segunda-feira, 28 de março de 2011

PAUSE E PARABÉNS

Acordei sem poder acordar. Mas isso pra mim é normal. Tem gente que fica de preguiça na cama e atrasa uns minutinhos no trabalho. Eu também. A diferença é que não escolho o dia que isso vai acontecer. É o meu corpo que determina meus domingos. Tenho catalepsia projetiva, conhecida por paralisia do sono. Nada diferente do que ter o dedo do pé para fora da sandália ou um bico do peito diferente do outro. Cedo ou tarde, a gente se acostuma.
É mais ou menos assim: você acorda e parece que ainda está dormindo. Nada mexe, no máximo, a bolinha preta do olho. Quando pequena minha avó dizia que eu estava deixando de ser uma boneca para virar menina. Já meu irmão mais novo dizia que eu tinha um encosto. Seja como for não me incomodaria tanto de travar se hoje não fosse meu aniversário.

Geralmente tenho estes piripaques depois de um dia cansativo. Mas ontem não saí da rotina. O momento mais emocionante foi ter suturado a língua do gato. Sei da importância que ela tem para os seus banhos, por isso fiquei feliz. Convenhamos: ser veterinária em uma clínica é uma realização pessoal nada agitada. O primeiro a me desejar parabéns foi o Cocoroca, meu cachorro. Chegou com andar de xerife, pernas arcadas e focinho amassado. Ouvi seus passos tilintando no piso. Depois de esperar um afago, em vão, tentou pular na cama, presumindo que eu o ajudaria a subir. Seria um dia perfeito, acordar com seu ronco de batráquio fazendo festinha. Mas quis o destino que eu virasse uma samambaia no dia que completo 26 anos.

Durmo olhando a parede. Nas suas imperfeições sempre vejo formar as mesmas figuras. O Don Quixote, onde sujei com o pé. O carro de corrida, na parte áspera. A silhueta de mulher, na rachadura recoberta pela tinta. Estava olhando para elas quando minha amiga, que divide apartamento comigo, apareceu na ponta dos pés. Como todo mundo, achou que eu estivesse dormindo. Entrou com um cartão na mão, que puder ver que era vermelho. O pendurou no mural e ali ficou, olhando, lendo, revisitando detalhes de fotografias que os olhos insistem em esquecer, só para nos devolver o prazer de sentir uma coceirinha na alma. Isso deveria ter um nome mais bonito que nostalgia. Observá-la assim, neste breve momento de encantamento foi meu melhor presente. Sei que naquele instante o mundo para ela também parou. A parte que o cartão disparou seu jingle eletrônico cantando “parabéns pra você” e ela saiu em disparada, deixa pra lá.

Diz o médico que, para sair deste estado em pause, preciso me concentrar na respiração. Tiro pensamentos da cabeça e foco no ar passeando, oxigenando e saindo, com pressão de calibrador de pneu. Começo a inspirar mas logo lembro da comida descongelando fora da geladeira. Lembro dos amigos que se mobilizaram para ajudar nos preparativos. E lembro de alguém que não poderia lembrar. Alguém que faz meu coração disparar, mesmo teimando em não querer.
Putz. Para as favas a respiração.

Meu celular apitou 18 vezes de meia noite para cá. A cada apito, uma mensagem de texto. Como ociosidade é algo obrigatório agora, calculei a média de amigos que lembraram de mim por hora: 2.57. Não é muito se levar em consideração os parentes e o recado da operadora cobrando faturas esquecidas. Mas não me importo, gosto tanto deles. Em breve estarão misturados, fazendo drinques, arriscando piadas e reiterando os votos de amizade eterna. Do telefone da pizzaria, que entrega depois de meia noite, aos sábados sem grana que amanhecemos jogando baralho, são eles que estão por trás de tudo.

Acabei dando um improvável suspiro, o que me anima a possibilidade de voltar ao normal dentro de algumas horas. Já sinto o pé formigando. Enquanto isso tento bloquear a saudade.Talvez só as figuras inventadas na parede saibam como sinto falta da minha mãe e sua maneira peculiar de me acordar fazendo voltinhas em meu cabelo. Sinto também falta dos gritos de domador de urso do meu pai. Mas se não controlo nem o meu tempo, é muita presunção da minha parte querer controlar o destino. Agora que tenho 26 anos vou olhar para os 30 de rabo de olho tentando não dar ouvido às suas obrigações. Sou veterinária, sou amiga, dona de um cachorro e do meu próprio nariz. Talvez não seja uma boneca e com certeza não tenho um encosto, mas passei a ver com outros olhos essa esquisitice de viver sonhando acordada.

Para C.C.