a juntar sua graninha e no ano seguinte comprar o resto das vestes de bate-bola, com saião rodado, bolero e guarda-chuva. Em sua fantasia, o dinheiro sempre daria para realizar tudo, apesar da realidade em sua volta falar o contrário.

No bolso haviam dez reais, que usava para dar troco, e mais quatro, das vendas. Por isso precisou apelar para comer algo, depois da metade de um dia com estômago vazio. Já conhecia os locais onde poderia descolar um lanche. No china, entrou pela porta lateral e sentou no último lugar disponível no balcão. Ao seu lado, um cara de pano amarrado na cabeça detonava seu segundo salgado. Esse era eu.

Luciano me olhou e, ao invés, de fazer cara de coitado, me pediu seu lanche com naturalidade, enquanto encontrava uma posição mais confortável. O atendi prontamente e dali iniciei uma série de perguntas, para ele, meio bobas. Nunca fui fã de dar coisas na rua para não estimular os pedintes e tenho uma sisma pessoal com crianças dissimuladas, que aprendem a fazer cara de coitada e contar histórias tristes mas garanto que Luciano não era assim. Era espontâneo, autêntico, gostava de pentear o cabelo, tinha uma namorada que estava viajando e detestava coxinha com camarão. A maior lembrança que tenho é de sua soberba pedindo catchup. Talvez não fosse gente grande para assimilar isso, mas, antes de gostar do tempero, Luciano estava gostando de exercer sua dignidade, enfim estava em posição de ser servido depois de passar os últimos dez anos servindo a todos. Numa espécie de pré-vestibular em minutos testei sua personalidade, tomando emprestada sua máscara, pedindo que dividisse o refrigerante e inteirando o troco que eu havia dado para pagar o segundo salgado. Finalmente encontrei o menino que eu procurava. Fui ao banco, saquei uma quantidade estipulada nas minhas promessas e dei a ele, que deixou escapar olhinhos brilhantes como lantejoulas. Tentei aconselhá-lo quanto ao uso do dinheiro e os próximos passo de sua vida mas não consegui segurar as lágrimas quanto disse que ele teria a idade para ser meu filho.Tomamos destinos opostos na Rua Senador Dantas, ele com suas balas, máscara de bate-bola e um monte de desejos infantis a serem realizados; eu com o melhor dia de carnaval que alguém poderia ter.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

TODA MULHER GOSTA DE PODER

Toda mulher gosta de poder

Poder ficar diante do espelho
Pintar, unha, pêlos e cabelo
Mas dizer que estão sempre pra fazer
Porque toda mulher gosta de poder

Poder rachar conta de motel
e ser uma amante fiel
mas ter um amigo pra poder lhe socorrer
porque toda mulher gosta de poder

Toda mulher gosta de poder

Poder tomar chopp com as amigas
e ficar bem longe das intrigas
mas saber tudo que passa na TV
Porque toda mulher gosta de poder

Poder se livrar da TPM
poder se encher de gel e creme
pra dizer que está linda de morrer
Porque toda mulher gosta de poder

Toda mulher gosta de poder


Poder dormir só de calcinha
Poder se vestir de menininha
e dizer que o bonito é pra se ver
porque toda mulher gosta de poder

Poder escolher o cara certo
mas gostar do cara mais esperto
elas gostam de se contradizer
Porque toda mulher gosta de poder

Toda mulher gosta de poder

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O ANO QUE FICOU PRA LÁ

O ano que ficou pra lá começou com uma pilha de roupas na sala que finalmente tive coragem de abandonar. Quando elas caíram do armário embolando-se no chão foi o sinal. Eu realmente deveria me despir de coisas do passado se quisesse começar um novo ano.

Comecei pelas camisas velhas, que muitas visitas já usaram para dormir, e pelas amizades, que já sofreram inúmeras lavagens. Depois de meia vida sofrendo para reunir pessoas que fizeram parte da minha história, escondendo um medo de perder as referências de quem eu sou, finalmente organizei os arquivos, privatizei o sistema e instalei uma balança que não mede o tempo de convívio e sim sua intensidade. Saem amigos que trocam cumplicidade por um porta-retrato e entram camaradas que vão explorar o mundo e me carregam na mala.

As metas profissionais também ganharam nova roupagem, principalmente depois do final de uma relação sem tesão com a agência que ajudei a tocar por dois anos. Culpa da profissão, nada mais, que necessita injetar adrenalina na tinta da caneta para os títulos realmente saírem com emoção. Reunidos os cacos e algumas peças do portifólio saí com o fôlego de estagiário, relembrado pela página da agenda de 2001 emoldurada na parede, disposto a reconquistar uma nova vaga no mercado. 24h depois eu estava empregado e fortalecido da minha capacidade de fazer o que gosto.

Falando em preferência salvei da trouxa a camisa que mais gosto de vestir ultimamente. Mesmo suada de tantos ensaios de madrugada e discussões desnecessárias por egos exacerbados, minha banda foi responsável pelas maiores alegrias que tive, me proporcionando um aprendizado técnico e pessoal de convívio e aceitação das diferenças. Através dela me tornei da noite pro dia um cantor e até hoje me surpreendo com elogios de gente que dedica a sua vida a fazer isso.

O ano que ficou pra lá foi marcado pela instabilidade de um náufrago em plena calmaria. O amor até mandou suas marolas mas nada que me fizesse enxergar terra à vista. No meio da imensidão azul, sem tubarões ou sereias, pude curtir minhas particularidades e conhecer cada ruga e cutícula da minha alma. Foi um ano que finalmente aprendi a boiar e descobri que melhor que tentar dominar o mundo é deixar que ele te empurre.

No entanto outras coisas permaneceram-se intactas como as camisas do flamengo que eu não ouso tirar do armário. O carro é o mesmo. Os quilos também. Nenhuma doença nem morte por perto. Continuo saindo segunda, usando costeleta, jogando vídeo-game e ouvindo que pareço o Rogério Flausino. Razoável para quem acredita que a nostalgia seja o primeiro sintoma da velhice.

Terminada a separação das peças, parto finalmente para a lavagem da roupa suja mas antes salvo do bolso das calças os confetes do melhor carnaval que já tive, os tickets não trocados por cerveja no west show, os conselhos da primeira e única mulher que fui apenas amigo, o orgulho de me ver espelhado nas atitudes da minha afilhada e finalmente as novas metas escritas em um guardanapo, que irei entregar ao mar em uma oração silenciosa e sincera com os pés molhados. Mas não antes de curtir o o eco deste armário quase vazio e sonhar com as mil coisas que poderão morar nele.