Um cão sem dono fuxicava o lixo com o nariz. Macarrão com areia e arroz azedo grudavam em seu bigode duro. Não era fome, talvez tédio. O cão procura desafios pra seguir em frente. Antes de partir sente no quadril a pancada forte que vai direto nos ossos. O susto o faz recolher o rabo e saltar de banda, fugindo da vassoura teleguiada. “To cheio desta merda de lugar”. Certamente pensou.
Dali se via o infinito de cimento. Pistas, postes e fios sumindo no horizonte. Foi pra lá que o cão vadio andou. Sem parar, sem parar. Os centros urbanos, tumulto de gente pra lá e pra cá sempre o atraiu, seja pelas porcarias caídas no chão ou para ver a calcinha das senhoras que passeavam. Gostava das gordas peludas, mais velhas, que deixavam seus pentelhos vazando para fora dos elásticos. Lembrava de suas cadelas. Mas hoje não. Passou direto do calçadão e feira livre, pegou a estrada e viu a noite chegar, os faróis arregalarem seus olhos e a lua o desafiar. Uivou pra ouvir seu próprio eco. Só o silêncio. Algumas noites nem os ecos querem conversar.
Andar sem rumo só é terapia para quem não foge de si mesmo. Quando mais se afasta, mais está próximo de seus medos e da convivência insuportável de seus hábitos. Coçar a orelha com a pata de trás e lamber a caceta antes de dormir eram repetições involuntárias, irritantemente impossíveis de mudar. Naquele dia o cão andou entre os carros atrás de emoção mas o domingo de sol à pino trouxe motoristas idiotas para a rua, com suas crianças gritando sentimentos vazios atrás do vidro. Fugiu para não ser adotado. Enfim encontrou um banco de cimento onde um mendigo dormia exibindo uma bunda suja pelo rasgo da calça e ia acomodar-se ali se não fosse por uma cosquinha na barriga. Conhecia bem a fome e não era nada disso. Pareciam borboletas soltas dentro de suas tripas. Foi subitamente tomado pelo desejo e seus sentidos despertaram de uma letargia infinita. O Cão havia se apaixonado pelo frango assado da padaria.
Ele o via girar, em seu movimento harmonioso e gracioso. Mordia os beiços e imaginava orgasmos com dentes cravados em suas cartilagens cada hora mais moles. Queria passar a língua nas suas coxas abertas e maltratar suas asas curvando-as para trás. Imaginou planos, passeios pelo campo e constituir uma família. Ele e sua peça deliciosa, que dormiria do seu lado, sempre disponível para saciar angústias e perversões. Mas o cão não conhecia a personalidade desta nova fixação. Alguns frangos nascem para estar na vitrine e não para serem amados. Basta admirá-los. Se sentem importantes demais para satisfazer a um só. Querem voyeurs, dedos apontando para si e brigas pelo seu rebolar maquinado. O cão arriou suas patas, o corpo magro e permaneceu deitado, sem ligar para o vazamento da caixa de esgoto que umedecia o chão. Nem comia, nem cagava, nem dormia. Fez da rotação da máquina suada sua obsessão de vida. Mas quando um homem de braços roliços e relógio falsificado pegou seu frango molhado de gordura pelo espeto e o esquartejou entre amigos no balcão ele teve a certeza de que os vira latas são criaturas esquecidas por Deus. Lembrou com raiva da cara de satisfação do seu amado, entregue aos encantos da própria vaidade, arreganhado na mesa posta. Nada poderia fazer. Sabia que cedo ou tarde isso aconteceria. Era vitima e culpado de seu próprio sofrimento.
O caminhão de entregas até freiou mas os dias não teriam o mesmo gosto nem o mesmo cheiro depois daquele dia de cão.
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