quinta-feira, 1 de novembro de 2007

BICUDOS QUE SE BEIJAM

Quando ele disse que não tinham nada a ver, ela chorou porque sabia disso. O signo, os gostos, os valores, com o tempo tudo foi ficando diferente. A única coisa em que combinavam naquela terça-feira de carnaval, era a fantasia de cupido com asas, túnicas e flechas, que ela até desejou que fossem verdadeiras, para que o atingisse sumindo na multidão. Mas era tarde demais para agir, e lá foi ele abraçado à amigos e garrafas. Presa fácil para a diaba que cobrava pedágio de quem passasse. Deu um beijo sarrado nela, que saiu consertando o batom e recontando o vigésimo do dia. Ainda zonza, esbarrou no garçom negão estreante no carnaval depois de anos de celibato. Faziam poucos dias que havia abandonado a vida de seminarista, o que não tirou sua habilidade de tê-las de bandeja. Na verdade, quando encarou o desejo de chifre e rabo, nem teve tempo para se benzer, gostou tanto que ainda terminando a bitoca já avistou a segunda freguesa. Não tardou para ir atrás da enfermeira de shortinho que passeava com suas amigas. A estrutura frágil, de menina rica e protegida, pôde sentir pela primeira vez o tal sangue quente dos negros. Sua brancura imaculada foi explorada como nunca, e o sexo se tornou questão de tempo - mas não com ele. Girou entre os blocos, escolheu o mais bonito dos índios que desfilavam na rua principal e, os últimos minutos da virgindade ficaram na sua cabeça por muito tempo, assim como os grãos de areia embolados entre os cabelos. Não estranhou quando o índio galã saiu para mijar e não voltou pois sabia que ele procuraria outras com mais experiência. Na verdade, sexo fazia parte da sua rotina de gigolô e, aquele dia era o único que não cobrava. O ritmo de trabalho viciou o homem e, mesmo somando carícias, beijos e chupões ainda faltava caçar alguém. O índio a achou quando foi comprar cachaça no quiosque, bêbada, atrás do balcão. A galega, mulher do português, afogava sua frustração de estar trabalhando enquanto o marido se perdia por aí e nem percebeu que era uma desculpa, daquele Deus Tupã, a reclamação sobre a porta do banheiro. Foi empurrada para dentro, derrubando o cesto de papel higiênico e sua postura de mulher casada. Deixou ser explorada até o ponto certo que garantiria a volta dele por muitas vezes. Enquanto isso, foi saciando seus pequenos desejos e, ali mesmo, dez minutos depois, na frente dos clientes, a lusitana agarrou o cabeludo vestido de Tarzan e, com direito a pegadinha no cipó e tudo, o descartou em seguida. Mal sabia o quanto era carente aquele homem, retirado em casa quase todo o ano, vivendo sem qualquer vício urbano, aliás tinha apenas um, o Flamengo era sua maior alegria, tanto que havia andado atrás das jogadoras ninfetas por toda noite. A única a lhe dar bola era a baixinha botafoguense que o surpreendeu na primeira oportunidade, com delicadeza e inteligência. Logo, o escudo rubro negro tatuado no seu peito, beijou a estrela solitária do uniforme, quando se abraçaram pela primeira vez. Namoraram anos, se casaram e o Tarzan Flamenguista, até hoje não sabe que nos únicos segundos em que esteve distante do amor da sua vida para comprar cachorro quente, alguém lhe roubou um beijo, alguém com três vezes mais altura e nem a metade da sua paixão. Um Sujeito magricelo, que combinava com a fantasia de morte, tinha dedos de juntas grossas e carinhos rápidos que deixaram a menina imóvel. Sumiu pela sombra do trio elétrico todo bobo, pois nunca, nos seus 15 anos, havia beijado alguém. A cara maquiada ajudou a disfarçar o excesso de espinha, preencher a falta de barba e esconder seus olhos curiosos e infantis. Mesmo tomando bronca da mãe por ultrapassar o horário marcado, tinha prometido pra ele mesmo que tudo seria diferente do ano passado, quando era muitos centímetros menor. Tomou o caminho de casa pensativo, contando pra si as aventuras e só foi interrompido pelo próprio coração, ao ver os olhinhos molhados de um anjo. Com palavras sinceras a acolheu e recebeu um beijo lento e sôfrego de recompensa. Se distanciou encantado pelo momento, enxotado por ela que queria ficar só. Por mais que tentasse esconder, ainda era uma mulher apaixonada e, só ele a faria feliz, com suas asas desencaixadas e auréola de arame. Enquanto beijava a morte, pensou nele, e jurou ter sentido o gosto da sua boca. Tarde demais para lembranças, já tinha se convencido que a diferença era grande e que os opostos nunca se atraem.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Fiquei pensando antes de escrever este breve comentário: como ninguém escreveu nada para esta belíssima crônica? Creio que os adereços de carnaval e os desejos que se entrecruzam no texto, deixaram os leitores de pernas bambas e sem coragem para exercitar os dedos - digitando.
Aruanã Bento, com seus Bicudos, traça uma escritura inteligente e saborosamente instigante. Onde estão as pessoas que não se manifestaram?