quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

ESCOMBROS DO DESTINO

Catei o isqueiro no bolso e não achei. Deixei na minha gaveta, junto com alguns contracheques, cópias de documentos, um bibelô cafona que ganhei no amigo oculto e minha escova de dente. Vai ser difícil achar meus pertences nesta montanha de escombros. Queria achar Vilma também, que foi a última a ficar. Disse a ela: “você namora no telefone o dia todo e depois precisa virar a noite digitando memorandos.” Não suspeito que vão achar seu cadáver com o celular na mão. Tenho pena porque queria transar com ela e nunca consegui. Não sou bonito, nem novo e trabalho em agência de propaganda porque gostaria de ser criativo. Sou o revisor e entro e saio sem ninguém perceber. Minha ocupação é corrigir os erros dos outros, portanto, sou lembrado apenas quando uma merda acontece. Pelo menos, desta vez, não tive culpa e até me sinto bem por isso. O prédio foi nocauteado e caiu em pé, retinho. O barulho parecia de uma decarga de banheiro, no volume máximo. Assisti a tudo do outro lado da rua, na travessa, onde costumo tomar minha cerveja até o trânsito aliviar. Na verdade, nem me mexi. Pedi apenas para trocar de copo porque a poeira veio até aqui e invadiu bares, hotéis, agências, carros e tudo que mais havia. Devo estar com a cara branca, parecendo um padeiro.

- Mais uma, Raimundo.

Quer saber?Nem ligo. Este trabalho anda me tirando os prazeres da vida. Chego suado para bater ponto, sob a vigiância da nariguda do RH e seu cumprimentar com as sobrancelhas suspensas me irritam. Tenho vontade de fazer o mesmo quando sou chamado para receber meu salário defasado, na sala. Pena que o prédio desabou tarde demais. Assim levaria uns tantos desafetos, que me avaliam de cima em baixo como “excesso de custo”. Essa repórter ali estava atrás de testemunhas do acidente que agora toma conta dos principais veículos de comunicação. Pensei em aparecer na TV e já tinha uma história triste pronta para contar. Não tenho dúvida que eu seria o rosto que simbolizaria a tragédia, ganharia indenização da prefeitura e estaria no camarote, juntos com as personalidades, no carnaval. Mas bastaria estampar esta cara redonda fazendo papel de vítima para que casos sensacionalistas pipocassem por aí. E o pior: seriam todos verdade.

- Saideira, Raimundo.

Meu casamento com a patroa só durou até a primeira gravidez. Decidimos morar no mesmo bairro para manter as amizades e foram elas que me levaram para o mal caminho enquanto minha esposa sofria com inchaços, refrescando a noite com o ventilador amarrado na janela. Para aliviar a tensão, arrumei uma amante. Ela era pobrezinha mas muito carinhosa. Tinha uma carne dura e eu gostava de adormecer entre as suas coxas. Íamos para a quadra na quinta e, no começo, no cinema na quarta. Mas ela engravidou também e seus irmãos decidiram me pressionar. Parei de freqüentar a vila que a minha preta morava e decidi tomar jeito, ser um sujeito pacato. Foi nesta época que descobrimos que meu filho era mudo e uma sucessão de momentos angustiantes tomou conta do nosso lar. O garoto, que já tem nove anos e está com a cara da mãe, me olha com reprovação e quando tento me aproximar, levanta as sobrancelhas, do mesmo jeito que a mulher do departamento.

- Pode fechar pra mim?

Sempre quis ser outra pessoa. Se não fosse a falta de recursos para a faculdade e a timidez, teria conseguido ser um redator de sucesso, daqueles que aparecem nos anuários em fotos preto e branco. Poderia também ter investido em outro ramo quando meu cunhado me convidou para abrir um negócio de piscinas de fibra. Com quarenta e um anos me sinto envergonhado de mudar até o corte de cabelo. Até minutos atrás, quando prédio caiu. Acho que alguém em algum lugar ouviu minhas preces e já que não sou capaz de mudar o que está a minha volta, tudo que está a minha volta mudou de direção. Olha essa fumaça, esse cheiro de queimado. Olha aquela a esposa do porteiro chorando. Nunca entrei no Theatro Municipal, que está localizado aqui atrás do bar, mas sinto que esta é a mais importante ópera da minha vida. E como toda ópera merece um gran finale.

- Raimundo, sabe, mais ou menos, quanto custa uma passagem pra puta que me pariu?

4 comentários:

Claudia Netto disse...

Nesse tempo que te acompanho aqui, vc nunca me decepcionou... Espero com paciência vc juntar letras pra fazer arte e a recompensa é sempre uma ótima surpresa!!!

Lange Pinheiro disse...

Não gosto de ler seus textos, pois sinto minha criatividade ruir... Como aquele prédio.

Abraços

Anônimo disse...

poxa!legal, adorei o seu texto,o q aquelas famílias q perderam seus ente querido nesse desabamento precisam no momento é de q oremos por eles para q Deus os conforte é uma tragédia q não si espera!bjs

Juliana Diniz disse...

"Tenho pena porque queria transar com ela e nunca consegui. Não sou bonito, nem novo e trabalho em agência de propaganda porque gostaria de ser criativo."

Que azar é o meu, não custumo vir sempre por aqui, e quando venho me deparo de repente com essa frase e sentindo uma agulhada na boca do estômago, paro e penso... por que será que estou sentindo isso, hein??? Você é um ótimo escritor garoto, mas Deus me livre saber de todos os seus pensamentos...