Não era uma casa muito engraçada. Sinistra até. Entre o portão e o imóvel, um terreno mal iluminado dava poucas pistas sobre o dono. Onde seria um antigo jardim, o mato e a trepadeira deitavam sua soberania verde-escura, cobrindo anões e sapos de gesso. Ela abriu o portão em um só golpe, como nenhum cachorro ladrou, seguiu as pedras no chão pouco visíveis naquele horário lusco-fusco. Via-se uma luz fraca pela portilhola e nada mais. Chamou baixinho e nada de resposta. Entrou na varanda, tentou de novo. Viu um bilhete preso: “Por favor cuide dele. Não posso mais.” Não se assustou. Como enfermeira em tantos asilos, já estava acostumada com abandono e mal-trato. Abriu a porta de madeira detalhada e foi tentando se encontrar. Entre móveis velhos identificou a entrada de onde vinha a luz. No banheiro de azulejos detalhados, chamava atenção o espelho quebrado com marca de sangue seco, onde Luzia se viu pela primeira vez. Estava despenteada e suada depois de tantos ônibus lotados. Começou o procedimento de assepsia, colocando luvas, gorro e jaleco distraída com as notícias de terremoto em Lima que havia lido cedo, mas foi surpreendida pelo vulto estranho entrando no banheiro, esbarrando na porta, com o pênis na mão. O observou sem ser notada. Tinha textura de um pão de queijo, sem um pêlo cobrindo o corpo de tom amarelado, coberto de pintas. Era tão alto que precisava abaixar a cabeça para passar sobre o umbral que revelava marcas de antigas pancadas. Esperou que voltasse e o seguiu. No quarto fétido, sem luz, o velho deitou-se novamente resmungando coisas indecifráveis e logo adormeceu. Luzia catou a indicação que recebera, tentando relembrar o histórico do paciente.
Pouco sabia-se dele. Estrangeiro, vindo de uma família de poloneses, estruturou sua vida trabalhando no serviço de correios e telégrafos mas perdeu tudo por causa do jogo. Os vizinhos juravam que já havia sucumbido pela presença de urubus no quintal, mas foi visto por estudantes que fumavam baseado em sua varanda. Dele, era impossível saber algo, afinal, o mal de Alzheimer em estágio avançado nem o permitia lembrar como mijar direito.
Luzia sentou-se ao seu lado numa cadeira e aos poucos se aproximou. No exame de toque detectou anemia pelas pálpebras e alguma chagas nas costas e nas pernas. O paciente imóvel, parecia morto. Seguiu conferindo ossos e veias, até que, ao seu lado, uma velha caixinha de música dá seu alarde, despertando o velho que levanta-se gritando, indo de um cômodo ao outro, como se procurasse uma saída. Sentindo o sangue gelar, Luzia refugiou-se no quarto ao lado, onde adormece vencida pelo dia estranho. Muitos pensamentos a seguiram naquela noite porém o que prevaleceu foi seu compromisso assumido como aluna exemplar na Escola de Enfermagem Dra. Adair Teixeira.
A luz do dia seguinte revelou cômodos repletos de bibelôs coloridos, calendários antigos e sofás e camas de madeira Luis XV. Seu paciente também parecia mais calmo, sentado na cadeira de balanço, fingindo ler um jornal de 15 de abril de 1988, de cabeça para baixo. Mesmo contra sua vontade deu uma geral na casa, arrastando móveis e abrindo janelas. Aos poucos tudo voltaria ao normal. Chamou sua atenção os inúmeros porta-retratos espalhados por todos os lugares, sempre com paisagens incríveis de recantos desconhecidos. Ora ou outra, o velho levantava-se, escolhia uma das fotos e a contemplava longamente, por vezes chorando em silêncio. Luzia lembrou da caixinha de música e foi desarmá-la evitando novos sustos. Na penteadeira de pernas arcadas e tampo redondo meio rococó, ela repousava no centro, sozinha. Com cuidado a enfermeira a pegou nos braços. Era grande e pesada, do tamanho de uma caixa de sapato e, em cima , marcado com algo pontiagudo, lia-se “Herança”.
Um sentimento estranho tomou conta dela, que viu naqueles segundos a oportunidade da sua vida mudar. “Depois de limpar tanto velho cagão, eu mereço”. Pela porta dos fundos, foi até o limite do terreno e, numa distância onde o dono não pudesse ouvir, a abriu. Um par de óculos, uma caneta tinteiro e muitos bilhetes de loteria preenchido. Sentiu-se burra em lembrar que o velho havia perdido tudo em apostas e, desanimada, analisou os papéis, na esperança de alguma dica que a fizesse ganhar dinheiro. Os números eram desencontrados e sem qualquer lógica. Mesmo assim, anotou alguns e foi fazer sua fezinha.
Orgulhava-se de sua natureza cigana, explicada em uma regressão feita quando jovem. Por isso mesmo Luzia adaptou-se rapidamente ao seu novo lar, decorando-o com flores e determinando hábitos. O velho, um pouco mais sadio, vestia conjuntos floridos de viscose, única coisa que ela sabia costurar, e passeava pelo jardim diariamente para tomar sol. Seguiam os dois, num pacto de silêncio, interrompido pelo radio baixinho na cozinha, que um dia anunciou o resultado da Loterj.
“Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem cú”, repetia Luzia várias vezes naquele dia. Ficou tão indignada com a falta de sorte do velho que não se conteve. Pegou a caixinha e, derramando sobre a cama o perguntou sobre a herança. Ele a observava de olhos arregalados sem entender, até que identificou seu bilhete. Correu desesperado para a sala e, numa braçada, recolheu seus porta-retratos, que caíam no chão, quebrando seus vidros. Com os pés cortados, o polonês tentava fugir pela casa, escorregando em seu próprio sangue. Luzia arrependida, pedia calma aos berros, tentando arrumar a bagunça. Passou a noite limpando a sujeirada e pensando nos números. Não era possível. Precisava entender que herança era aquela.
Ao copiá-los repetidas vezes, percebeu algumas coincidências numéricas. Estava chegando lá. Lembrou dos retratos. Lembrou da Polônia, dos jogos, da família abandonada, da profissão...
Junto com os primeiros raios da manhã, Luzia deu um salto da mesa da cozinha. Depois de consultar o mapa de ruas e bairros, recolheu alguns itens na bolsa, inclusive algumas peças de roupa de ambos, todos os bilhetes e acordou o velho de súbito. Com dificuldade em carregá-lo, tomou um ônibus até a rodoviária e, antes do meio-dia já se encontrava a quilômetros da casa. No ponto que desceram consultou os números novamente e determinou a direção. Subiram a ladeira escorando-se com muita dificuldade e após muitas horas de sacrifício, finalmente chegaram ao local. Uma praça com muito verde, mesinhas e caramanchão. O velho, sem reação até ali, seguiu andando até um mirante invisível daquele ângulo. De lá os dois viram as montanhas do Mendanha, a plantação de laranja e e o mar da restinga da Marambaia. O velho, antigo carteiro da cidade, pode rever os lugares que andou e nunca gostaria de ter esquecido. Anotar o CEP com os números do bilhete da loteria foi sua forma de lembrar sua maior lição, que algumas coisas da vida, não há dinheiro que compre.
Um comentário:
Já falei minhas impressões diretamente pra vc... Vc viaja!!! Adoro!!! Ahahaha Beijão
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