terça-feira, 30 de agosto de 2011

O QUERUBIM E AS NOSSAS INVENCIONICES

Metido em sua burocracia celestial, Deus lia em cima da mesa o pedido de serviço e montava seres humanos conforme demanda. Mas como não é dado a obedecer ordens, uma vez que não tem ninguém que as dê, vez ou outra transgredia a lógica, pois assim gostava de ser lembrando. A lógica é coisa da mãe natureza, o caos é coisa do todo-poderoso. Resmungou algo aos seus ajudantes quando leu o histórico de um casal que insistia em repetir a mesma fórmula do fracasso: pais separados, jovens, gravidez inesperada. De certo também repetiria a fórmula pondo no mundo um moleque com olhos de pedinte, voz fraca e grato a ele por ter um prato de comida. Já tinham vários destes pré-montados no estoque, mas, se sentindo desafiado a mudar a roda da vida inventada pelos próprios humanos, decidiu lançar seu cavalo de tróia. Aceitou o desafio que foi confirmado no exame de sangue da moça.

Passeando por seu jardim idílico, cruzou toda a avenida até o playground, onde pequenos querubins faziam suas estripulias de andorinha. Escolheu um a esmo e o levou debaixo do braço, o que despertaria imensa inveja aos outros se este fosse um sentimento permitido no céu. Trancou-se em sua sala, sacou-lhe as asas com a mesma habilidade de veterinários e introduziu – em processo completamente indolor – uma bomba-relógio em seu coração.

- Cuidado com as invenções dos humanos. Vai e volta voando. Terá minha consideração.

Numa noite de agosto, o querubim experimentou pela primeira vez o mundo imperfeito. Depois de um dia todo esperando na placenta, foi posto para fora em líquido amniótico verde, contaminado por suas próprias fezes. Sentiu o salitre no ar e reparou na epiderme imperfeita dos parentes que vinham no vidro olhar o novo rebento. Insistiam que tinha os cabelos do pai, o nariz da mãe, numa tentativa de dar-lhe identificação e personalidade instantânea. Serviu-se de todo elogio durante as horas que esteve no hospital e, se não fosse o incômodo de usar luvas e roupas para cobrir seu sexo, estaria perfeitamente adaptado ao clima tropical da costa verde. Ganhou moradia no meio da mata, onde as borboletas se colidiam no ar e a cachoeira trazia morro abaixo um sortimento de folhas e flores. O querubim, que já havia sido nomeado com inspirações na natureza, descansava inebriado com o leite materno capaz de oferecer uma gama de paladares, quando a bomba-relógio estourou em seu peito, fazendo um estalo abafado, como de uma bexiga debaixo do cobertor. Foi levado ao hospital na cor de um inhame que provavelmente não iria chegar a comer.

Deus aguardava ansioso o regresso do querubim, pronto para ouvir seu relato de espanto sobre àquela gente perecível, que se péla de medo da morte. A família de desregrados e fornicadores não transariam deliberadamente, não se apaixonariam inconseqüentemente outra vez, pois lembrariam desta mácula a cada natal; cada vez que se reunissem na mesa. Mas o querubim não voltou, tampouco mandou recado. Sem poder abrir os olhos sentia o calor da mão da mãe que o amamentou e toda uma legião de gente que vinha dizer-lhe coisas doces. Quando saiu do hospital envolta em tecido branco, bordado com crisântemos recebeu incentivo até de quem não o conhecia. O Senhor, famoso por sua ira, possui recursos infinitos e, como bom filho único, que não suporta ser contrariado, mostrou suas faces. Acionou nova bomba instalada no cérebro do pequeno ser divino, que convulsionou e tremeu seu corpo inanimado. A partir deste dia Deus não teve mais notícias do espião celestial. O querubim, recuperado dos ataques violentos, passou a descansar sob a sombra de árvores centenárias, protegidos em suas copas homogêneas. Assim brincou no chão pela primeira vez, comeu bolo de fubá e descobriu que na verdade seria uma mulher, de cabelos longos e loiros no futuro. Também provou doses fartas de amor, um sentimento novo que só nasce no coração de quem sabe o que é perder alguém.

Prestes a completar um ano, o querubim, já adaptado a Terra, distribuía sorrisos generosos aos poucos que ousaram despertar nas primeiras horas de domingo. Na capela de santo Antônio, quase perdida entre árvores e jardins, foi batizado, lavado do pecado original e ingressado, por ironia do destino, na comunidade cristã. Um coral de pássaros foi enviado para saudar a sua saída triunfal e nas horas seguintes foi introduzido a novas invencionices dos seres humanos que acabaram por lhe conquistar completamente. Eu que estava presente no evento e sempre acreditei na profundidade celestial daqueles olhos, vi quando Deus se mexeu sentado no topo da palmeira real. Usava uma túnica com linhas coloridas. Vinha acompanhado de outros querubins e mais dois ou três assistentes. Tentou se passar como desinteressado, fugindo o olhar para as plantas exóticas que moravam ali, mas sei que veio aprender e até estaria com inveja se este fosse um sentimento permitido no céu.