quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

CRIA DO CARNAVAL

Pela janela do ônibus, Luciano viu os arcos no final da rua. Esse era o sinal para ele descer. Uma multidão se aboletava nas soleiras fugindo dos pingos, lotando ainda mais os bares. Estava começando mais um dia de trabalho e que seria até normal se não fosse terça-feira de carnaval. As fantasias multicoloridas e riso frouxo dos foliões resistiam com bravura ao mês de chuvas contínuas. Quando chove o Rio de Janeiro apaga suas velas e se torna tão sem graça quanto andar de carrossel.

Luciano já vinha com suas canelas molhadas e chinelo encardido, mesmo assim fugiu das poças com medo dos cacos de vidro disfarçados. Ainda tinha em sua lembrança a beiça que abriu na sola, quando matou a bola no peito e rachou com o goleiro no campinho da Barreira, onde morava. Não demorou muito alguém o abordou. Um real. Até que o dia começara bem. Pela Joaquim Silva, entrou na sinuca e sentou-se sem dar pinta. Era seu local preferido. Lembrava um pouco sua casa, cheia de irmãos barulhentos, amontoados em volta da mesa da cozinha, esperando a sopa de legumes com arroz no final da noite. Eram nove filhos, e, tirando a menor de dois anos, todos trabalhavam na rua. Lu vendia chiclete em tablete, de dois sabores, que a mãe organizava através de potes coloridos e transparentes. O do garoto era pequeno e azul, cabendo no máximo 15 unidades, isto é, 15 reais. Destes, cinco pratas ficarão para ele, que gostava de comprar pipa e figurinha para colar na cabeceira da cama coletiva.

Quando viu as luzes do poste acenarem da janela, teve que abandonar seus minutos de criança observadora, para garantir o ordenado. Caminhou pelas ruelas até se deparar com a multidão cantando atrás do bloco Quizomba, iniciando o desfile pelo bairro.
Luciano se encantou com o carro de som que parecia um barco à deriva no meio de tantas cabecinhas saltitantes. Empurra ali, toma um pisão aqui e lá foi o pequeno, sentado no pára-choque, onde somente ele ficaria confortável devida à altura. De repente, entre seus pés, aparece uma máscara de bate-bola, com fitas prateadas, amarradas no topo da cabeleira e flores no lugar dos olhos. Havia caído, se salvado de um zilhão de pisões, atravessando entre as quatro rodas do caminhão para finalmente ser resgatada por Luciano. Com a nova aquisição poderia começar a juntar sua graninha e no ano seguinte comprar o resto das vestes de bate-bola, com saião rodado, bolero e guarda-chuva. Em sua fantasia, o dinheiro sempre daria para realizar tudo, apesar da realidade em sua volta falar o contrário.

No bolso haviam dez reais, que usava para dar troco, e mais quatro, das vendas. Por isso precisou apelar para comer algo, depois da metade de um dia com estômago vazio. Já conhecia os locais onde poderia descolar um lanche. No china, entrou pela porta lateral e sentou no último lugar disponível no balcão. Ao seu lado, um cara de pano amarrado na cabeça detonava seu segundo salgado. Esse era eu.

Luciano me olhou e, ao invés, de fazer cara de coitado, me pediu seu lanche com naturalidade, enquanto encontrava uma posição mais confortável. O atendi prontamente e dali iniciei uma série de perguntas, para ele, meio bobas. Nunca fui fã de dar coisas na rua para não estimular os pedintes e tenho uma sisma pessoal com crianças dissimuladas, que aprendem a fazer cara de coitada e contar histórias tristes mas garanto que Luciano não era assim. Era espontâneo, autêntico, gostava de pentear o cabelo, tinha uma namorada que estava viajando e detestava coxinha com camarão. A maior lembrança que tenho é de sua soberba pedindo catchup. Talvez não fosse gente grande para assimilar isso, mas, antes de gostar do tempero, Luciano estava gostando de exercer sua dignidade, enfim estava em posição de ser servido depois de passar os últimos dez anos servindo a todos. Numa espécie de pré-vestibular em minutos testei sua personalidade, tomando emprestada sua máscara, pedindo que dividisse o refrigerante e inteirando o troco que eu havia dado para pagar o segundo salgado. Finalmente encontrei o menino que eu procurava. Fui ao banco, saquei uma quantidade estipulada nas minhas promessas e dei a ele, que deixou escapar olhinhos brilhantes como lantejoulas. Tentei aconselhá-lo quanto ao uso do dinheiro e os próximos passo de sua vida mas não consegui segurar as lágrimas quanto disse que ele teria a idade para ser meu filho.Tomamos destinos opostos na Rua Senador Dantas, ele com suas balas, máscara de bate-bola e um monte de desejos infantis a serem realizados; eu com o melhor dia de carnaval que alguém poderia ter.

8 comentários:

Trilogia dos Erros Inesperados disse...

E alguém trouxe esse cheiro até o sul...
Unico!
beijos querido!

Érica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Érica disse...

Lembra do que eu disse quando vc me contou isso?

Reitero: Sua sensibilidade me encanta!

Na verdade acho que vc é a sensibilidade em forma de gente!

Beijo bem no meio do seu coração

Anônimo disse...

Andar de carrossel é divertido

Vic Lutterbach disse...

Se todoodo mundo fosse como você, acho que poderiam até existir crianças pobres, mas nunca crianças tristes.

Mandou muitíssimo bem, rapazinho.

Anônimo disse...

Realmente você escreve bem, tenta ser profundo e sensível. Não consegui acreditar nessa sensibilidade, achei um pouco forçado. Ainda assim, bem escrito. Lerei os outros posts.
Ah, e andar de carrossel é divertido mesmo! Tenho que concordar com o anônimo acima.

Héllen Dutra disse...

É a primeira vez que leio um texto teu tão político... em outros, vc já havia deixado um cheiro de crítica social, mas neste, vc transborda. Acho bacana! Acho que este não é teu estilo, mas vale tb enveredar por tais assuntos uma vez ou outra.
Seu texto é primoroso, de uma sensibilidade latente. Eu adoro!

Anônimo disse...

Esse é o meu primo. Tenho muito orgulho disso. bjs.