quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

FIGURINHAS REPETIDAS

O fato de estar escrevendo agora, antes do combinado, esconde uma verdade: eu não quero me despedir deste dia. Já amanhece na cidade, mas dentro de mim, estrobles e slide-flashs ainda se chacoalham como vaga-lumes apaixonados. No meio deles, ela. Na minha pele, outras lembranças também se misturam, ora sinto o cheiro da máquina de fumaça, ora sinto seu perfume.

As calçadas estão vazias e sujas, quase silêncio. O homem que joga água na calçada para começar o dia de trabalho na loja, me olha com desprezo. Não sou vagabundo, apenas gosto de sair segunda feira. Caminho no sentido oposto, incomodado por virar de costas para o local onde tudo aconteceu. A paixão é como uma conjuntivite que não deixa dúvidas sobre seus sintomas. Vírus sacana, que me deu olhos turvos e por mais que tentasse olhar para outras, era ela que eu queria. Só ela, como se tivesse sempre me pertencido e todo o motivo pelo qual enfrentei corre-corre da chuva, caixa eletrônico, almoço em 30 minutos e ressaca inevitável, se compensasse naquele momento que cruzamos nossos sorrisos como duas gôndolas à passeio. Pelo reflexo na vitrine apagada da rua percebo que até agora ainda guardo parte desta alegria nos cantos da boca.

Conversamos como velhos amigos e foi de forma tão natural que não conseguiria lembrar como me aproximei. Falei, falei, falei até o ponto de me sentir idiota, como uma menina que encontra seu pai pela primeira vez e precisa mostrar urgentemente sua importância, sufocando um medo terrível de vê-lo partir novamente. No começo tentei desviar, blefar, minimizar, usar todos os artifícios que 18 meses de boemia e solidão me deram, mas bastou ouvir suas ironias e sentir sua mão delicada sob meus ombros, para deixar escapar elogios voadores e coloridos. Negar elogios a uma mulher é tão difícil quanto resistir a sobremesa.

Sentado no umbral do portão, recebo o afago do meu cão, me revisitando com seu nariz gelado e rosa. Eu que sempre o critiquei, por seu amor incondicional, quase patético, me vejo dividindo com ele o mesmo olhar melancólico a cada vez que a porta se fecha. Quando a convidei para sair dali e o pedido foi negado, soou o alarme, o reservatório do coração encheu de orgulho, expulsando as expectativas pelo ladrão. Me afastei e fiquei de longe, como uma esposa de pescador na beira do cais, vendo minhas esperanças se afastarem a cada rapaz que se aproximava dela. Ainda me assusto com seu jeito de mulher resolvida, fumante irreversível, que nunca está com o copo vazio tamanha é a oferta masculina para enche-lo. Ainda não encontrei em mim o motivo pelo qual me atraio por mulheres assim, de sorrisos largos e perigosos. Definitivamente jogos de amor são para adultos. O cara se aproximou. Abraçou. Fungou. Acarinhou. Cochichou. Partiu. Opa, melhor eu voltar.

Nunca gostei de apostas e acho que quanto mais necessitado o homem está, mais ele sucumbe na esperança por uma vida melhor repentinamente, porém hoje a bola caiu no 22 preto, onde, sem perceber, eu escondi minhas fichas. Sinto um troço preso na garganta a cada vez que penso nela, pois não consigo expulsar os pensamentos, muito menos engoli-los. Porém, mesmo com este refluxo, gozo de um prazer enorme ao relembrar este encaixe perfeito, geralmente encontrado nas peças de quebra-cabeças e nas rodinhas de caminhões de madeira. Sim, finalmente nos beijamos e nos olhamos e nos sentimos, tão efusivamente, que me confundi com ela mesma, numa cumplicidade rara. Nem a luz fria e impessoal do salão principal nos separou.

Tenho que ir trabalhar e resisto para não dormir sentado aqui. O sol já acena no final da rua e o cheiro de café abraça minha casa anunciando uma avó com insônia. Tiro do bolso nossas figurinhas repetidas, que não canso de rever, talvez para reafirmar que na vida colecionamos o mesmo álbum. Somos de escorpião, vamos estudar em outro país, somos debochados e risonhos, cantamos as mesmas canções. Porém esta é apenas uma noite, não uma vida, como ela costuma dizer, e preciso controlar meu impulsos de homem-bala. Com o lamento de um devedor que precisa penhorar seus bens, abro as mãos e ela escapa entre meus dedos, sem promessas, nem juras. Nada.
Estas são as regras da noite, onde o ideal e o desejado nem sempre andam de braços dados. O táxi amarelo some depois da curva à direita. Já amanhece na cidade, mas dentro de mim, estrobles e slide-flashs ainda se chacoalham como vaga-lumes apaixonados.

Um comentário:

Anônimo disse...

''agora ela parecia muito melhor, quase uma mulher normal. bem, no fundo eu sabia que nunca seria uma mulher normal. nem queria que fosse, porque o que amava nela era também o indômito e imprévisivel da sua personalidade.'' p. 240.

muito bonito seu texto que leio no dia de todas as mulheres.