quinta-feira, 13 de setembro de 2007

WORKSHOP DO INFERNO

Um homem muito bom, talvez nunca enriqueceu por isso. Amava a mulher e considerava a fidelidade coisa séria. Nunca trocou de casa e nem deixou os filhos na pendenga. Foi a melhor educação. Tocava seus negócios a moda antiga. Assim, montou fábrica, comprou terreno, alugou imóveis e morreu. Benedito foi na paz de Deus. Na noite do acontecido, a esposa chorosa ligou para as três filhas, deu o ultimato e todos chegaram antes de amanhecer, inclusive a mais nova com o antigo namorado. A senhora fez chá e contou do silêncio que sondava o velho homem, parecia a cada dia se fechar para o mundo num autismo espiritual. Depois da rodada de histórias de família o namorado da filhinha, até então mudo, se dispôs a homenageá-lo, algo que a cidade nunca viu. " Jamais, seu aproveitador." - Pensou a sogra, "Sim. Quem sabe." - Respondeu. A família não gozava de fartura depois do patriarca se afastar dos negócios, inclusive muitos na mão do genro. Por um lado, seria bom deixar as responsabilidades na mão dele, os gastos e as burocracias como forma de retribuição. "Não vamos gastar um tostão. Já está tudo arranjado" disse após desligar o telefone. O velório aconteceria durante o dia inteiro na casa do morto. Como manda a tradição, a mulher já preparava o doce de abóbora com coco para receber os convidados, quando teve a interrupção. O genro dizia ter contratado um buffet com salgadinhos e barquetas, nada de docinho, "a vida é amarga igual ao Wisky". Dava vontade de deitar na urna, forrada de veludo e bem quentinha, era um convite no inverno do Mendanha. Leões dourados seguravam com a boca as alças, a madeira era a melhor já vista ali, diziam até ser carvalho. Realmente o rapaz fez um grande trabalho, organizou tudo, pôs alguém para atender os telefones e agendar as visitas, esticou um tapete vermelho na porta, encomendou o melhor terno do lugar. Tudo rapidinho. A casa sempre tranqüila era agora um entra e sai, com gente esticando cortinas tricolores, acertando o foco de luz no centro da sala, encantando a todos. A esposa assustada não tinha como frear os exageros, imaginava cerimônia simples, mas tudo girava rápido; nem podia tomar as rédeas das coisas. Chamou as filhas e no momento particular foram vestir o pai. Estava durinho o homem, tão gelado quanto a pia da cozinha, ele sorria sereno, parecia bem. Então fizeram as orações e desembrulharam o terno, que carregava um dizer bordado no bolso do paletó: - Tô Na Night Aluguel de roupas. Sua melhor companhia . Uma choradeira rompeu a sala e a esposa foi como um bicho no pescoço do rapaz, que explicou: - O dono da loja cedeu a roupa e vai vir aqui, temos que fazer um agrado. Muito blablablá e acabou assim mesmo, puseram um lenço e ficou tudo bem. Mas desconfiada a mulher foi direto nas coroas de flores: "Faça como Seu benedito. Durma em paz - Colchões Clarim"; "Não deixe seu carro morrer como Seu benedito - Oficina do Luís" ; "Faça como seu benedito, conquiste seus sete palmos de terra - financiamentos Mourão" Tudo na casa estava sendo patrocinado, como o defunto era conhecido não faltariam convidados e empresa querendo aparecer. E já era tarde para qualquer reação, o pessoal estava chegando. Só a família já era bem grande, apareceu primo distante, vizinho, amigos, gente de tudo quanto foi lado. Um som ambiente recepcionava os convidados, que ganhavam lencinhos com a marca da decoradora de ambientes, um botão de rosas da floricultura vizinha e todos admiravam as fotos de Seu benedito em banners cheios de logomarcas das pequenas empresas. Um workshop do inferno. Foram horas de negociações, discussões, jogadas políticas e risadas até a hora do cortejo. E lá foi o defunto, no trio elétrico do deputado amigo da família ao som de We are the Champion. Parou o bairro e quase o coração da velha esposa, vendo a multidão se arrastando, mães levando os filhos na porta para ver o carro cheio de néon passar. Lá do alto alguém gritava do microfone: "Pára o Benedito nada?" "Tudo!!" A Galera respondia prontamente. O cemitério estava bonito e reservado, aparentemente sem nenhuma empresa por perto eles teriam paz. Um segurança autorizava somente as pessoas com credenciais no pescoço e o número de convidados diminuiu. Rezaram e choraram muitas vezes. O padre disse coisas bonitas e não deixou de convidar a todos presentes para uma visita na paróquia; as filhas cantaram juntas a música que o pai as ninava, a esposa por fim agradeceu. Humilde, o genro falou de boa intenção e emoção. E foi ele que assumiu a pior das responsabilidades: fechar o caixão. Cada vez que ameaçava, alguém pedia para ver o presunto pela última vez, até que chegou a hora. Bem no centro da tampa, em letras garrafais a funerária também havia deixado sua marca, com anjinhos sacanas carregando-as para o céu. E antes de recomeçar a choradeira alguém gritou: "Já que está embrulhado vai assim mesmo". Desceram o caixão e terminou o desespero. O genro justificava que as lembranças ficam, a publicidade morre e que ninguém lembraria de quem patrocinou e sim de quem se foi. Acabou sendo conhecido no lugar e foi próspero nos negócios. Graças ao garoto-propaganda Benedito que morreu sem entender a alma do negócio.

3 comentários:

Anônimo disse...

Caraca..muito bom.
Sem comentários.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Saudades papaya!
:)

Bjs