O Charanga sempre foi um lugar de vadios. Toda gente sem muito escrúpulo zanza por ali. Boteco pestilento, onde as ratazanas espantam os cachorros e o azulejo acumula gordura no rejunte, já foi teto de golpes militares seguido de desaparecimentos misteriosos, e hoje sobrevive do patrocínio dos bicheiros que montam seu ponto de distribuição ali.
Nesta noite, o calor impetuoso de janeiro espantou todos os moradores de casa, lotando o Charanga de maltrapilhos em busca de alguma alegria. Entre músicas de videokê e o tilintar dos caça-níqueis, a mesa barulhenta de uns tantos moços chamava atenção. Pelos gestos, falavam de mulher, pelos palavrões, eram amigos de infância. Nem precisava esticar o pescoço quem quisesse se interar do assunto, porém, do nada, fez-se silêncio. Ninguém cantou, ninguém jogou, ninguém bebeu um gole. O Charanga inteiro reverenciou mudo a entrada da Virgem. Em gestos simples, olhando para baixo, ela entrou, comprou uma coca-cola com moedinhas e partiu, rapidamente. Deixou em seu rastro um perfume fresco, que parecia exalado das flores de seu vestido de pano azul. O estouro da boiada foi inevitável e todos, sem exceção, falavam dela. Filha de fazendeiro, moça prometida de barão assassinado, freira deposta, a cada visita dela a especulação aumentava.
Da mesma mesa barulhenta alguém falou em aposta, a língua oficial dos vagabundos, e casados uns tantos montinhos de 10 pratas, levava o bolão quem deitasse com a pequena. Regras: não valia força bruta nem arma, tinha que ter lábia.
A malandragem se coçou para conquistar a moça. Só de rosas, diziam as vizinhas desocupadas, enchiam dois caminhões, assim como bombons, fabricados nos lugares mais diferentes do mundo. Chegavam também vinhos, cestas de café da manhã, bichos de pelúcia, perfumes importados e até um disco do Julio Iglesias. Tudo amontoado na calçada; a virgem fazia questão de mostrar indiferença a tantos gracejos.
Depois de perder mais uma milhar apostando no número da placa que sonhou, Gato leu o cartaz feito a mão, sob a banca do jogo do bicho, sobre a aposta da tal virgem. Essa era mole. Seu apelido, não por acaso, se dava por sua manha com as mulheres e sua falta de escrúpulo com os homens. Vivia enroscado na esposa dos outros e diziam que, uma vez escapou de fuzilamento com mais de 30 tiros.
O Charanga foi um dos pioneiros dos empreendimentos 24 horas e se orgulhava em arriar suas portas uma vez por ano, apenas na procissão de santo Antônio. Dois meses depois, quando o andor apontou no final da rua, trazendo a imagem centenária do santo homem, meia porta foi arriada e todos os pecadores foram para o lado de fora, mostrar seu respeito. Um tal de se benzer da direita pra esquerda, beijar medalhinha de São Jorge, rezar pai-nosso, demonstrava a devoção, ainda que breve, dos freqüentadores do boteco.
Logo a multidão tomou conta das calçadas e as folhas das árvores frutíferas, que tradicionalmente cobrem o chão, foram tapete para uma cena inesperada: Gato, suando em bicas, carregava junto com outros fiéis a imagem do padroeiro em seus ombros magros, sob o olhar apaixonado da Virgem.
- herege, filho de uma puta! Gritou alguém no meio do bar, pouco se importando com as beatas e crianças vestidas de anjo para pagar promessa.
Gato agiu rápido. Era voluntário na igreja, começou a fazer bico no supermercado, carregando compras e espalhou entre os fiéis que nunca havia tido uma relação sexual sequer com alguém. As semelhanças inevitáveis aproximaram os dois pombinhos e justamente no dia do festejo, assumiam publicamente a relação que, por enquanto, se resumia em beijos estalinhos e mãos dadas na praça. O malandro ralou durante toda noite, vendendo de pescaria a maçã do amor, soltou rojão e rezou muito, dos joelhos ficarem doloridos de tanto sobe e levanta das missas. Na despedida foi surpreendido pela Virgem, que o convidou a tomar um banho e comer algo em sua casa.
A sala, mal iluminada, com apenas duas almofadas vermelhas destoando da estante em alvenaria e as paredes azuis, parecia sufocar Gato, tamanha era a expectativa. Lembrou das tantas meninas que iniciou e, no seu íntimo, se sentia mesmo um benfeitor. De repente, um murmuro. Era um choro, a virgem estava em lágrimas. Falou descompassada de janela aberta, do recolhimento das ofertas para a festa e do roubo a sua bolsa. Não conseguia completar uma frase sem antes soluçar como criança, ao mesmo tempo que pedia desculpas, aninhando-se nos braços do moço, e lamentando não tornar aquela noite a mais especial de sua vida. Gato calou, não sabia o que fazer. A ordem das coisas parecia confusa em sua cabeça, dois fios importantes, dinheiro e mulher, haviam entrado em curto. Precisava agir rápido, acalmar ela, ganhar a aposta. Não sabia o quanto gostava da Virgem, não conseguia calcular riscos. Saiu desembestado até o bicheiro que já recolhia sua banca e pediu grana. Insistiu. Jurou. Deixou cordão de ouro penhorado e a promessa que voltaria pra buscar.
A moça não disfarçou a alegria quando viu o montante de notas enroladinhas no elástico. Pegou de uma vez, contou tudinho com a habilidade de trocador de ônibus, e, assim que terminou, olhou para Gato de uma maneira estranha. A três passos de distância, abriu sua blusa listradinha de botão em um lance, como a rapidez de dançarina de tango, revelando o sutiã meia taça e um colo pintado de sardas. Virou de costas com vigor, desceu o zíper da saia cinza que, antes medindo no joelho, foi escorregando até chegar aos pés. O capeta tinha tomado conta do corpo dela que, depois do strip, prendeu o novo bichinho de estimação entre as pernas e só o deixou sair depois de encaixarem seus sexos. Um breve suspiro e as palavras mágicas soaram em seu ouvido “Conseguiu o que você queria.”. Sentiu a virgindade dela indo embora, cedendo espaço devagar, entre gemidos e apertões. Em meio a palavrões e impropérios, Gato foi submetido as mais ridículas das posições, sendo usado como um brinquedo na mão de uma criança mimada e ansiosa.
Dormiram agarradinhos mas não acordaram do mesmo jeito. A luz do sol pelas frestas revelou o que o coração e os olhos de Gato teimavam em não enxergar no escuro: uma casa vazia, com móveis abandonados. Não morava ninguém ali, em muitos e muitos anos. A Virgem havia deixado seu cativeiro ainda na mesma noite, depois de ver seu amado pregado na esteira improvisada. Na estrada, pedindo carona aos caminhoneiros, sua cabeça maquinava a próxima cidade, a próxima vítima. Assim como Gato ela também se sentia uma benfeitora, dando aos homens o prazer do desvirginar. No íntimo teria preferido ser puta, mas o destino – e seu hímen complacente – não lhe davam qualquer alternativa.
5 comentários:
Muito bom! Principalmente a parte do "prendeu o novo bichinho de estimação entre as pernas".
Vou começar a chamar os meus de gato, cachorro, piriquito, papagaio... Ahaahaha
Beijocas
Divertido!!! Lembra história de literatura de cordel com uma pitada de Nelson Rodrigues. Você está ficando cada dia mais afiado.
bjos
Ufaaaaa!
Essa deu suadeira hehe
Mto bom!!
Lobos em peles de cordeiros... a vida é mesmo assim!
Parabéns papaya!
Bjus
Putz! A cada dia vc se supera.
Abraço
Aru, amei.
E o mais engraçado é que já passei por isso... e o "bichinho de estimação" era mais um em minhas mãos ou melhor nas minhas pernas (rs).
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