quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

FÉ DE ANINHA

Com 32 anos, valia a pena apelar, acreditar, despachar, rezar, orar, ou seja lá o que for preciso para ser mãe. Foi um ano cumprindo rituais, visitando cartomantes, participando de correntes positivas e mais um final de ano frustrante chegou sem notícias boas para Aninha. Tadinha. Vivia só num sobrado e apesar de saber que seu sobrenome Souza nunca sumiria da terra, queria perpetuar o da família. Mas nunca pensou que era tão difícil ser comida, abusada, bagunçada por um cara legal. Queria apenas que fosse alguém digno para seu futuro pimpolho se orgulhar, alguém fotogênico suficiente para ficar num porta-retrato em cima da estante. “Com A?... Aviador, Astronauta. B? pode ser bicheiro mesmo. C? Caixa de banco, corista, carteiro, cozinheiro, corredor, cigano, caralho, o que não falta é homem...”. Investiu o esperado décimo terceiro salário na sua fé em bibelôs e presentinhos coloridos que valorizavam sua esperança, também pôs em jogo a aliança de ouro da falecida avó, a peça mais valiosa do seu tesouro de chapeados; desta vez Yemanjá não teria desculpas. Também deu um jeito no cabelo, catucou as cutículas, foi ao ginecologista - que era casado - e verificou seu problema de inflamação, um corrimento natural. Tudo OK.
Quando os primeiros filetes de rojão romperam no céu, Aninha pulou sete ondinhas, comeu lentilha, pitou cachimbo, jogou sal pra trás, rezou para São Judas Tadeu, Maria desatadora dos Nós e Santo Antônio, ofereceu flores, molhou a testa, energizou o Karma, escreveu na areia, tocou sininho, bebeu champagne, , só faltava a embarcação para Yemanjá. Era tão grande e enfeitada que seus espelhos e perfumes da Avon refletiam a metros de distância como um globo de discoteca. Nem havia molhado seu casco por completo quando a primeira onda já arremessou a oferenda de volta. Ajeitou com carinho as alegorias e teve que molhar o joelho para dar partida ao Cruzeiro da esperança. Mas ele voltou. Recolhidos seus trintetantos itens, foi novamente posto em serviço. Aninha se virou sem dar uma olhadinha, mas o menino a alertou “Tia, posso ficar com esse seu brinquedo?” Tomou coragem, encarou a maré até a cintura e teria conseguido se não fosse a onda recheada de palmas que ela jura até hoje ter pedacinhos agarrados na garganta. Andou com seu ebó procurando um lugar mais calmo quando enfim alguém apontou a alma caridosa que levava os agrados até a escuridão do mar. Entrou na fila e viu satisfeita quando seu presente caprichado se esvaiu no horizonte. Que alma caridosa. Que homem bom. Opa! Aninha se viu vermelhinha quando o mar descobriu os cabelos loiros do moço e seus olhos verdes apontavam para ela.

(...”É ele. Meu deus, igualzinho eu pensava. Que cabeleira linda. Deve ser turista pagando promessa. Imagina meu filho, todo ano indo passar férias com o pai na Europa, falando igual gringo ...”)

Ele vinha submergindo devagar, em passos pequenos e sorriso contido. Gritou ainda longe algo como “o próximo” e no instante seguinte, se benzeu. Estava de blusa azul bem clara, agora transparente pela água.

(...Que nada, brasileiríssimo e temente a Deus. Quem sabe já esbarramos na Catedral de Aparecida? Olha que sorriso bonito, gente, deve ser dentista. Vai dar para consertar o pivô de graça e tudo.”)

Pouco mais perto, já dava para notar a ausência do molar e de qualquer postura profissional . Mas mostrou-se disposto, com o corpo riscado por músculos bem feitos.

( Descobri! Ele é militar! Obrigado Yemanjá, não precisava ser tão gostoso. Paraquedista, piloto, marinheiro, macho... Sempre sonhei passar a farda do meu filho).

Ele vinha na direção de Aninha, que fez uma moldurinha improvisada com a mão para imaginar como ficaria bonito lá na sala. Pediu um trago do cigarro do amigo, baforejou para o alto contra os últimos fogos que refletiram seu bigode bem aparado.

(Deve ser caminhoneiro. Tá no jeitão dele. Vai chegar meu filho pela porta e eu aflita, depois de esperar meses, vou preparar aquele almoço... Olha a tatuagem dele. Pode ser também que seja motoqueiro. Essa é boa. Jaquetão e pé na estrada).

Estava bem perto agora, a menos de 5 metros, com medalhão no pescoço e pulseira. Ele vinha falar com ela.

(Ai, meu Deus, tô nervosa. Que ele seja pelo menos um polícial direito ou um pagodeiro em ascensão...)

- Ficou satisfeita, Dona?
- Ainda não... desculpe. Fiquei, obrigada.
- O que você pediu no despacho?
- Um filho.
- Isso a gente resolve né? Brincadeira. Não quis faltar o respeito. Mas quando quiser alguma coisa, eu tô por aqui.
- Como eu te acho?
- Fácil. Sou o catador de latinha oficial da praia, com colete e tudo.
- É,... Muito honrado né?. Hoje está de folga?
- Não, tô de freelancer. Sou uma espécie de tesoureiro de Yemanjá...

Ainda na condução, triste por ver mais uma conquista naufragar, lembrou do seu cheiro, do corpo, dos olhos verdes e aquele último sorriso de lado antes de pular novamente na água. Certamente da próxima vez que o visse, estaria ainda mais bonito, com um pivô de ouro no lugar da janelinha, no quilate exato da aliança da avozinha de aninha.

2 comentários:

Unknown disse...

Pois é, o problema das pessoas às vezes é escolher demais rsrs. Bjs

Anônimo disse...

Adorei!! Começando o ano, a maior correria, mas sabendo que posso contar com seus textos para momentos de relax na loucura do trabalho. Bjão, Aruca. Clarissa