Aos que pensam na solidão como causa de suicídio e paranóias verão que, desta vez, ela foi conseqüência. Afinal, depois de passar a vida maltratando os seus, a velha finalmente goza de um lar solitário, onde pessoas povoam somente os porta-retratos. Aos poucos, filhos, netos e inquilinos se libertaram das chantagens emocionais e ranhetices da viúva e nunca mais olharam para trás. Se não fosse Horácio, seria certeiro afirmar que o único ser vivo da rua Jaqueira nº 77 era aquela senhora.
Horácio era uma arara comprada com status de papagaio que foi presenteada ainda filhote por um dos muitos cunhados que passaram ali. Tinha uma plumagem vermelha e velha, porém fosca e misturada com outras mais acinzentadas. Seu pescoço era pelado como de um abutre e mancava de uma pata um pouco menor que a outra. A velha, cujo único afeto foi batizá-lo com o possível nome de um filho homem que não veio, o mantinha preso no viveiro pequeno para sua estatura, alimentando-o burocraticamente com semente de girassol. Por vezes misturava outros grãos à ração, divertindo-se com os efeitos colaterais que estes provocavam.
Raros momentos de alegria de uma pessoa atormentada por suas culpas. Era comum encontrar a velha pelos cantos falando sozinha, se punindo com ofensas, muitas vezes se apertando como se travasse uma briga com ela própria.
Certo dia, lavando suas anáguas no tanque, vagava em pensamento sobre suas fugas propositais em pleno dias das mães, quando chegava somente à noite e encontrava as crianças chorando, cagadas e mortas de fome. Queria fazer vista ao marido, que não reconhecia seu trabalho doméstico. Neste mesmo momento de sadismo e culpa, a velha ouve em sua retaguarda uma voz grave, com leve sotaque mineiro, porém facilmente compreendida:
- Tô ligado.
Sem se virar, percebeu que Horácio a fitava, concentrado em seus movimentos. Fingiu não se abalar, estendeu a roupa e entrou na cozinha com o peito pesado, observando-o pela fresta da porta. Em 26 anos de convívio com a ave nunca havia ensinado nada à ela, e muito menos ouvido ela falar. Tinha inclusive falado mal do bicho "imprestável por natureza". Os dias se sucederam assim, freqüentemente a velha era surpreendida pela mesma frase de Horácio, sempre que revolvia seu baú de pensamentos.
Decidida a colocar um ponto final no assunto, a velha enfrentou o bicho e foi surpreendida mais uma vez. Alheio à possível ameaça da dona, Horácio a encarou nos olhos, colando o bico gasto na grade, com uma segurança que a idade lhe deu, fazendo seus olhos multicoloridos vibrarem, como de costume na espécie. A velha teve uma vontade irresistível de matá-lo, mas foi novamente advertida por Horácio.
- Tô ligado. - Disse mais uma vez.
As tempestades de março transformavam os céus naquela época. A viúva, que começou a fechar portas e janelas quando o tempo virava, não via mais motivo para abri-las. Escondeu-se dentro de casa, pois tinha a absoluta certeza de que o papagaio era vidente e enxergava seu pensamentos. Parou de dar comida fazia meses na esperança covarde dele morrer de inanição, mas o via comendo a própria unha do pé. Depois de um dia inteiro de perturbações e culpas, a velha dormia acabada no sofá quando Deus finalmente mostrou um pouco de sua misericórdia. Um dos raios do temporal acertou em cheio o viveiro de Horácio, transformando imediatamente tudo em pó. Mas era tarde demais.
Cada lembrança da velha era ilustrada pelo vôo silencioso de seu papagaio em volta da casa, prestando atenção no que ela pensava e fazia. Neste momento o ranger das portas, o uivo dos ventos, tudo parecia ser Horácio, que a observava no vulto da noite, entre a dobradiça da janela. Seu chacoalhar de asas podia ser ouvido até entre as trovoadas mais fortes e sua pata manca batia nas telhas de amianto junto com os pingos de chuva.
Febril, escondida entre colchas de retalho no escuro, a velha viúva tentava colocar em ordem os pensamentos mas faltava-lhe lucidez. Estava mesmo disposta a se livrar de onde Horácio pudesse estar. Começou pelas paredes, tentando derrubá-las com a marreta, porém conseguindo apenas fazer grandes rombos entre os cômodos. Com o espaço, o eco se propagou multiplicando os agouros. Foi aí que ela decidiu dar fim a tudo. Espalhou querosene nos colchões, guarda-roupas, jóias, tudo, e como numa enorme fogueira, viu sua casa crepitando, consumida pelas chamas.
O acontecido chamou a atenção de muita gente da vizinhança que , ao longe, acompanhava a desgraça alheia. Iluminada pelo fogarel, somente com a roupa do corpo, a velha foi tomada de um alívio inédito e não segurou a gargalhada, pois, no fundo, sentiu-se eternamente agradecida a Horácio. Se existia alguma maneira de recomeçar a vida, esta teria que nascer das cinzas.
Horácio era uma arara comprada com status de papagaio que foi presenteada ainda filhote por um dos muitos cunhados que passaram ali. Tinha uma plumagem vermelha e velha, porém fosca e misturada com outras mais acinzentadas. Seu pescoço era pelado como de um abutre e mancava de uma pata um pouco menor que a outra. A velha, cujo único afeto foi batizá-lo com o possível nome de um filho homem que não veio, o mantinha preso no viveiro pequeno para sua estatura, alimentando-o burocraticamente com semente de girassol. Por vezes misturava outros grãos à ração, divertindo-se com os efeitos colaterais que estes provocavam.
Raros momentos de alegria de uma pessoa atormentada por suas culpas. Era comum encontrar a velha pelos cantos falando sozinha, se punindo com ofensas, muitas vezes se apertando como se travasse uma briga com ela própria.
Certo dia, lavando suas anáguas no tanque, vagava em pensamento sobre suas fugas propositais em pleno dias das mães, quando chegava somente à noite e encontrava as crianças chorando, cagadas e mortas de fome. Queria fazer vista ao marido, que não reconhecia seu trabalho doméstico. Neste mesmo momento de sadismo e culpa, a velha ouve em sua retaguarda uma voz grave, com leve sotaque mineiro, porém facilmente compreendida:
- Tô ligado.
Sem se virar, percebeu que Horácio a fitava, concentrado em seus movimentos. Fingiu não se abalar, estendeu a roupa e entrou na cozinha com o peito pesado, observando-o pela fresta da porta. Em 26 anos de convívio com a ave nunca havia ensinado nada à ela, e muito menos ouvido ela falar. Tinha inclusive falado mal do bicho "imprestável por natureza". Os dias se sucederam assim, freqüentemente a velha era surpreendida pela mesma frase de Horácio, sempre que revolvia seu baú de pensamentos.
Decidida a colocar um ponto final no assunto, a velha enfrentou o bicho e foi surpreendida mais uma vez. Alheio à possível ameaça da dona, Horácio a encarou nos olhos, colando o bico gasto na grade, com uma segurança que a idade lhe deu, fazendo seus olhos multicoloridos vibrarem, como de costume na espécie. A velha teve uma vontade irresistível de matá-lo, mas foi novamente advertida por Horácio.
- Tô ligado. - Disse mais uma vez.
As tempestades de março transformavam os céus naquela época. A viúva, que começou a fechar portas e janelas quando o tempo virava, não via mais motivo para abri-las. Escondeu-se dentro de casa, pois tinha a absoluta certeza de que o papagaio era vidente e enxergava seu pensamentos. Parou de dar comida fazia meses na esperança covarde dele morrer de inanição, mas o via comendo a própria unha do pé. Depois de um dia inteiro de perturbações e culpas, a velha dormia acabada no sofá quando Deus finalmente mostrou um pouco de sua misericórdia. Um dos raios do temporal acertou em cheio o viveiro de Horácio, transformando imediatamente tudo em pó. Mas era tarde demais.
Cada lembrança da velha era ilustrada pelo vôo silencioso de seu papagaio em volta da casa, prestando atenção no que ela pensava e fazia. Neste momento o ranger das portas, o uivo dos ventos, tudo parecia ser Horácio, que a observava no vulto da noite, entre a dobradiça da janela. Seu chacoalhar de asas podia ser ouvido até entre as trovoadas mais fortes e sua pata manca batia nas telhas de amianto junto com os pingos de chuva.
Febril, escondida entre colchas de retalho no escuro, a velha viúva tentava colocar em ordem os pensamentos mas faltava-lhe lucidez. Estava mesmo disposta a se livrar de onde Horácio pudesse estar. Começou pelas paredes, tentando derrubá-las com a marreta, porém conseguindo apenas fazer grandes rombos entre os cômodos. Com o espaço, o eco se propagou multiplicando os agouros. Foi aí que ela decidiu dar fim a tudo. Espalhou querosene nos colchões, guarda-roupas, jóias, tudo, e como numa enorme fogueira, viu sua casa crepitando, consumida pelas chamas.
O acontecido chamou a atenção de muita gente da vizinhança que , ao longe, acompanhava a desgraça alheia. Iluminada pelo fogarel, somente com a roupa do corpo, a velha foi tomada de um alívio inédito e não segurou a gargalhada, pois, no fundo, sentiu-se eternamente agradecida a Horácio. Se existia alguma maneira de recomeçar a vida, esta teria que nascer das cinzas.
17 comentários:
Muito fooooooooooda!!
Estiloso!
Eu viajo nessas crônicas e riu abertamente como uma criança iludida por um ingênuo prazer.
Tenho a certeza de que vc não tem a idade que diz ter, pq lembrar de ranhetices,anáguas... Putz! Nem eu mais lembrava disso...
Agora, "comer a própria unha do pé" foi hilário. hahahahahaaha
Bj, lindo. Parabéns! Sou sua fã!
SENSACIONAL!!!!! Assim mesmo, com muitos pontos de exclamação, apesar de eu saber que vc odeia isso!
Seu poder de descrever tudo minuciosamente sem ser prolixo me impressiona!
Sou sua fã, nem preciso dizer, né?
Beijocas
Pára tudo. Quem é esse Aruanã? Com certeza não é o mesmo rapaz do velho West. Não que eu não goste daquele Aruanã, mas esse aqui, que revira o baú de uma velha como se tivesse estado lá, o tempo todo, é outro.
Para quem gosta de ler, um conto maduro, bem escrito, limpo e forte, Deus do céu como é forte.
Hoje foi você quem me surpreendeu.
Seja bem vindo, à minha coleção de contadores de história prediletos.
Bjos
P.s: Vc tomou aquele presente antes de escrever?
Aruanã:
Um belo texto você bos apresenta aqui. Uma narrativa rica e permeada de humanidade, de solidão e personalidade.
Gostei muito da forma em que constrói as personagens e como faz a conduta da leitura bater no compasso das emoções transmitidas.
Parabéns. Voltarei mais vezes.
Kinho Vaz (um amigo da sua amiga LIU)
Salve papaya...
Macabro mesmo hein.. fikei imaginando a gargalhada sarcástica da velha louca!
Mas eu ainda prefiro suas crônicas "românticas" hehehehehe
Bjus
:)
A metáfora do Horácio como a consciência (ou inconsciência) que a velha nunca ousou olhar de frente realmente nos remete, novamente, ao velho Poe e seu sinistro corvo. A solidão misturada ao sadismo realmente traz resultados nada agradáveis, sendo que o desfecho é perfeito pela imagem da reconstrução, ou redenção, já que o fogo tanto serve para iluminar ou destruir. Só faltou o Horácio dizer, como o velho corvo, ´never more´.
Aliás, recentemente saiu um livro chamado ´O menino americano´, de Andrew Taylor, que eu critiquei para O Globo e que é uma homenagem completa ao escritor e ao seu sinistro pássaro, inclusive incluindo dados biográficos de Poe durante sua infância na Inglaterra. Procure, que é muito bom.
Obs. Dá mais uma revisão. Há alguns errinhos de digitação.
Abraços.
Mto bom! Sinistro!
Muito bom, cara.
Tô ficando viciado no blog.
Abraço
FAN-TÁS-TI-CO!!
Mas pq andas tão sombrio, como vc mesmo disse?
Mas gosto desse humor negro...
Bj! Saudade!
Muito bom! Excelente texto, rico em detalhes. Mostrando as diversas facetas do versátil Aruanã. Tenho impressão de já ter lido este conto. Será um dos seus antigos, do tempo dos "Bicudos Que se Beijam"? Tô adorando o blog. Acho que semana que vem não vai nem precisar de lembrete no orkut! Abraços!
Aruba ta aê...
Merecia até um mascote do Horácio!
Parabéns pela riqueza de detalhes e por sua percepção aguçada para narrar pequenos detalhes da história, como: "fazendo seus olhos multicoloridos vibrarem, como de costume na espécie."
Parabéns, continue soltando sua vasta imaginação..
salve moço!!!
vc ta ficando cada vez melhor nisso heim....
show de bola aru!!!
bjuxxxxxxxxxxx
Muito bom. Parece que vc se inspirou numa ex-vizinha minha. Uma velha ranheta, solitária que anda de bengala, mora numa casinha cheia de tralhas amontoadas e como companheiro apenas um vira-latas mal cuidado. A figura dá até medo! È ela tenho certeza !!! Bjos.
Oiie,
Maravilhosos seus textos.
É otimo quando encontramos alguém que lê a vida de forma mais colorida, mais poética... Como você faz nesses textos. Sou amiga do Rafael Diez, ele que me indicou um texto seu, gostei tanto que vim conferir mais.
E pode acreditar que vou retornar sempre.
Parabéns!
Muito legal msm !! Nossa!!!!
vc é fera d++++
Por isso q vc é o meu professor predileto!!rs
Bjus e parabéns pela linda e iteligentíssima crônica!!!
Muito bom mesmo, quero ler o livro que você me indicou... gostei!
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