quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A IMAGEM DE VÊNUS

por Héllen Dutra

O vento crispava na vidraça, Rebeca percorria o salão principal, não a olhar, mas a sentir o cair da chuva, martelando na calçada de cimento. O balé das árvores lá fora dava a ela a impressão de uma dança macabra, ritmada pelo assoviar agudo da tempestade. Toda paisagem era molhada, de uma umidade doce que trazia o cheiro de manacá, impregnando os póros de uma saudade, era mais melancolia de uma planta roxinha que enfeitava a fachada da casa de vovó. Como era linda aquela arvorezinha, quando florida, alegrava todo o jardim e fazia a festa dos primos que arrancavam uma a uma as flores para presentear as primas mais jovens. Já que primos não eram irmãos e podiam namorar. Isso era o que pensava a criançada, diferentemente dos adultos que sempre espreitando a brincadeira, preocupavam-se com os beijos escondidos atrás dos rotundos troncos. Sempre era possível rolar na grama ou abrigar-se à sombra das imensas árvores que cruzavam seus galhos no ar. Era bonito ver o apoiar de um galho no outro que roçando de vez em quando as folhas, confundiam-se como uma coisa só. Havia várias trilhas cortando o jardim, caminhos tortos, irregulares que sempre nos levavam a lugares iguais, mas ao mesmo tempo diferentes; caminhos que convidavam a deliciosa tarefa de perder-se e achar-se a qualquer hora do dia.
Ao ocasional toque no braço, Rebeca voltou a observar o quadro de Velázquez, aquela imagem de Vênus, a deusa do amor e da sensualidade, mirando-se no espelho quebrou em fragmentos eternos a memória da infância. Como o estridente barulho do despertador cessa a noite tranqüila de sono, a realidade intimou a volta. A imagem das curvas sinuosas, das costas alvas e brilhantes, das nádegas de uma perfeição algébrica da deusa grega, levaram Rebeca a querer tatear os becos íntimos de seu próprio corpo. Ao primeiro toque, suas mãos não ousaram prosseguir, a sobressalência do rosto enrugado era desanimadora. Com a língua provou, nas comissuras dos lábios, o amargo do passar do tempo. Continuou a caminhar e se deparou com um espelho imenso que parecia multiplicar em mil vezes sua imagem. Agora, não mais a Afrodite, mas apenas ela, Rebeca, a olhar-se no espelho. Olhou, olhou, olhou de novo. Em que milímetro de seu corpo estaria aquela menina solta, alegre da vida? Aquela moça rendida a amores? Não achava vestígio algum, nem de longe. Seu olhar percorreu o cabelo acaju, as maçãs do rosto, se reteve um pouco mais no pescoço e escorregou até a banal silhueta criada pela blusa social preta e a saia jeans. Parecia outra ou era outra? Aquela imagem a repugnava. Como uma estranha, pegou o casaco, o guarda-chuva, olhou-se uma vez mais e caminhou resignada em direção à saída. Fora da galeria, seguiu reto, dobrou a esquerda, parou em frente ao sinal de trânsito e esperou o vermelho virar verde. Lembrou ainda que não tinha descongelado o frango e, por isso, o jantar daria mais trabalho para ser preparado. Talvez fosse melhor ir ao mercado, comprar algo pronto, um enlatado qualquer, ou poderia fazer um lanche. Para que jantar? Queria mesmo era ficar ali a vagar pela rua, observando os pingos de chuva a tilintarem no asfalto.
Não agüentava mais aquele insuportável cheiro azedo de mofo que emanava de tudo em sua casa. Os móveis, testemunhas do tempo, descascavam como pele estriada de cascavel. O ranger do assoalho em ruínas denunciava cada passo que ousasse interromper o silêncio mórbido. Desde a janela impregnada de gordura humana até as teias de aranha que decoravam as paredes pardas, tudo ali lembrava abandono. O marido, mais um acessório da mobília, confundia-se com os bibelôs da estante na impassividade e na cafonice. Não se sabe se por asco ou, apenas, por impotência exitava em tocá-la. Seu corpo magro, enrugado e fedorento de mulher passada do prazo de validade, há muito não recebia o bom quente do calor de nenhum outro. Não se incomodava com isso, não precisar assistir ao espetáculo de sua flacidez generalizada era mais um prêmio do que um fardo.
Mesmo ao verdear do semáforo, Rebeca permanecia estática, inebriada pelo tom limão florescente que criava uma iluminação toda diferente nas poças de água, quando foi surpreendida por um gelado na nuca e um sussurro no ouvido. Segue sem olhar pra trás, foi a ordem que ela imediatamente atendeu. O coração aos pulos, quase arrebentava as veias que recebiam o forte bombear de sangue nervoso, a respiração ofegante fazia os seios arquearem pra cima e pra baixo na blusa molhada, num ritmo quase latino. Seguiu por uma viela e foi atirada contra uma parede pichada, num beco escuro que ela nem sabia que existia naquela cidade. Uma mão com violência arrebentou todos os botões de sua blusa, mostrando o velho sutiã bege. Com uma voracidade de animal no cio, sentiu o sugar no bico do peito que começava a irrijecer-se não mais pelo frio, do que pelo toque da língua molhada e quente que subia e descia numa fricção louca. Fez tenção de gritar, tentar correr, pedir ajuda, mas um puxão de cabelo e um soco a fizeram calar.
Caída no chão, arrastou-se o que pôde, mas a força do outro a impedia de qualquer fuga. Molhada, sentiu o entrar violento que fendia sua carne, a principio relutante, mas que, ao contato abrasador da pele do outro, relaxou desejosa. Num preenchimento quase que total, sentiu agulhas picarem todos os espaços de seu corpo, criando uma dormência que paralisava a alma. Foi envolvida por um cheiro acre de cachaça misturada com perfume barato e suor operário – cheiro de macho. Abriu os olhos e contemplou a barba por fazer e a achou bonita tanto quanto à cicatriz do braço direito. A cada arremetida, sentia o abrir de seu corpo exatamente na mesma proporção da ferida em seu ventre, que rasgado pelo canivete, fazia jorrar um sangue grosso, fervente, vermelho-negro que pintava sensualmente suas coxas. O cheiro de manacá a embriagou, quase como um ópio, ficou de novo menina, deitada na relva fresca do jardim de vovó, olhando a infinitude azul do céu. Na última investida do membro, que coincidiu com a facada fatal, foi toda ela banhada por um líquido viscoso que encharcava da cintura para baixo. Experimentou o vazio da saída. Ainda teve tempo para encurvar um pouco a cabeça para o lado na tentativa de gravar na memória a última imagem daquele homem, deparou-se, no entanto, com seu reflexo na poça d’água, como um espelho, fixou o olhar já turvado e confuso pela perda de sangue e pode ainda ver a imagem de Vênus.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O SÓTÃO DE NINA

Nina nunca teve gato, nem cachorro nem peixinho. Mas teve marido, que considerava seu melhor companheiro até que o descobriu chumbado ao corpo de outra, numa cama suja qualquer, surpreendido no meio do papai-mamãe, cujo rosto da dona ninguém jamais voltou a ver, tamanho foi o estrago feito pelas balas do revólver de seu amante ciumento. Para Nina, sobraram além da notícia impressa no jornal popular e uma pensão micha de cabo do exército reformado, o arrependimento de não ter filhos com ele, e agora, em seus quase cinqüenta, com mais ninguém.

É muito difícil para a mulher que entrega seu destino na mão de um homem, reencontrá-lo novamente no meio dos escombros de um falecimento. A casa e rotina construída por ele eram as únicas coisas que Nina tinha e tratou de preservá-las. Repetia a arrumação das roupas, as marcas de shampoo e os horários de evacuar, como se pudesse guardar dentro da caixa de sapato o eco de suas ordens. Durante três anos, oito meses e dois dias foi assim, até que Deus resolveu mostrar para Nina que somente Ele podia controlar o tempo e as coisas e mandou a natureza fazer-lhe uma visita.

Deitada sob a manta azul quadriculada, de olhos arregalados mirando o lustre do quarto que pendia do teto como um brinco gigante no meio do breu, a senhora sentia o pulsar do seu sangue cutucar-lhe os tímpanos, tamanho foi o susto quando ouviu barulhos no telhado. Sua primeira impressão foram passos de um ladrão estabanado, mas a intermitência do ruído e o agudo estridente não deixavam dúvida: tinha uma ratazana no sótão.

Nina sempre foi pobre, mas como única filha de uma leva de rapazes, recebeu tratamento de condessa, naquela época resumido a um pouco mais que presentes só para ela e um quarto com detalhes rosas e bonecas de olhos de botão. Nunca fora educada a ter atitude, pelo contrário, sua mãe cansava de repetir-lhe que a mulher na sociedade nunca deveria destacar-se mais que o homem. Por isso, aquela mulher solitária, prostrada em uma cama de ferro, com olhos arregalados como dois camafeus, simplesmente ignorou as evidências do bicho asqueroso no telhado, assim como fez com o batom no colarinho e o cheiro de conhaque barato no ronco do seu marido. Desta vez, porém, não havia amantes ciumentos em seu sótão e a ratazana parecia cada vez mais à vontade em sua nova casa. Sapateava com as unhas afiadas pelo forro de madeira a ponto de vazar-lhe poeira pelas juntas, que desciam do teto como a areia escoa pelas ampulhetas, sujando os bibelôs da cama. Também arrastava seus alimentos encarniçados durante o dia lá pra cima, tornando as madrugadas de calor pestilentas em qualquer cômodo.

Assim como os calouros que moram nas repúblicas precisam se ajeitar às novas regras de convívio, Nina foi abrindo mão dos prazeres que tinha perante a ameaça indestrutível no telhado. Sem seus hábitos, último dos quesitos que lhe davam uma certa individualidade, a moça anulou-se completamente, pois, se existia algo mais impenetrável que a rotina conservada após a viuvez, era seu papel de vítima indefesa praticado por toda a vida, com voz fraquinha, cor pálida e sorriso sem firmeza em qualquer fotografia. As orações, as 12 horas bem dormidas e a esperança diária de sonhar com as mãos quentes do seu homem entre o ventre a coberta foram substituídas por calmantes, antes cortados com a faca, agora mastigados como chicletes. A limpeza da casa, indiferente frente ao futum que o bicho deixava, foi substituída pelo spray desodorizador de ambientes tornando o ar tão grosso que era difícil entrar pelas narinas. O sol também foi expulso da casa, graças ao papel pardo colado nos vidros que impediam o despertar prematuro do sono quando este finalmente chegava. Nina não dormia mais no quarto, mas em qualquer lugar que pudesse recostar. A falta de pudor, que temos mais pelos outros do que por nós mesmos, fazia da moça um maltrapilho vestido apenas com pijamas velhos todo o tempo, jantando e almoçando enlatados que nem percebia estar fora da validade, por estes não exprimirem nem cheiro nem gosto.

A maior repugnância que poderia existir naquela casa de fundos tão igual a qualquer outra casa de fundos em qualquer bairro de qualquer periferia do mundo, não morava no sótão da casa de Nina, mas sim dentro de algum cômodo escuro de sua consciência, pois, durante toda a existência, não percebeu os andares de sua personalidade, a bipolaridade de seus sentimentos. Ao mesmo tempo que sentia um ódio colérico pelo animal, por atrapalhar seus dias iguais, cagando e roendo seu vestido de noiva e outra lembranças que entocou no local, sentia gratidão por ele, a quem pôde novamente entregar as rédeas de sua vida.

Nina despediu-se do mundo no dia do 5o aniversário de falecimento de seu marido, dando a ela o falso status de mulher que morreu por amar demais. Indiferente, a ratazana teve filhotes e seguiu seu rumo, instintivamente.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

MICROONDAS, TALVEZ NÃO

Por Héllen Dutra

Só se passaram 91 dias do meu último adeus. Marcado por lágrimas, soluços e súplicas que não foram suficientes para reter, a areia a escorrer pelos meus dedos, o homem que, há mais ou menos nove anos, eu escolhera como o parceiro da minha vida. Desde então o que faço é me adaptar. Me adaptar a morar sozinha, me adaptar a fazer compras, equilibrar contas, cozinhar para uma pessoa só, escutar o silêncio da noite que não passa,do fim de semana que não se agita, da televisão monótona na sala, dos latidos estridentes e reconfortantes dos meus cães que denunciam haver vida além da minha, me adaptar ao telefone que não toca, ao barulho do rato no forro da casa, me adaptar a torneira que pinga e cadencia o escorrer das minhas horas vazias, me adaptar a estar sozinha com os meus dias, sozinha comigo.
Aprender a me conhecer tem sido um desafio diário: dormir até a hora quero, lavar a louça, se der vontade, sair sem hora pra chegar, não dar satisfações, dançar na Lapa até cair ou sair para beber em plena segunda-feira. Nesse mar de coisas novas a que eu preciso me adaptar, está o fantástico mundo dos solteiros. Trocar um olhar, trocar um beijo, pode virar telefonema no dia seguinte ou apenas sexo na mesma noite. De uma forma ou de outra, vai ser difícil mais do que isso. Me pergunto: por que essas pessoas têm tanto medo de se relacionar de verdade? Conhecer o outro mais do que no superficial, se permitir embrenhar no labiríntico ser que cada um de nós se constitui, se decepcionar sim, por que não? Faz parte do que chamamos de vida. Conhecer a si mesmo é um processo que necessita da presença do outro, pois é no intermédio entre o que sou e o que o outro é, que nos encontramos.
Os homens com quem eu tenho cruzado ou que têm cruzado o meu caminho, nesta minha solteirice, parecem sair de uma escola, cuja cartilha prega que o prazer está na novidade e não na intimidade. Intimidade requer a paciência de conhecer o outro. O maior número possível de parceiros vai trazer experiências fugazes. Experiência vem de experimentar e experimentar várias coisas pode ser menos instrutivo do que experimentar a mesma coisa, buscando diferentes ângulos de apreciação. Me parece, e isso serve para homens e mulheres, que a única coisa que se quer dos relacionamentos são os bônus, o que mostra uma extrema imaturidade de nossa geração, já que todos sabemos que os ônus são intrínsecos aos bônus, inclusive na materialidade física das duas palavras. Eu, na minha ainda cabeça de mulher recém-divorciada, custo a entender como a aquisição de experiência se funda na quantidade e não na qualidade. Experiência que eu chamo de líquida, volátil, pouco aproveitável.
Como curiosa investigadora dos comportamentos afetivos na pós-modernidade, com base numa filosofia, discutida geralmente em botecos às tantas da madrugada de sábado com bastante cevada nos neurônios, percebo uma diferença natural entre homens e mulheres. Nós não temos medo de nos apaixonar, aliás, acho que a progesterona causa amolecimento agudo do miocárdio. Se gostamos do carinha, esperamos o telefonema no dia seguinte, repassamos mentalmente os detalhes do último encontro, não exitamos em pensar nele quando toca uma música romântica; se temos programa para o fim de semana, queremos convidá-lo e convidamos (ou tentamos se o telefone não der desligado ou se ele simplesmente não atender porque é fim de semana). Mandamos mensagens carentes em manhãs de chuva ou excitantes em noites de luar. Para ficarmos assim totalmente apaixonadas não precisa de muito tempo, uma semana, às vezes, é suficiente. Isso porque não somos apenas ansiosas, temos a urgência da paixão. Até corremos o risco de sofrermos mais, porém este é o preço que se paga por ter um útero. Ou acham que não faz diferença na vida de um ser humano o poder de gerar um outro ser nas entranhas. Somos naturalmente intensas. Sabemos, porque trazemos na veia o antigo ofício de cozinhar de nossas ancestrais avós, que é preciso, para apurar o sabor dos alimentos, cozinhar em fogo brando, porém nunca deixando de mexer. Mexer é fundamental, provar também. Toda cozinheira sabe que nada melhor do que aguardar ansiosa o prato ficar pronto.
Ter vários encontros numa mesma semana pode ser legal. Até quando? O namoro acontece naturalmente? Sim, mas eu não conheço rosa que brote em jardim algum (mesmo com a melhor terra) sem que primeiro seja plantada uma sementinha e que se regue todos os dias. Para que se descubra namorando, é necessário um mínimo de investimento, senão o que se tem são relacionamentos de finais de semana, que deixam um vazio na segunda-feira. Com medo de monótonos domingos de casado, tem-se apostado em monótonos sábados de solteiro.
Meu bom de verdade, e não tenho medo de assumir, é dvd rolando, pipoca estourando e intimidade no edredom. É ligar com saudade, abandonar o orgulho e pedir desculpas, passar a noite em claro ensaiando um sermão ou passar o dia refletindo sobre a ultima bronca. Transar no elevador ou no carro também é legal, mas é a paixão, e não a aventura, que garante o prazer.
Se passaram 91 dias que eu perdi o último amor, mesmo com o coração sangrando ainda e com uma marca indissolúvel que só um grande amor deixa na alma, não abro mão de sentir o friozinho na barriga, de ficar ansiosa por um telefonema, de comprar um vestido decotado e uma lingerie preta para o próximo encontro. Não abdico do prazer de me apaixonar sempre.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

MULHER MICROONDAS

Já se passaram 365 dias depois daquele fatídico adeus. O último namoro foi embora e levou com ele qualquer vontade de recomeçar tudo de novo. Se a ressaca de bebedeira fosse tão marcante quanto o fim de um relacionamento, não existiria o A.A. Terminar uma relação, abandonar uma mulher com olhos afogados e o coração no final da efervescência, sem ao menos poder confortá-la, fica no sangue, dói na alma para o resto da vida.

Ser dono da minha própria órbita foi a grande lição. Abusar da falta de planejamento e sair e chegar sem rumo, sabendo que o único comprometimento que tenho é comigo mesmo, foi o primeiro passo para me conhecer. Como uma adolescente que apalpa seu corpo na procura de novas sensações, palmo-a-palmo me deparei com as debilidades e exclusividades que carrego, mapeando quem realmente sou e não apenas quem eu achava que era. O romântico inveterado, que expunha seus sentimentos no varal da janela, cedeu lugar para becos úmidos e mal iluminados onde nem todo mundo tem coragem de entrar.

Se o amor agora se disfarça com capa-preta e se mostra tão difícil de acertar quanto cesta de três pontos, a lucidez escancara os prós e contras de cada relacionamento. Assim como o flash da máquina fotográfica revela as rugas e acnes, a racionalidade deixa tudo tão sem graça quanto os muros das fábricas.

Neste último movimento de translação da terra, muitas foram as tentativas, porém as poucas que valiam a pena esbarraram na natureza cronológica das mulheres. Penso que as moças da minha idade, em sua maioria, possuem uma pressa de não sei o quê, como o coelho do país das maravilhas. Na idade da afirmação, onde o trem de pouso começa a fazer menção a subir, o mundo feminino se vê de frente ao desafio de equilibrar suas prioridades na ilusão de deixar para a próxima década de sua vida tudo tão arrumado quanto armário de militar.

Entre o tempo do casamento com seu espreguiçar lento de domingo de manhã e o tempo da adolescência, tão cítrico e contrastante com suas emoções, a geração pré-balzaquiana erra a medida dos seus ternos, a fermentação de seus vinhos e transforma a procura pela pessoa certa em um jogo cronometrado de programa de auditório. Mesmo vislumbrando um horizonte infinito de novas mentalidades, estas deveriam aprender com suas avós, no antigo ofício do simples cozinhar, o procedimento necessário para reencontrar o amor. Já fui congelado por elas. Já fui engolido por elas. Já fui raspado do prato por elas, que se alimentam das minhas intenções em pé no balcão. Será que não existirá mais ninguém capaz de perceber que as pessoas são como bacalhaus e quanto mais relacionamentos frustrados viveram, mais se preservam chafurdando os sentimentos no sal?

A cada fim de relacionamento destes, me sinto recém-saído do microondas, que deixa tudo torrado por fora e cru por dentro. Prometi a mim mesmo que nunca mais ensinaria a lição básica que deveria vir ilustrada nos cadernos do primeiro grau. Namoro não é uma esmola, é uma conquista. Não se pede ninguém em namoro, simplesmente descobre-se já namorando. Diferente da época que eu acendia um novo amor no outro, hoje vejo que relacionamento não é um título na bolsa de valores e sim uma experiência acumulada.

Este tempo de amolecimento, de cozimento em banho-maria, é tão necessário quanto o girar completo que o boxeador faz para estudar seu adversário, afinal é ali, no travesseiro ao lado, que você pretende ancorar sua nau, descer seus mantimentos e explorar as regiões mais íntimas do seu companheiro, e nesta eterna procura pela ilha certa, a ansiedade crispa o mar, chacoalha as velas e afasta as esperanças do cais.

Enquanto este alguém não toca a campainha, não cruza as avenidas dos meus olhos nem tropeça nas sinuosidades das minhas palavras eu fico aqui, como uma estação de metrô das grandes cidades, que ora existe deserta, ora não consegue comportar tudo em seus vagões que nunca esperam.