por Héllen Dutra
O vento crispava na vidraça, Rebeca percorria o salão principal, não a olhar, mas a sentir o cair da chuva, martelando na calçada de cimento. O balé das árvores lá fora dava a ela a impressão de uma dança macabra, ritmada pelo assoviar agudo da tempestade. Toda paisagem era molhada, de uma umidade doce que trazia o cheiro de manacá, impregnando os póros de uma saudade, era mais melancolia de uma planta roxinha que enfeitava a fachada da casa de vovó. Como era linda aquela arvorezinha, quando florida, alegrava todo o jardim e fazia a festa dos primos que arrancavam uma a uma as flores para presentear as primas mais jovens. Já que primos não eram irmãos e podiam namorar. Isso era o que pensava a criançada, diferentemente dos adultos que sempre espreitando a brincadeira, preocupavam-se com os beijos escondidos atrás dos rotundos troncos. Sempre era possível rolar na grama ou abrigar-se à sombra das imensas árvores que cruzavam seus galhos no ar. Era bonito ver o apoiar de um galho no outro que roçando de vez em quando as folhas, confundiam-se como uma coisa só. Havia várias trilhas cortando o jardim, caminhos tortos, irregulares que sempre nos levavam a lugares iguais, mas ao mesmo tempo diferentes; caminhos que convidavam a deliciosa tarefa de perder-se e achar-se a qualquer hora do dia.
Ao ocasional toque no braço, Rebeca voltou a observar o quadro de Velázquez, aquela imagem de Vênus, a deusa do amor e da sensualidade, mirando-se no espelho quebrou em fragmentos eternos a memória da infância. Como o estridente barulho do despertador cessa a noite tranqüila de sono, a realidade intimou a volta. A imagem das curvas sinuosas, das costas alvas e brilhantes, das nádegas de uma perfeição algébrica da deusa grega, levaram Rebeca a querer tatear os becos íntimos de seu próprio corpo. Ao primeiro toque, suas mãos não ousaram prosseguir, a sobressalência do rosto enrugado era desanimadora. Com a língua provou, nas comissuras dos lábios, o amargo do passar do tempo. Continuou a caminhar e se deparou com um espelho imenso que parecia multiplicar em mil vezes sua imagem. Agora, não mais a Afrodite, mas apenas ela, Rebeca, a olhar-se no espelho. Olhou, olhou, olhou de novo. Em que milímetro de seu corpo estaria aquela menina solta, alegre da vida? Aquela moça rendida a amores? Não achava vestígio algum, nem de longe. Seu olhar percorreu o cabelo acaju, as maçãs do rosto, se reteve um pouco mais no pescoço e escorregou até a banal silhueta criada pela blusa social preta e a saia jeans. Parecia outra ou era outra? Aquela imagem a repugnava. Como uma estranha, pegou o casaco, o guarda-chuva, olhou-se uma vez mais e caminhou resignada em direção à saída. Fora da galeria, seguiu reto, dobrou a esquerda, parou em frente ao sinal de trânsito e esperou o vermelho virar verde. Lembrou ainda que não tinha descongelado o frango e, por isso, o jantar daria mais trabalho para ser preparado. Talvez fosse melhor ir ao mercado, comprar algo pronto, um enlatado qualquer, ou poderia fazer um lanche. Para que jantar? Queria mesmo era ficar ali a vagar pela rua, observando os pingos de chuva a tilintarem no asfalto.
Não agüentava mais aquele insuportável cheiro azedo de mofo que emanava de tudo em sua casa. Os móveis, testemunhas do tempo, descascavam como pele estriada de cascavel. O ranger do assoalho em ruínas denunciava cada passo que ousasse interromper o silêncio mórbido. Desde a janela impregnada de gordura humana até as teias de aranha que decoravam as paredes pardas, tudo ali lembrava abandono. O marido, mais um acessório da mobília, confundia-se com os bibelôs da estante na impassividade e na cafonice. Não se sabe se por asco ou, apenas, por impotência exitava em tocá-la. Seu corpo magro, enrugado e fedorento de mulher passada do prazo de validade, há muito não recebia o bom quente do calor de nenhum outro. Não se incomodava com isso, não precisar assistir ao espetáculo de sua flacidez generalizada era mais um prêmio do que um fardo.
Mesmo ao verdear do semáforo, Rebeca permanecia estática, inebriada pelo tom limão florescente que criava uma iluminação toda diferente nas poças de água, quando foi surpreendida por um gelado na nuca e um sussurro no ouvido. Segue sem olhar pra trás, foi a ordem que ela imediatamente atendeu. O coração aos pulos, quase arrebentava as veias que recebiam o forte bombear de sangue nervoso, a respiração ofegante fazia os seios arquearem pra cima e pra baixo na blusa molhada, num ritmo quase latino. Seguiu por uma viela e foi atirada contra uma parede pichada, num beco escuro que ela nem sabia que existia naquela cidade. Uma mão com violência arrebentou todos os botões de sua blusa, mostrando o velho sutiã bege. Com uma voracidade de animal no cio, sentiu o sugar no bico do peito que começava a irrijecer-se não mais pelo frio, do que pelo toque da língua molhada e quente que subia e descia numa fricção louca. Fez tenção de gritar, tentar correr, pedir ajuda, mas um puxão de cabelo e um soco a fizeram calar.
Caída no chão, arrastou-se o que pôde, mas a força do outro a impedia de qualquer fuga. Molhada, sentiu o entrar violento que fendia sua carne, a principio relutante, mas que, ao contato abrasador da pele do outro, relaxou desejosa. Num preenchimento quase que total, sentiu agulhas picarem todos os espaços de seu corpo, criando uma dormência que paralisava a alma. Foi envolvida por um cheiro acre de cachaça misturada com perfume barato e suor operário – cheiro de macho. Abriu os olhos e contemplou a barba por fazer e a achou bonita tanto quanto à cicatriz do braço direito. A cada arremetida, sentia o abrir de seu corpo exatamente na mesma proporção da ferida em seu ventre, que rasgado pelo canivete, fazia jorrar um sangue grosso, fervente, vermelho-negro que pintava sensualmente suas coxas. O cheiro de manacá a embriagou, quase como um ópio, ficou de novo menina, deitada na relva fresca do jardim de vovó, olhando a infinitude azul do céu. Na última investida do membro, que coincidiu com a facada fatal, foi toda ela banhada por um líquido viscoso que encharcava da cintura para baixo. Experimentou o vazio da saída. Ainda teve tempo para encurvar um pouco a cabeça para o lado na tentativa de gravar na memória a última imagem daquele homem, deparou-se, no entanto, com seu reflexo na poça d’água, como um espelho, fixou o olhar já turvado e confuso pela perda de sangue e pode ainda ver a imagem de Vênus.
O vento crispava na vidraça, Rebeca percorria o salão principal, não a olhar, mas a sentir o cair da chuva, martelando na calçada de cimento. O balé das árvores lá fora dava a ela a impressão de uma dança macabra, ritmada pelo assoviar agudo da tempestade. Toda paisagem era molhada, de uma umidade doce que trazia o cheiro de manacá, impregnando os póros de uma saudade, era mais melancolia de uma planta roxinha que enfeitava a fachada da casa de vovó. Como era linda aquela arvorezinha, quando florida, alegrava todo o jardim e fazia a festa dos primos que arrancavam uma a uma as flores para presentear as primas mais jovens. Já que primos não eram irmãos e podiam namorar. Isso era o que pensava a criançada, diferentemente dos adultos que sempre espreitando a brincadeira, preocupavam-se com os beijos escondidos atrás dos rotundos troncos. Sempre era possível rolar na grama ou abrigar-se à sombra das imensas árvores que cruzavam seus galhos no ar. Era bonito ver o apoiar de um galho no outro que roçando de vez em quando as folhas, confundiam-se como uma coisa só. Havia várias trilhas cortando o jardim, caminhos tortos, irregulares que sempre nos levavam a lugares iguais, mas ao mesmo tempo diferentes; caminhos que convidavam a deliciosa tarefa de perder-se e achar-se a qualquer hora do dia.
Ao ocasional toque no braço, Rebeca voltou a observar o quadro de Velázquez, aquela imagem de Vênus, a deusa do amor e da sensualidade, mirando-se no espelho quebrou em fragmentos eternos a memória da infância. Como o estridente barulho do despertador cessa a noite tranqüila de sono, a realidade intimou a volta. A imagem das curvas sinuosas, das costas alvas e brilhantes, das nádegas de uma perfeição algébrica da deusa grega, levaram Rebeca a querer tatear os becos íntimos de seu próprio corpo. Ao primeiro toque, suas mãos não ousaram prosseguir, a sobressalência do rosto enrugado era desanimadora. Com a língua provou, nas comissuras dos lábios, o amargo do passar do tempo. Continuou a caminhar e se deparou com um espelho imenso que parecia multiplicar em mil vezes sua imagem. Agora, não mais a Afrodite, mas apenas ela, Rebeca, a olhar-se no espelho. Olhou, olhou, olhou de novo. Em que milímetro de seu corpo estaria aquela menina solta, alegre da vida? Aquela moça rendida a amores? Não achava vestígio algum, nem de longe. Seu olhar percorreu o cabelo acaju, as maçãs do rosto, se reteve um pouco mais no pescoço e escorregou até a banal silhueta criada pela blusa social preta e a saia jeans. Parecia outra ou era outra? Aquela imagem a repugnava. Como uma estranha, pegou o casaco, o guarda-chuva, olhou-se uma vez mais e caminhou resignada em direção à saída. Fora da galeria, seguiu reto, dobrou a esquerda, parou em frente ao sinal de trânsito e esperou o vermelho virar verde. Lembrou ainda que não tinha descongelado o frango e, por isso, o jantar daria mais trabalho para ser preparado. Talvez fosse melhor ir ao mercado, comprar algo pronto, um enlatado qualquer, ou poderia fazer um lanche. Para que jantar? Queria mesmo era ficar ali a vagar pela rua, observando os pingos de chuva a tilintarem no asfalto.
Não agüentava mais aquele insuportável cheiro azedo de mofo que emanava de tudo em sua casa. Os móveis, testemunhas do tempo, descascavam como pele estriada de cascavel. O ranger do assoalho em ruínas denunciava cada passo que ousasse interromper o silêncio mórbido. Desde a janela impregnada de gordura humana até as teias de aranha que decoravam as paredes pardas, tudo ali lembrava abandono. O marido, mais um acessório da mobília, confundia-se com os bibelôs da estante na impassividade e na cafonice. Não se sabe se por asco ou, apenas, por impotência exitava em tocá-la. Seu corpo magro, enrugado e fedorento de mulher passada do prazo de validade, há muito não recebia o bom quente do calor de nenhum outro. Não se incomodava com isso, não precisar assistir ao espetáculo de sua flacidez generalizada era mais um prêmio do que um fardo.
Mesmo ao verdear do semáforo, Rebeca permanecia estática, inebriada pelo tom limão florescente que criava uma iluminação toda diferente nas poças de água, quando foi surpreendida por um gelado na nuca e um sussurro no ouvido. Segue sem olhar pra trás, foi a ordem que ela imediatamente atendeu. O coração aos pulos, quase arrebentava as veias que recebiam o forte bombear de sangue nervoso, a respiração ofegante fazia os seios arquearem pra cima e pra baixo na blusa molhada, num ritmo quase latino. Seguiu por uma viela e foi atirada contra uma parede pichada, num beco escuro que ela nem sabia que existia naquela cidade. Uma mão com violência arrebentou todos os botões de sua blusa, mostrando o velho sutiã bege. Com uma voracidade de animal no cio, sentiu o sugar no bico do peito que começava a irrijecer-se não mais pelo frio, do que pelo toque da língua molhada e quente que subia e descia numa fricção louca. Fez tenção de gritar, tentar correr, pedir ajuda, mas um puxão de cabelo e um soco a fizeram calar.
Caída no chão, arrastou-se o que pôde, mas a força do outro a impedia de qualquer fuga. Molhada, sentiu o entrar violento que fendia sua carne, a principio relutante, mas que, ao contato abrasador da pele do outro, relaxou desejosa. Num preenchimento quase que total, sentiu agulhas picarem todos os espaços de seu corpo, criando uma dormência que paralisava a alma. Foi envolvida por um cheiro acre de cachaça misturada com perfume barato e suor operário – cheiro de macho. Abriu os olhos e contemplou a barba por fazer e a achou bonita tanto quanto à cicatriz do braço direito. A cada arremetida, sentia o abrir de seu corpo exatamente na mesma proporção da ferida em seu ventre, que rasgado pelo canivete, fazia jorrar um sangue grosso, fervente, vermelho-negro que pintava sensualmente suas coxas. O cheiro de manacá a embriagou, quase como um ópio, ficou de novo menina, deitada na relva fresca do jardim de vovó, olhando a infinitude azul do céu. Na última investida do membro, que coincidiu com a facada fatal, foi toda ela banhada por um líquido viscoso que encharcava da cintura para baixo. Experimentou o vazio da saída. Ainda teve tempo para encurvar um pouco a cabeça para o lado na tentativa de gravar na memória a última imagem daquele homem, deparou-se, no entanto, com seu reflexo na poça d’água, como um espelho, fixou o olhar já turvado e confuso pela perda de sangue e pode ainda ver a imagem de Vênus.
6 comentários:
Que texto é esse? Parecia até Rogério Skylab. Muito bom Aru! Sua técnica ao escrever está cada vez mais profissional. Tenho uma teoria sobre essa sua obsessão por mulheres maduras e amarguradas. Explico ela qualquer dia quando estiver novamente ae. Abração!!
RESPOSTA AO COMENTÁRIO
Felizmente Diez este não é um texto meu. É da Hellen, uma amiga que eu dou a maior força para iniciar na carreira de escritora. Pelos seus elogios eu imagino que você também seja mais um a incentivá-la. Parabéns moça!
Parabéns!
Sempre acreditei que serias uma grande ESCRITORA, não me enganei.
Vá em frente menina.
Você tem talento.
Certamente Héllen é uma das mais promissoras jovens da nova safra de escritores-críticos, para usar um conceito de Leyla Perrone-Moisés. Essa professora, escritora e, acima de tudo, mulher independente, nos brinda, mais uma vez com um texto inteligente, repleto de pontes com outros campos do saber, ligações que faz sem impáfia ou sem levantar bandeira alguma. Dentre as leitoras de Bataille e Baudelaire (como ela mesma sublinha) que conheço, Héllen Dutra, que tive o privilégio de conhecer na UFRJ, brilha como uma das mais inteligentes e fecundas. Parabéns, vida longa à produção literária!
Otávio Rios
otaviorios@gmail.com
BOm conto! Adorei o jogo de líquidos:chuva, água, semen, sangue. Tudo misturado, criando um clima de erotismo e terror. Concordo com o Otávio, bem baudeliariano!
PARABÉNS, fofa!
Quando vc defende a tese? Me convida, tá.
Drica
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