quinta-feira, 27 de setembro de 2007

VULGARMENTE SECRETÁRIA

Texto resgatado de 06/08/2002.

De tempo em tempo, minha tia passa o dedo nos cantos inóspitos da estante e descobre trilhas de poeira, faz uma cara de reprovação e vai andando e reclamando até sumir pela imensidão da casa. “E não tem jeito”, digo pacificando “empregada é assim mesmo”. Elas chegam por indicações das mais variadas, no entanto, reúnem as mesmas qualificações de currículo: “É honesta e trabalhadeira”; “é superlimpa e discreta”; “acho até que é crente”. E numa mistura de critério de admissão e mercado negreiro, são contratadas. A partir daí segue uma trama de competição e traição que acirram mais a rivalidade. É a mulher moderna que aprendeu a valorizar seu trabalho e desvalorizar o dos outros contra a menina que vê tudo e não tem nada. Na verdade está em jogo a vaidade feminina e a ignorância do homem em achar que só da sua maneira é que dá. “São profissionais”, lamenta a moça no caixa me contando seus infortúnios. A dela foi pega em flagrante, tinha um mini-mercado na bolsa: limpeza, cama, mesa e banho, alimentação, perfumaria, tava tudo ali. E quando questionada, estufou o peito com o restante da dignidade e disse: “o papel higiênico eu trouxe de casa”, pegou as coisas e foi, sem remorso, em busca da próxima vítima. Levam orégano, porta-retrato, CD do Belo, vale até roubar o pedigree da patroa, se passando por ela na hora de atender o vendedor . A mesma que pode tornar a vida das patroas num inferno, pode levar almas cheias de espinha e vergonha aos céus. Nada de caridade com o rapazinho, afinal para ser rainha é preciso começar a investir no príncipe, que mal levantou do troninho e já quer encarar o banquete. E a mulher que cabia nos buracos das fechaduras se mostra perigosamente insaciável, querendo mais e mais... Faz parte da vida ficar febril por elas, seja que idade for. Com a vida já encaminhada e o coração abrasado, o marido faz sua dieta sexual com sucesso, relê na cama o álbum de figurinha repetida na esperança de encontrar o detalhe que faça a diferença, suas formas também perderam a imponência grega de antigamente e as brigas acrescentam diariamente uma parede para o labirinto chamado esposa. Então aparece dentro de casa a solução, boa bonita e barata, e lá se vai o marido, o pai das crianças, rebocado pela mulata reboladeira. É inexplicável a complacência do homem com a empregada, se arranhar o esmalte do dente da esposa o cara já olha para ela meio atravessado, em compensação, se a moça tiver uma janelinha no sorriso, tudo bem, ninguém é perfeito. “Cravo, celulite, verruga e perna cabeluda só a esposa que tem” finalizou minha prima, novamente solteira. Passado o período de experiência, implicância, cleptomania, sexo, suor e lágrima, começa-se a colher frutos da erva daninha. Tudo funciona direito e seus dotes passam a ter admiração da família, vira pauta nos jantares, e com o tempo ninguém consegue viver sem a secretária do lar. Os pares de meia, a baixela, o vestido azul, só elas conhecem seu paradeiro. Também tem a malandragem, em casa de nanico não se limpa em cima do armário, de míope não precisa desembaçar os vidros, de solteiro é só por tudo no lugar e jogar um cheiro. Assim seguem felizes. Mal acabou de limpar o dedo sujo de poeira, minha tia foi abordada pela secretária lá de casa, que contava com empolgação, as últimas notícias da vida alheia. Tática, nada mais.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

CASA NA ÁRVORE

Ufa, acabei de despachar o último job às 18:30. Tirei disfarçadamente o tênis, malocando-o entre as CPUs e arrisquei uma caminhada até a recepção. Tudo tranqüilo. Sem clientes e diretores por perto, foi fácil me presentear com um pequeno capricho. Jornal sensacionalista na mão e, na primeira risada que dei, Plin! Chegou trabalho novo pelo email. Acabou a farra, malandro.

A corrida pelo próximo centavo do varejo transformou as agências - especialmente as pequenas – em empresas mais burocráticas que fechamento de conta corrente. Funcionando no gargalo dos custos fixos e variados, o ritmo interno é ditado pelo bumbo que puxa o bloco na ladeira. Em todos estes ambientes de trabalho, redator e diretor de arte sentam juntos. Na hora do almoço, claro, que já consta na planilha do tráfego como “processo de criação”. Infelizmente o que sai na ponta da máquina em geral é trabalho pasteurizado, tão indistinguível um do outro como o doce e o salgado do biscoito Globo.

A lógica do quanto-mais-melhor afasta muito o criador do seu instinto natural, o mesmo que levava os ratinhos para o local certo no livro “quem mexeu no meu queijo?”. As visitas em site são podadas, os horários seguidos na risca e, na verificação do celular que grita uma mensagem de pagamento, sente-se a ameaça silenciosa da mão-de-ferro.

Quem dera o futuro da profissão se resumisse a maquiavelice de um ou outro diretor de propaganda. O que se configura no horizonte é uma nuvem ainda mais negra. Na ausência de gente de negócio disposta a apostar suas economias no longo e árduo processo de construção de marca, sobram atendimentos obedientes que transcrevem à risca os pedidos de “leve agora”, “quem ganha o presente é você” e “qualidade e menor preço”. Como contrapeso de tanta poluição visual e auditiva veiculada, as agências investem em si, no espaço físico, nas inovações high-techs, nos prêmios perecíveis e na mudança do seu próprio discurso a cada vez que a bússola varia.

Parece um destino certo: quanto mais se busca solidez nessa área, mais engessado os trabalhos ficam.

Obrigado a traduzir seus valores para os olhos de São Tomé dos empresários de hoje em dia, o diretor de propaganda não vê saída e se tangibiliza. Abre escritórios em outros estados. Contrata nomes de peso. Aluga andares inteiros de um prédio comercial. Tudo para fazer vista ao mercado e, no entanto, acaba esquecendo de algo, que diz pelos quatro cantos, ser o maior ativo de qualquer negócio: sua própria marca.

Nos áureos sonhos de garoto em busca da profissão, imaginava os escritórios da minha área como uma casa na árvore e não como um quarto de menino criado por vó. Saem os brinquedos de pilha e entram as idéias, saem os joguinhos de vídeo-game com começo, meio e fim, e entram as travessuras de rua, cheias de riscos e êxitos. Na casa da árvore nem é preciso dar ordem pois todos fazem pelo tesão de se manter ali, no topo. Não existem cargos e funções, todos colaboram com sua vocação natural. Os prazos são dados pela noite que cai ou pela chuva que invade as ripas mal emendadas. Se a casa desmorona, reconstroem-se quantas vezes for necessário, pois a crença daquele ser o melhor lugar no mundo já mora no coração de cada criança ali.

Novidades invadem a nossa praia em propaganda, que surfa nos conhecimentos de marketing e suas ferramentas. Marketing de guerrilha, viral, comunicação interdisciplinar, por conteúdo, integrada, assim como a volta dos modelos hot shops, bureaus criativos mais preocupados com resultados que inserções, trazem aquela brisa de renovação idêntica a que soprava no barraco de madeira em cima da mangueira. Naquele tempo, o tal vento fresco era sinônimo de pipa em ascensão em um céu de brigadeiro. Que faça o mesmo por nossas agências de propaganda.

O jornal sensacionalista eu tive que deixar novamente na recepção e calçar depressa meu tênis. O tal email anunciava reunião geral com o pessoal da criação para uma comunicação não convencional de uma grande marca de canetas. Oba, casa na árvore aí vamos nós.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

WORKSHOP DO INFERNO

Um homem muito bom, talvez nunca enriqueceu por isso. Amava a mulher e considerava a fidelidade coisa séria. Nunca trocou de casa e nem deixou os filhos na pendenga. Foi a melhor educação. Tocava seus negócios a moda antiga. Assim, montou fábrica, comprou terreno, alugou imóveis e morreu. Benedito foi na paz de Deus. Na noite do acontecido, a esposa chorosa ligou para as três filhas, deu o ultimato e todos chegaram antes de amanhecer, inclusive a mais nova com o antigo namorado. A senhora fez chá e contou do silêncio que sondava o velho homem, parecia a cada dia se fechar para o mundo num autismo espiritual. Depois da rodada de histórias de família o namorado da filhinha, até então mudo, se dispôs a homenageá-lo, algo que a cidade nunca viu. " Jamais, seu aproveitador." - Pensou a sogra, "Sim. Quem sabe." - Respondeu. A família não gozava de fartura depois do patriarca se afastar dos negócios, inclusive muitos na mão do genro. Por um lado, seria bom deixar as responsabilidades na mão dele, os gastos e as burocracias como forma de retribuição. "Não vamos gastar um tostão. Já está tudo arranjado" disse após desligar o telefone. O velório aconteceria durante o dia inteiro na casa do morto. Como manda a tradição, a mulher já preparava o doce de abóbora com coco para receber os convidados, quando teve a interrupção. O genro dizia ter contratado um buffet com salgadinhos e barquetas, nada de docinho, "a vida é amarga igual ao Wisky". Dava vontade de deitar na urna, forrada de veludo e bem quentinha, era um convite no inverno do Mendanha. Leões dourados seguravam com a boca as alças, a madeira era a melhor já vista ali, diziam até ser carvalho. Realmente o rapaz fez um grande trabalho, organizou tudo, pôs alguém para atender os telefones e agendar as visitas, esticou um tapete vermelho na porta, encomendou o melhor terno do lugar. Tudo rapidinho. A casa sempre tranqüila era agora um entra e sai, com gente esticando cortinas tricolores, acertando o foco de luz no centro da sala, encantando a todos. A esposa assustada não tinha como frear os exageros, imaginava cerimônia simples, mas tudo girava rápido; nem podia tomar as rédeas das coisas. Chamou as filhas e no momento particular foram vestir o pai. Estava durinho o homem, tão gelado quanto a pia da cozinha, ele sorria sereno, parecia bem. Então fizeram as orações e desembrulharam o terno, que carregava um dizer bordado no bolso do paletó: - Tô Na Night Aluguel de roupas. Sua melhor companhia . Uma choradeira rompeu a sala e a esposa foi como um bicho no pescoço do rapaz, que explicou: - O dono da loja cedeu a roupa e vai vir aqui, temos que fazer um agrado. Muito blablablá e acabou assim mesmo, puseram um lenço e ficou tudo bem. Mas desconfiada a mulher foi direto nas coroas de flores: "Faça como Seu benedito. Durma em paz - Colchões Clarim"; "Não deixe seu carro morrer como Seu benedito - Oficina do Luís" ; "Faça como seu benedito, conquiste seus sete palmos de terra - financiamentos Mourão" Tudo na casa estava sendo patrocinado, como o defunto era conhecido não faltariam convidados e empresa querendo aparecer. E já era tarde para qualquer reação, o pessoal estava chegando. Só a família já era bem grande, apareceu primo distante, vizinho, amigos, gente de tudo quanto foi lado. Um som ambiente recepcionava os convidados, que ganhavam lencinhos com a marca da decoradora de ambientes, um botão de rosas da floricultura vizinha e todos admiravam as fotos de Seu benedito em banners cheios de logomarcas das pequenas empresas. Um workshop do inferno. Foram horas de negociações, discussões, jogadas políticas e risadas até a hora do cortejo. E lá foi o defunto, no trio elétrico do deputado amigo da família ao som de We are the Champion. Parou o bairro e quase o coração da velha esposa, vendo a multidão se arrastando, mães levando os filhos na porta para ver o carro cheio de néon passar. Lá do alto alguém gritava do microfone: "Pára o Benedito nada?" "Tudo!!" A Galera respondia prontamente. O cemitério estava bonito e reservado, aparentemente sem nenhuma empresa por perto eles teriam paz. Um segurança autorizava somente as pessoas com credenciais no pescoço e o número de convidados diminuiu. Rezaram e choraram muitas vezes. O padre disse coisas bonitas e não deixou de convidar a todos presentes para uma visita na paróquia; as filhas cantaram juntas a música que o pai as ninava, a esposa por fim agradeceu. Humilde, o genro falou de boa intenção e emoção. E foi ele que assumiu a pior das responsabilidades: fechar o caixão. Cada vez que ameaçava, alguém pedia para ver o presunto pela última vez, até que chegou a hora. Bem no centro da tampa, em letras garrafais a funerária também havia deixado sua marca, com anjinhos sacanas carregando-as para o céu. E antes de recomeçar a choradeira alguém gritou: "Já que está embrulhado vai assim mesmo". Desceram o caixão e terminou o desespero. O genro justificava que as lembranças ficam, a publicidade morre e que ninguém lembraria de quem patrocinou e sim de quem se foi. Acabou sendo conhecido no lugar e foi próspero nos negócios. Graças ao garoto-propaganda Benedito que morreu sem entender a alma do negócio.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

SE EU TIVESSE UM FILHO AGORA

Se eu tivesse um filho agora talvez ele ficasse sentado ali na cama me ajudando a decidir se uso a camisa verde com estampa preta ou a camisa preta de estampa verde. Se ele já existisse, a tv estaria ligada em algum desenho animado que esqueço de ver. Sairíamos juntos nesta manhã azul de outono, depois de comer biscoito de maisena com leite, e suas mãos repetiriam os meus gestos ao fazer sinal para o ônibus parar.

Seria para ele que eu ensinaria minhas infinitas teorias, minha falta de crença e o revelaria os mais incrustados segredos da minha alma. Um filho tem o tamanho certo de qualquer solidão, inclusive aquelas que nascem com a gente, quando pai e mãe não fazem seu papel e deixam o eco do vazio falar mais alto.

Só um filho teria o poder de meter os bedelhos no meu trabalho sem me dar chance de defesa. Sei que seria meu maior fã, presente em meus pensamentos quando canto com a banda ou quando dou palestra na faculdade. Quem sabe não seriam dos próprios anúncios que crio que retiraríamos as primeiras letras de seu trabalhinho de alfabetização?Ou quem sabe com um outdoor gigante do seu herói preferido que eu arrancaria dele o sorriso mais sincero do mundo?

Gostaria que meu filho tivesse os olhos da Ângela e seu jeito todo próprio de dormir sorrindo. Porém não abro mão da altivez da Renata, da garra da Polyana, da amizade da Danúbia e muito menos da espontaneidade da Lílian. Na bibliografia de seu DNA também poderiam estar a genialidade do bisavô e a libido dos tios, amantes incorrigíveis.

Se fosse um moleque me ensinaria já velho a jogar bola de gude e andar de carrinho de rolimã, afinal não seria criado pela avó, soltando pipa no ventilador. Eu ficaria feliz em ajoelhar na areia para aprender sobre bulicas e mata-matas e resgatar dibiques e cabrestos do meu vocabulário burocrático. Vindo menina adoraria brincar de pai bravo, com poltrona própria e bigode, olhando de cara feia para seus rompantes adolescentes mesmo rindo por dentro. Teríamos conversas longas na cozinha enquanto à duas mãos o jantar improvisado estaria sendo feito. Por ela, tiraria os pêlos do nariz, depilaria a sobrancelha e a deixaria espremer meus cravos das costas com as unhas.

Ter um filho é a oportunidade que todo adulto tem de se reinventar, sem ouvir questionamento do chefe ou da vizinhança. Assistir novela, mudar de time e parar de fumar podem ser atitudes que precisem de uma forcinha extra para acontecer.

Minha cria crescerá em uma casa arejada como foi a minha, de janelas grandes de vidro onde o sol entra colorido pelo vitral. Terá um cachorro que poderá escolher o nome, uma enorme varanda com rede onde brincará de voar e uma praça arborizada na frente, onde todos o conhecerão. Falando nisso, seu nome será tão esquisito quanto o do pai para um dia discutirmos os sabores e dissabores que provocamos a cada vez que a professora faz a chamada.

Mesmo com tanto para oferecer, sei que ainda esquecerei de lhe dar uma coisa básica: o direito dele ser ele mesmo. Afinal ainda projeto na criança tudo aquilo que fui ou que gostaria de ser. Talvez por isso meu filho ainda more nos meus sonhos, mesmo acenando, de vez em quando, que está próximo o seu dia de chegar.