terça-feira, 22 de setembro de 2009

O DIA QUE MEU CORAÇÃO PAROU

Notei bem depois, quando assustado com o pesadelo não senti os batimentos. Só o silêncio sinistro na alma. Catei o pulso, o lado esquerdo do peito, nada. De tão resignado que estava voltei a dormir já sabendo ter morrido um pouquinho.

Contrário às expectativas, acordei normal, no terceiro toque do despertador. Sentia a respiração longa e pesada. Sem o tum-tum-tum por dentro, outros órgãos sobressaíam em seu funcionamento maquinado e ruidoso. Somos molhados por dentro e a cada saliva que escorre pra dentro o pâncreas, fígado, intestinos e companhia se mexem como o torcer de pano de chão. Mas as evidências não me convenciam até perceber a verdade sobre minha nova condição cadáver. Letreiros, automóveis e toalhas na janela. Parei de enxergar o vermelho e algumas outras cores, como lilás e abóbora, que só vemos enquanto temos alegria no ser. O céu também não contribuía tapado em nuvens cinzas franzindo suas sombrancelhas sobre a cidade. Minha pele estava rígida e fosca; a morte era uma realidade. Sem consegui tirar a roupa velha que durmo, nem escovar o dente, fui assim mesmo trabalhar.

Os emails se acumularam durante todo o dia e minha incapacidade de articular duas frases decentes foram mal vistas pela diretoria. Aleguei falta de circulação no cérebro. Bobagem. O business não tem coração. Fui convidado a me retirar enquanto outro já aguardava entrevista na sala de espera. Ganhei tempo para organizar meu próprio falecimento que deveria acontecer dois ou três dias depois. E assim aconteceu. Duro, com a boca aberta virada para o céu e os olhos arregalados, ouvia a grama do jardim do Palácio do Catete crescer enquanto recordava com paciência as últimas horas. Escolhi este lugar para morrer porque era por ali, entre os patos e crianças, que caminhava cantarolando a cada segunda feira que vinha pensando nela. Os dias eram frescos e iluminados e terminavam sempre com um bonito pôr do sol e uma ligação despretensiosa. Ela sabia me fazer rir e suas opiniões tão cheias de opiniões me deixavam mais vivo, seja por concordar ou por odiá-la por isso.

Daqui ha um tempo vão me descobri aqui, por enquanto o vigia somente me observa como um bêbado inválido entre tantos. E quando isso acontecer vão tentar encontrar culpados e chegarão até seu nome, sabendo que foi ela minha última companhia. Mas não estarei vivo para dizer que me suicidei. Ao querer a moça mais bonita sabia que estava provando do meu próprio veneno, outrora capaz de fazer muitas vítimas. Eu quis, mesmo assim. E o dia chegou: ela se foi, confusa entre suas inexperiências e avidez, porém soberana nas decisões. Me deixou um sorriso seguro de quem tem muito mais vida pela frente para acertar e errar. Suas malas já estavam prontas para pegar a próxima carona. Morrerei aqui, com meus medos e paranóias, sem agradecê-la pela paciência e noites que se tornaram manhãs, sem provocar o último orgasmo nem recontar as últimas piadas.

Não é a primeira vez que essa esquisitice acontece mas sempre me tornei adubo de mim mesmo, graças a capacidade de renascer de um cafuné ou mimo inesperado. Neste dia que marca o fim do inverno, temo não conseguir a proeza de voltar a ser gente. Temo ter morrido de vez.

4 comentários:

bia disse...

Nossa...Aru,quem parou foi eu,um pouco nostálgico,mais maravilhoso! Parabéns "menino"!

Camila disse...

Lindo...

Camila disse...

Já estava com saudades...lindíssimo!

Unknown disse...

Acerbabo...porém, enleio, sobressalto. "Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si,levam um pouco de nós..''tu conheces bem ?

Bjokas Chu...Sumptuoso, explêndido!
(Tbm estava com saudades!)