quinta-feira, 8 de novembro de 2007

CAIXINHA DE SURPRESAS

Por Héllen Dutra


Sábado à noite, iluminado pelo pratear da lua cheia no céu, convidativo ao prazer. Dá aquela vontade de sair, tomar um chopp, reunir os amigos, dançar a noite inteira, fazer qualquer coisa que permita sentir o pulsar da vida. Com o controle remoto, rodeio canal a canal da tv aberta, da tv fechada, a diferença é nenhuma, em todos eles a programação é a mesma. Passo por filmes que parecem bons, apesar de estarem sempre pela metade, novelas que não se acompanham durante a semana, mas que é possível compreender a trama assistindo a um único capítulo, e programas trash, do tipo mais Silvio Santos, impossível. É, parece que será mais um sábado perdido. Eis que acende o celular e faz aquele barulhinho delicioso. (Só quem já perdeu sábados inteiros compartilha do prazer deste momento) Oba! É convite, alguém lembrou de mim e antes mesmo de atender eu já vou correndo trocar de roupa, passar a maquiagem, encontrar a chave do carro, contabilizar a micharia que me resta para diversão... ao abrir o aparelho, a constatação de que se trata de uma mensagem e não de uma ligação, anuncia um possível desapontamento, que não demora para que se comprove. Vamos à praia amanhã? Bj Jane. Maneiro, vamos sim, mas e hoje, não vamos fazer nada? Escrevo imediatamente. A resposta demora a chegar. Ficar olhando aquele aparelhinho mudo, esperando o bendito sinal da resposta, enlouquece qualquer pessoa. Amiga, hoje tenho uma festa de família, não vai dar, mas amanhã tá de pé?
Existe alguma coisa mais terrível do que o quase? Acontecer ou não acontecer, tudo bem, mas quase acontecer é terrível, deixa um travo de decepção amargando na boca e na alma. Aproveito a caixa de entrada em aberto e apertando a tecla do celular, começo a reler as mensagens antigas.“Compra sim, depois te dou o dinheiro”; “Tá em casa? Não consigo te ligar”; “Saudades”, “Vamos sim... quando chegar, te ligo”. “Ontem foi d+, precisamos repetir em breve...” É impressionante como cada mensagem traz, com uma força quase que violenta, momentos cotidianos que por vezes até nos esquecemos de que existiram. Como por exemplo, aquele show do monobloco que, aliás, foi divertidíssimo e movimentou celulares por pelos menos três dias consecutivos: o anterior, prefigurando a organização e a compra dos ingressos – “vamos quebrar tudo no monobloco?”, “eu compro, depois tu me dá”, “te pego às 23 h.”; o dia propriamente dito, – “Caralho, ta aonde? To cansado de te esperar”, “To passando na tua rua” –; e o depois – “Agüentou ir pra pós?”
Pois é, eu não tinha me dado conta de como este aparelhinho podia guardar em sua memória eletrônica tanta história de vida: a frieza da tecnologia a serviço das calorosas relações de amizade e de amor. (O que o filósofo da pós-modernidade, Bauman, acharia disso?) Os torpedos se alicerçam num pacto cúmplice onde a presença e a ausência da palavra é fundamental, pois no espaço intervalar entre o que está escrito e a lacuna que se cria no silêncio das intenções que só os correspondentes entendem, existe um imenso universo de sensações individuais, que ficam no escrito e no que ficou por dizer. Basta ler “pegar o 260 e soltar na C&A.”, para lembrar daquele domingo chuvoso no Méier com a Janaína que foi engraçadíssimo; ou ainda ler “põe o vinho pra gelar!”, (seguindo de uma carinha de animação) para lembrar do coração apertado, ansioso pra contar um segredo para o Ralph. E apenas um “saiu”, vago e reticente, enviado pela amiga no meio do expediente, é capaz de te fazer dar saltos de alegria. Poxa! É aquela promoção que ela tanto esperava... saiu... e ela quis dividir este momento único comigo. Me impressiono com o quanto de intimidade estes pequenos escritos escondem.
Fico a pensar em como os amigos se entendem perfeitamente, em como as palavras são insuficientes para expressar momentos, em como o vazio é significativo, em como é bom ter vivido problemas, pois eles nos dão a possibilidade de receber verdadeiras declarações de amor em ônibus, na sala de aula, no mercado, em qualquer lugar, que se tenha um celular com créditos. Ler um “to do seu lado, te ajudo a vender bala no trem”, enviado pelo Aru, no momento de desespero em que se jogou o mestrado pro alto, acalma o coração; assim como ler um “vamos pra Lapa hoje?”, anima a noite porvir; ou ainda um simples “eu te amo”, da irmã que acaba de compartilhar com você a comprar de seu primeiro carro, pode te fazer disfarçar as lágrimas em pleno calçadão de Madureira. E ainda quantas lembranças amorosas guardam o verbo “cheguei”, enviado de madrugada para o amante? Como um mosaico, a caixinha de entrada do celular é capaz de contar o mais essencial da vida de cada um de nós, guardada nesta memória que ninguém duvida que seja quase humana.

2 comentários:

Unknown disse...

É de uma sensibilidade incrível e invejável! A mistura de tecnologia, desejos e vontades e expectativas, nos faz pensar como às vezes somos reticentes ao nos comunicarmos, ora intencionalmente, ora por falta de espaço na telinha- ou então falta de créditos-, com as pessoas a nossa volta. Porém, uma coisa é certa: O universo da comunicação digital, se completa na intimidade pessoal, diária ou não. Todavia, não é fácil se fazer entender com uma ou duas palavras, tampouco entender duas ou três, mas, conseguimos e seguimos aguardando o próximo "tim tim" ou "tom tom", que será responsável ou por uma enxurrada de adrenalina no sangue, ou, como diz a nossa amiga: um balde de água fria via satélite!
e viva a tecnologia!!

Unknown disse...

Eu já sou suspeito para comentar os textos de nossa queridíssima Héllen. Esta morena vem me surpreendendo mais e mais. Como sempre, uma escrita densa e provocante, mergulhada no caos da modernidade líquida. Parabéns!