quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O ABANDONO DA MULHER QUE NUNCA TIVE

Foi no dia que a nostalgia me acordou com sussurros abafados pelo travesseiro que eu pensei nela. Sob a desculpa de ter encontrado a simetria que formava a primeira letra do seu nome nas estrelas de papel coladas no teto do quarto, me permiti desvirar o porta-retrato do coração para descobrir nós dois em um único sorriso cercados de uma paisagem qualquer. Poderia ser no primeiro chopp da minha vida ou assistindo o despretensioso filme francês de uma quinta-feira úmida. Não importa. O que estivesse projetado atrás de nós seria apenas uma justificativa, um cenário projetado em croma que escondia nosso orgulho azul de mostrar as verdadeiras cores de uma saudade sazonal. Ora desaparecia, ora invadia.

Ainda no meu casulo de escuridão, sem mexer as pupilas, revirei quinquilharias em mochilas e armários na necessidade de tangibilizar sua pontual presença na minha vida, mas nada restou, apenas algumas impessoais notas fiscais. Todo aquele sentimento, que pelo menos neste momento de abandono de si, eu considerava o mais valioso da minha breve história de amante, estava sob a vigilância das traças do esquecimento que já começaram a roer as datas e nomes. O contrário de sua imagem. Esta será imaculada, carimbada e catalogada nos arquivos da eternidade particular, mesmo que só retorne a ser protagonista quanto Deus me sentar na cadeira dos réus e passar toda minha história em seu cineminha particular. Caso estejamos juntos Ele irá gostar de ver nosso último encontro pois, mesmo contrário aos seus princípios – que criou o sexo com a única função de reprodução, o todo-poderoso se renderá a engenhosidade do ser humano de recriar objetos, atos e emoções, a ponto de transformar gemidos e suor em prova constante de amor. Mais que uma parceira de cama, que perde a validade quanto o dia vem, ela foi cúmplice e adversária, alternando seus coringas feitos de sorrisos, ironias e afetos, jogados numa cama apertada abaixo da janela que emoldurava uma favela carioca na plenitude de sua beleza noturna. Assim como nesta noite que aperta minha jugular sem piedade, eu também abri os olhos quando dormíamos e tentei em vão ler os recados de seu quadro desorganizado logo em frente, e deveria ter entendido ali a minha proporção minúscula no seu destino, pois no mar de papeizinhos coloridos não havia qualquer citação sobre mim. Burro que fui, no êxtase provocado pela imagem mais bonita que já vi na vida – uma mulher nua adormecida em meu peito, não fui capaz de entender que seu ressonar não eram espasmos de euforia pela conquista e sim suspiros do dever cumprido.

Foram quatro estações, um punhado de encontros, algumas dezenas de beijos e um, ou no máximo dois orgasmos, porém a distância tornava cada oportunidade de estar junto em algo inédito que devorávamos com a mesma ansiedade e lamento das últimas pipocas da tigela. A cada vez que me despedia sabia o quanto eu demoraria a vê-la mesmo tendo celebrado horas atrás uma cumplicidade gritante. Na minha intimidade eu fingia entender seu labirinto sentimental e conseguia conviver em silêncio, batendo cabeça em suas paredes até que uma coincidência ao dobrar na esquina ou esbarrar no bloco nos faria achar o rumo novamente. Foi lá, entre seus corredores intermináveis, que escondi um homem que não sou mais. Com ela, só com ela, morava a minha última esperança de voltar a ser alguém apaixonado e correto, que freqüentava roda de amigos e casa de parentes, passando finais de semana redescobrindo programas de TV, pratos de comida e novas marquinhas na pele, numa paz interior que só quem encontrou o amor da sua vida é capaz de ter.

Sem a companhia das estrelinhas de papel fluorescentes que se renderam ao noturno da casa, corri com as mãos o entorno da TV até achar o celular que iluminou meu rosto amassado e revelou, no fichário virtual, seu último eco numa mensagem escrita sem emoção. “Seja feliz com ele”.Respondi.

2 comentários:

Anônimo disse...

Para ficar registrado que eu li...
Este é o seu lado de que mais gosto!
Beijos!

Diez disse...

Muito bonito Cara! O romântico é como a natureza, todos gostam de vê-la mas poucos procuram preservá-la. O verde só faz falta quando o cinza predomina. Abração!