“Cadê minha costeletas?”, olhei no espelho tarde demais. O Barbeiro havia arrancado as duas, sem muita cerimônia. Disse algo como acertar o pé e deixou pra lá. Paguei as 10 pratas que o devia e achei justo não cortar mais cabelo ali, nunca mais. Ele também nada fez, continuou sua vidinha normal. Dia após dia passava em frente a sua barbearia, aberta junto com os primeiros raios do dia. Era uma portinhola que mal cabia alguém de frente. De azulejo, fria, escura, com cadeiras antigas, alguns calendários passados e jornais de esporte. Frente aos salões de beleza era algo repugnante, que ficava às moscas na maior parte do tempo. Eu passava, assoviava e ele, somente com as sobrancelhas, respondia. Na verdade sempre olhei o cara de rabo de olho, meio sem vontade, mas fui convencido a cortar em um dia com muita chuva e preguiça.
Era uma quarta-feira nublada, com as luzes do poste ainda acesas e depois de um mês de silêncio entre ele e eu que fui surpreendido de manhãzinha, com sua voz, logo após ter passado apressado na frente do estabelecimento.
- Bom dia. Sonhei que você ia ter um dia cabeludo pela frente. Vai com Deus, garoto.
Meu barbeiro nunca foi dado a piadas e pelo seu tom seco, grave e compassado, não me parecia uma simples tirada de palavras. Fiquei cabreiro e tive um dia péssimo, mas sem grandes novidades.
Vendo pelo fato dele nunca mais me cumprimentar, podia dizer que aquele foi um episódio pontual. Porém, passado exato um mês, novamente fui surpreendido, agora por um sorriso com dentes trincados. O arrepio me tomou o corpo e passei a ter medo daquele sujeito careca, de bigode, sem muitos amigos. Algumas viagens pensando nisso tive o insight definitivo: ele só falava comigo quando meu cabelo estava grande. Passei a usar boné na época que a juba começava a aparecer mas sempre com uma gracinha discreta, ele se pronunciava.
Nunca fui dado a barbeiros, sempre achei sua figura com navalha e tesoura na mão um tanto quanto assustadora, mas tinha superado isso depois que uma cabelereira de decotes enormes passou a tratar minha capilança, quando adolescente.
Tentando entender o caso me afundei em uma onda maior de pavor depois que descobri, na arquitetura do enorme sobrado da década de 40, com apartamentos e lojas comerciais geminados, a existência de uma passagem interna do seu micro-salão para a loja ao lado, uma funerária. Nunca contei a ninguém mas sempre achei que ele tinha uma pinta de coveiro e agora, tudo passava ter mais sentido: o barbeiro corta cabelo de defunto toda madrugada.
Por isso a loja aberta tão cedo. Por isso o aspecto sujo e sem clientes. Por isso os olhos vermelhos. A imagem dele colocando o presunto sentado na cadeira, iluminado por uma lâmpada fraca de 60w, rindo satisfeito com aquela grana fácil, até hoje não sumiu dos meus pesadelos. Quanto ao meu cabelo a resposta veio a galope, em um dia solitário do outono: ele queria que eu morresse cabeludo.
Pense comigo: 1) Acontece algo comigo, trazem meu corpo pra casa. 2) com o tempo passando a funerária mais próxima fica sendo a melhor opção. 3)contratam a da esquina e como todos estarão em choque, a própria empresa vai ficar responsável por cuidar da minha aparência. 4)É nessa hora que o barbeiro entra.
Seria a glória para quem sabe que enquanto vivo, sou um cliente morto, isto é, que nunca mais pisarei lá. Tentei alternativas como acordar mais cedo e nada adiantou, pois ainda escuro, a portinha dele estava aberta. Tentei raspar a cabeça uma vez mas o cabelo cresce rápido demais. Também tentei dar um pique e correr para não vê-lo mas só chamei mais atenção dos passantes.
Depois de um ano inteiro tenso, que rendeu alterações de humor e calmantes escondidos, ainda vivo sob a vigília implacável do meu barbeiro. Perco boa parte do tempo fazendo caminhos alternativos mas sempre tenho a impressão que, mais cedo ou mais tarde, serei surpreendido por seus agouros, cada vez mais cabeludos.
26 comentários:
Mto Bom!!!
Credoooo!!
Essa eu fikei com medo... tb conheço umas figuras assim, bem sombrias e tb cabeludas! rs
Parabéns pelas crônicas! As quintas-feiras certamente ficaram mais felizes.. e esperadas! rs
Ah, já ia me esquecer...
Haháááaaaaaaaaaaaaaaaa
Uhullllllllllllllllllll!!
uahauhahuaa
É isso aí!
Bjs
:)
pow ae.. nem quero saber quem é essa figura!! huhahuah
muito bom Aru..
parabens!!
KE COISA MEDONHA,AINDA BEM KE EU SÓ VOU EM CABELEREIRA E, Ñ PASSO POR NADA ASSIM,É REALMENTE PRA SE TER TRAUMA!!!!
MUITOS BEIJOS E CONTINUE NOS PRESENTEANDO COM SEU TALENTO!!!!!!
BJKSSSSS!
Adorei Aru!!
Quem é essa figura e qual a veraciedade dessa história?
Texto genial
meticulosissimo!
E ate agora nao sabia que os defuntos se arrumavam pro seu proprio enterro. Faz sentido, eu nao ia querer ser enterrado feio.
Bom texto, J Quest!
o foda é não saber se há um fundo de verdade quando a história não me envolve... hehehe
abs,
Fiquei com medo, mas amei...
Muito criativo!!!
Poderia haver PARTE II. O que achas?
Beijinhos bem cabeludos
Nossa!
Que trauma esse barbeiro te proporcionou!
Vc tem que relaxar, está muito tenso! e um simples barbeiro fez isso com vc!
RSRSRSRSRRSRRS
~Beijão e parabéns pelo Blog novamente
Bem engraçado cara. Faz falta esse tipo de senso de humor por aqui. Parece que me acostumei com a falta dele, mas me peguei cheio de saudades lendo seu texto. Abraços!!
huahau
Será que vc vai virar um defunto autor? Ou seria um autor defunto?
Tá show!
Abração
Ps.: Vou pegar seu tel com a Bruna pra gente almoçar um dia desses.
Me lembre de nunca passar em frente desse salão... Beijos!
oi aruuuuuu( q intimidade hehehehe)
putzz...
fiquei com medo heim....
axo q naum corto mais o cabelo naum***hehehehehe
mais gostei...
as crônicas estão cada vez melhores!!!
bjuuuuuuuuuuuu
:)
Muito bom. Está parecendo coisa do Edgar Allan Poe pela morbidez. Você devia investir mais nesses contos curtos. Por que não tenta publicá-lo em algum site?
Em tempo: meu barbeiro, o Zé, lá de Marechal Hermes, é muito simpático e só falamos do Vasco. E ao lado, felizmente, tem apenas um bar. Lá ainda tem aquela ´cadeira americana´.
Abraços.
Caraca, me lembrou zé do caixão!
Fico bolada com tua criatividade! E em todo caso ´melhor ir pela rua de trás, rs!
Cara, essa história me lembrou aquele filme Meu primeiro amor, que o pai da menina prepara os defuntos dentro de uma sala em casa e ainda começa a namorar uma mulher que passa a maquear os defuntos. Uma parada dessas... que parada bizarra!!!!!!!! Esse barbeiro tem namorada? Cuidado pra não passar a noite em frente desse lugar. Vai que o cara tá precisando de cliente, e vc tem o cabelo meio grande... Eu não arriscaria não.
Continua contando suas histórias. O seu blog é o único até hoje que eu tive saco pra ler...
Bjo
Caramba! Como vc pôde trocar a delicada e meiga cabelereira "dona Índia", que cortou toda sua adolescência o seu macio, brilhante e mosaico black power, por esse medonho mãos de tesoura? Acho que terei pesadelos essa noite... Sou muito emotiva... Sugiro que venha pra Marechal conhecer Seu Zé, aquele que corta o do André! hahahaha
Aruba ta aê ?
Muito boa! Rolei de rir !
Continue assim com este humor...
Abraços...
fgdesigner
Boa, Cíntia, e depois a gente vai na sua casa tomar um café. Fechado?
Serrote é foda...!hahahahahah
bizzaro, babe. deu medo. bjoca.nhac.
Seja lá o que for que você fumou, honey, tava mofado.
show de bola, envolvente. Estava sozinha em casa no pc e me peguei olhando pra trás, desconfiada! Legal. Um bjo.
Mansur!
"Tá combinado! Tá tudo combinado!! Quero ouvir vocêêêêêês!"
D+ essa hein, a peituda da sua adolescencia... Imaginei a India pois não conheço ela rsrsr vc está cada vez melhor rsrsr!!!
Excelente! :P
Postar um comentário