quarta-feira, 29 de julho de 2009

A VISTA

Despertei com olhos que não eram meus. Verdes e com olheiras. É muito estranho acordar com a sua cara sem os olhos. Ele tinha mais lágrimas que o meu, piscava lento e tive que lavá-lo várias vezes para estar limpo de verdade. Cheguei afobado no trabalho e ninguém notou. Meus colegas que almoçam comigo seguiam em sua normalidade e o motorista da condução também. Cheguei em casa para verificar com calma. Eram maiores e tinha cílios mais claros. Comparei as fotos, tirei novas, troquei de espelho. Nada. Novo dia e eu com dor de cabeça. Os olhos que ganhei eram sensíveis a luz e sofri com o sol na janela, por isso passei o dia de óculos. Abandonei o expediente e fui almoçar com minha mãe. Reclamou do dinheiro, do marido, da idade. E foi embora sem me dizer nada. Tive dúvida sobre minha lucidez. Liguei para meu amigo e fiquei com mais dúvida ainda. Veio sábado, veio domingo e decidi ir ao médico. O oftamologista disse que era raro acontecer mas a íris poderia mudar de cor. Não acreditei naquele babaca interessado nas comissões da indústria farmacêutica e saí sem pagar. Me tranquei em casa e meu cachorro me lambeu por compaixão. Para ele, só para ele, eu ainda era eu.

Logo notei que, junto com os novos olhos, também vieram as banalidades. Agora me despertavam atenção bromélias, estampas e diamantes. Pensei nos cegos, no glaucoma e chorei pela primeira vez. Sem perceber fui excluído do meu circulo de amigos e encontros de família. Vez em quando, um ligava. Eu havia desistido de contar esta história mas também não queria contar outra. Ficava mudo e desligavam. Foi nessa época que usei drogas sintéticas pela primeira vez. Pensava em enganar meus olhos ou a mim. Uma alucinação contra a outra. Via tudo azul, depois tudo verde, depois desbotava-se. Numa das viagens acordei todo molhado com um lápis na mão feito punhal. Ia enlouquecer. Decidi refazer meus passos do dia anterior.

“Oi, o senhor viu por aqui um par de olhos castanhos bem normais?”. Melhor não perguntar nada. Sentei no bar tentando lembrar. Mesma mesa, mesma cerveja, mesmo garçom. Veio na lembrança uma certa euforia, mas passou. O músico com teclado e seu som sintético tocava “Azul da cor do mar”. Será que havia relação?Segui a pista e fui andando pela calçada que costumava me equilibrar no paralelepípedo. Passei pelo escritório, pela livraria e pelo banco. Procurei minha vista nas esquinas, nos lixos, queria entender. Mas acabei esgotado com a minha própria incapacidade e fui para casa. Pensava que, ao procurar os olhos havia perdido também o amor próprio. No metrô senti alguém me olhar. Muito. Hesitei em saber quem era. Desci ali mesmo. Pela primeira vez neste quase trinta dias, aquele arrepio que antecede um olhar me afrontou. Segui até minha casa, passos apertados, olhando para todos os cantos pois sabia que, seja lá quem fosse, estaria perto. E o avistei se esgueirando entre os carros estacionados. Eu parava, ele abaixava. Na esquina eu corri. Faltavam dois quarteirões para chegar. Sentia muito medo. Seria uma alucinação?Seria eu mesmo me perseguindo? Não consegui abrir o portão porque nestas horas a luz da rua está sempre apagada ou a fechadura está dura demais. Ele se aproximou tanto que decidi virar de súbito. Estava a menos de 300 metros. Tinha um saco de papel na cabeça com dois furos para olhar. Não falou nada, mas estendeu a mão para mim. Calma, calma. Era uma criatura estranha, pequena, e só depois vi que suas roupas estavam velhas, com aspecto abandonado. Era uma mulher. Levantou sua máscara improvisada e entendi tudo. A conhecia muito bem. Morava ao lado e sempre a quis mas nunca tive coragem para falar. Saíamos para o trabalho no mesmo horário e eu sempre corria para estar em seu caminho. Dia após dia cruzávamos e nos desejávamos em silêncio. De tanta insistência acabamos trocando nossos olhares. Para sempre.

4 comentários:

Carol disse...

Não podia comenta ali, rapidinho, no msn. Eu precisava ler com calma, devagarzinho... :D

Lindo texto. Merece encenação, cinema, leitura em voz alta. Merece saltar do papel, ganhar vida. Uma pirueta, duas piruetas, BRAVO, BRAVO!

:D

bia disse...

Nossa ARU..D+!
Consegue,comover..as "pessoas",com suas historias,q fazem com q entramos,nelas como se fossemos,o próprio personagem!! amei! (De tanta insistência acabamos trocando nossos olhares.Para sempre.)Achei bonitinho rsrs!

Héllen Dutra disse...

Achei linda a metáfora dos olhares e que é também metonimia dos personagens. E a mistura de clima de suspense, quase policial(por causa da busca, da investigação do olhar perdido), com a docilidade do poético, do romântico. Lindo, bem escrito, prosaico sem simplismo...
Concordo com a Carol merece encenação: merece virar cena, virar ação...
Melhor conto que já li seu. Parabéns!

Trilogia dos Erros Inesperados disse...

Te ler só dá mais saudades!