quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O SÓTÃO DE NINA

Nina nunca teve gato, nem cachorro nem peixinho. Mas teve marido, que considerava seu melhor companheiro até que o descobriu chumbado ao corpo de outra, numa cama suja qualquer, surpreendido no meio do papai-mamãe, cujo rosto da dona ninguém jamais voltou a ver, tamanho foi o estrago feito pelas balas do revólver de seu amante ciumento. Para Nina, sobraram além da notícia impressa no jornal popular e uma pensão micha de cabo do exército reformado, o arrependimento de não ter filhos com ele, e agora, em seus quase cinqüenta, com mais ninguém.

É muito difícil para a mulher que entrega seu destino na mão de um homem, reencontrá-lo novamente no meio dos escombros de um falecimento. A casa e rotina construída por ele eram as únicas coisas que Nina tinha e tratou de preservá-las. Repetia a arrumação das roupas, as marcas de shampoo e os horários de evacuar, como se pudesse guardar dentro da caixa de sapato o eco de suas ordens. Durante três anos, oito meses e dois dias foi assim, até que Deus resolveu mostrar para Nina que somente Ele podia controlar o tempo e as coisas e mandou a natureza fazer-lhe uma visita.

Deitada sob a manta azul quadriculada, de olhos arregalados mirando o lustre do quarto que pendia do teto como um brinco gigante no meio do breu, a senhora sentia o pulsar do seu sangue cutucar-lhe os tímpanos, tamanho foi o susto quando ouviu barulhos no telhado. Sua primeira impressão foram passos de um ladrão estabanado, mas a intermitência do ruído e o agudo estridente não deixavam dúvida: tinha uma ratazana no sótão.

Nina sempre foi pobre, mas como única filha de uma leva de rapazes, recebeu tratamento de condessa, naquela época resumido a um pouco mais que presentes só para ela e um quarto com detalhes rosas e bonecas de olhos de botão. Nunca fora educada a ter atitude, pelo contrário, sua mãe cansava de repetir-lhe que a mulher na sociedade nunca deveria destacar-se mais que o homem. Por isso, aquela mulher solitária, prostrada em uma cama de ferro, com olhos arregalados como dois camafeus, simplesmente ignorou as evidências do bicho asqueroso no telhado, assim como fez com o batom no colarinho e o cheiro de conhaque barato no ronco do seu marido. Desta vez, porém, não havia amantes ciumentos em seu sótão e a ratazana parecia cada vez mais à vontade em sua nova casa. Sapateava com as unhas afiadas pelo forro de madeira a ponto de vazar-lhe poeira pelas juntas, que desciam do teto como a areia escoa pelas ampulhetas, sujando os bibelôs da cama. Também arrastava seus alimentos encarniçados durante o dia lá pra cima, tornando as madrugadas de calor pestilentas em qualquer cômodo.

Assim como os calouros que moram nas repúblicas precisam se ajeitar às novas regras de convívio, Nina foi abrindo mão dos prazeres que tinha perante a ameaça indestrutível no telhado. Sem seus hábitos, último dos quesitos que lhe davam uma certa individualidade, a moça anulou-se completamente, pois, se existia algo mais impenetrável que a rotina conservada após a viuvez, era seu papel de vítima indefesa praticado por toda a vida, com voz fraquinha, cor pálida e sorriso sem firmeza em qualquer fotografia. As orações, as 12 horas bem dormidas e a esperança diária de sonhar com as mãos quentes do seu homem entre o ventre a coberta foram substituídas por calmantes, antes cortados com a faca, agora mastigados como chicletes. A limpeza da casa, indiferente frente ao futum que o bicho deixava, foi substituída pelo spray desodorizador de ambientes tornando o ar tão grosso que era difícil entrar pelas narinas. O sol também foi expulso da casa, graças ao papel pardo colado nos vidros que impediam o despertar prematuro do sono quando este finalmente chegava. Nina não dormia mais no quarto, mas em qualquer lugar que pudesse recostar. A falta de pudor, que temos mais pelos outros do que por nós mesmos, fazia da moça um maltrapilho vestido apenas com pijamas velhos todo o tempo, jantando e almoçando enlatados que nem percebia estar fora da validade, por estes não exprimirem nem cheiro nem gosto.

A maior repugnância que poderia existir naquela casa de fundos tão igual a qualquer outra casa de fundos em qualquer bairro de qualquer periferia do mundo, não morava no sótão da casa de Nina, mas sim dentro de algum cômodo escuro de sua consciência, pois, durante toda a existência, não percebeu os andares de sua personalidade, a bipolaridade de seus sentimentos. Ao mesmo tempo que sentia um ódio colérico pelo animal, por atrapalhar seus dias iguais, cagando e roendo seu vestido de noiva e outra lembranças que entocou no local, sentia gratidão por ele, a quem pôde novamente entregar as rédeas de sua vida.

Nina despediu-se do mundo no dia do 5o aniversário de falecimento de seu marido, dando a ela o falso status de mulher que morreu por amar demais. Indiferente, a ratazana teve filhotes e seguiu seu rumo, instintivamente.

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