Andou dizendo que vai partir fazendo cara de quem quer ficar
Se despediu e não se moveu, cheia de graça tentando enganar
As roupas continuam no chão vou tateando neste breu estelar
Fronteiras que existem em vão pra quem enxerga tudo do ar.
O cobertor que cobria a janela não impediu a entrada do sol
revelando sua luz amarela e nossas pernas fora do lençol
Você mesmo dormindo dizia que o tempo era mera ilusão
Os tantos atrasados no egito estão adiantados no Japão
(em Quito) (no Gabão)
Hoje sim, ontem não. Nunca é cedo ou tarde pra esperar.
Diz que sim, diz que não. Amor pesado é o que não sabe voar.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
CAMPO GRANDE PRA MIM
Sou a sexta geração de uma família tipicamente campograndense. Moro nos arredores da igreja Nossa Senhora do Desterro, onde os primeiros habitantes dessa terra estranha fincaram suas facas. Estudei no colégio católico da região e fiz primeira comunhão. Trabalhei em um jornal local e, pela felicidade de ter um avô que foi diretor do teatro do bairro, também vivi – e vivo – seu cenário cultural. Este discurso emburrado e cheio de poeira não me traz nenhuma vantagem a não ser o direito de falar o que quiser de onde nasci.
Campo Grande é o quarto de empregada do Rio de Janeiro. É o bairro com maior expectativa de crescimento para a próxima década. Acrianos, alagoanos e mineiros repousam suas malas diariamente no único lugar que ainda tem espaço para sonhar no município. São eles que lotam os transportes públicos onde encontram uma outra família – pelo tanto tempo que convivem indo e vindo - dividindo intimidades até sem querer.
O bairro não está longe o suficiente para ser interior, nem perto o suficiente para ser Rio de Janeiro. Campo Grande está escondido atrás de um vulcão preguiçoso no final de uma reta decadente e monótona chamada avenida Brasil.
Longe de ser um paraíso natural, este terreno vasto e plano possui o que restou de sua mata ameaçada pelo tráfico e outra área natural tomada pela especulação imobiliária. Está entre dois bairros: Santa Cruz, que não tem nenhum talento para ser tornar mais desenvolvido e, mesmo tendo todas as oportunidades do mundo no passado, continua com sua mentalidade provinciana, e Bangu, onde o diabo se abana de calor.
Com tanta gente chegando, inchando os bairros periféricos, em um pulo se tornou curral eleitoral, afastando a utopia de uma emancipação. Cada rua asfaltada, mil votos. Cada parideira com seus quatro filhos no centro social, outros mil votos. Os cariocas de verdade apertam a vista e mal conseguem enxergar onde fica esta quina do Rio. O helicóptero de notícias não chega, pois teria que abastecer pra voltar e os repórteres quando pensam em vir cobrir uma matéria, demoram tanto para regressar a redação, que comprometem o fechamento do periódico. Com esta miopia da opinião pública, compor uma máfia que proteja os comerciantes dos bandidos e permitir que as crianças brinquem no portão com segurança, se tornou mais que um ótimo negócio: virou coisa de super-herói.
Com o desenvolvimento econômico das classes baixas e a expectativa que o município vive pelos jogos olímpicos, Campo Grande vive uma nova fase. Tem churrasco todo dia, combos de bebidas para quem quiser, mais carros financiados na rua e a única coisa de metrópole que já conquistamos de antemão foi um trânsito desumano.
Como dinheiro não compra consciência e poder não compra sabedoria, a mentalidade rasa conduzirá esta massa de milhões para o caminho inverso do desenvolvimento. Na verdade, estamos deixando de ser um bairro rural para se tornar subúrbio.
Assim como meus cantores vieram da lama e meus escritores vieram do caos, esfrego minha terra na mão, com a esperança de lhe tirar toda a crosta e entender o que tem de tão poderoso e invisível em seus domínios. Olho a luz branca da manhã nos montes que ainda se preservam verdes, vejo o padeiro em sua bicicleta vendendo de porta em porta e não saio um dia na rua sem cumprimentar uma dezena de vizinhos. São estas miudezas que me cativam e mesmo conhecendo mais de dez países diferentes, não encontro nada igual. Já são seis gerações da família e três décadas de vida. Cansei de querer um Campo Grande melhor para todos. Vou fazer um Campo Grande melhor só para mim.
Campo Grande é o quarto de empregada do Rio de Janeiro. É o bairro com maior expectativa de crescimento para a próxima década. Acrianos, alagoanos e mineiros repousam suas malas diariamente no único lugar que ainda tem espaço para sonhar no município. São eles que lotam os transportes públicos onde encontram uma outra família – pelo tanto tempo que convivem indo e vindo - dividindo intimidades até sem querer.
O bairro não está longe o suficiente para ser interior, nem perto o suficiente para ser Rio de Janeiro. Campo Grande está escondido atrás de um vulcão preguiçoso no final de uma reta decadente e monótona chamada avenida Brasil.
Longe de ser um paraíso natural, este terreno vasto e plano possui o que restou de sua mata ameaçada pelo tráfico e outra área natural tomada pela especulação imobiliária. Está entre dois bairros: Santa Cruz, que não tem nenhum talento para ser tornar mais desenvolvido e, mesmo tendo todas as oportunidades do mundo no passado, continua com sua mentalidade provinciana, e Bangu, onde o diabo se abana de calor.
Com tanta gente chegando, inchando os bairros periféricos, em um pulo se tornou curral eleitoral, afastando a utopia de uma emancipação. Cada rua asfaltada, mil votos. Cada parideira com seus quatro filhos no centro social, outros mil votos. Os cariocas de verdade apertam a vista e mal conseguem enxergar onde fica esta quina do Rio. O helicóptero de notícias não chega, pois teria que abastecer pra voltar e os repórteres quando pensam em vir cobrir uma matéria, demoram tanto para regressar a redação, que comprometem o fechamento do periódico. Com esta miopia da opinião pública, compor uma máfia que proteja os comerciantes dos bandidos e permitir que as crianças brinquem no portão com segurança, se tornou mais que um ótimo negócio: virou coisa de super-herói.
Com o desenvolvimento econômico das classes baixas e a expectativa que o município vive pelos jogos olímpicos, Campo Grande vive uma nova fase. Tem churrasco todo dia, combos de bebidas para quem quiser, mais carros financiados na rua e a única coisa de metrópole que já conquistamos de antemão foi um trânsito desumano.
Como dinheiro não compra consciência e poder não compra sabedoria, a mentalidade rasa conduzirá esta massa de milhões para o caminho inverso do desenvolvimento. Na verdade, estamos deixando de ser um bairro rural para se tornar subúrbio.
Assim como meus cantores vieram da lama e meus escritores vieram do caos, esfrego minha terra na mão, com a esperança de lhe tirar toda a crosta e entender o que tem de tão poderoso e invisível em seus domínios. Olho a luz branca da manhã nos montes que ainda se preservam verdes, vejo o padeiro em sua bicicleta vendendo de porta em porta e não saio um dia na rua sem cumprimentar uma dezena de vizinhos. São estas miudezas que me cativam e mesmo conhecendo mais de dez países diferentes, não encontro nada igual. Já são seis gerações da família e três décadas de vida. Cansei de querer um Campo Grande melhor para todos. Vou fazer um Campo Grande melhor só para mim.
terça-feira, 30 de agosto de 2011
O QUERUBIM E AS NOSSAS INVENCIONICES
Metido em sua burocracia celestial, Deus lia em cima da mesa o pedido de serviço e montava seres humanos conforme demanda. Mas como não é dado a obedecer ordens, uma vez que não tem ninguém que as dê, vez ou outra transgredia a lógica, pois assim gostava de ser lembrando. A lógica é coisa da mãe natureza, o caos é coisa do todo-poderoso. Resmungou algo aos seus ajudantes quando leu o histórico de um casal que insistia em repetir a mesma fórmula do fracasso: pais separados, jovens, gravidez inesperada. De certo também repetiria a fórmula pondo no mundo um moleque com olhos de pedinte, voz fraca e grato a ele por ter um prato de comida. Já tinham vários destes pré-montados no estoque, mas, se sentindo desafiado a mudar a roda da vida inventada pelos próprios humanos, decidiu lançar seu cavalo de tróia. Aceitou o desafio que foi confirmado no exame de sangue da moça.
Passeando por seu jardim idílico, cruzou toda a avenida até o playground, onde pequenos querubins faziam suas estripulias de andorinha. Escolheu um a esmo e o levou debaixo do braço, o que despertaria imensa inveja aos outros se este fosse um sentimento permitido no céu. Trancou-se em sua sala, sacou-lhe as asas com a mesma habilidade de veterinários e introduziu – em processo completamente indolor – uma bomba-relógio em seu coração.
- Cuidado com as invenções dos humanos. Vai e volta voando. Terá minha consideração.
Numa noite de agosto, o querubim experimentou pela primeira vez o mundo imperfeito. Depois de um dia todo esperando na placenta, foi posto para fora em líquido amniótico verde, contaminado por suas próprias fezes. Sentiu o salitre no ar e reparou na epiderme imperfeita dos parentes que vinham no vidro olhar o novo rebento. Insistiam que tinha os cabelos do pai, o nariz da mãe, numa tentativa de dar-lhe identificação e personalidade instantânea. Serviu-se de todo elogio durante as horas que esteve no hospital e, se não fosse o incômodo de usar luvas e roupas para cobrir seu sexo, estaria perfeitamente adaptado ao clima tropical da costa verde. Ganhou moradia no meio da mata, onde as borboletas se colidiam no ar e a cachoeira trazia morro abaixo um sortimento de folhas e flores. O querubim, que já havia sido nomeado com inspirações na natureza, descansava inebriado com o leite materno capaz de oferecer uma gama de paladares, quando a bomba-relógio estourou em seu peito, fazendo um estalo abafado, como de uma bexiga debaixo do cobertor. Foi levado ao hospital na cor de um inhame que provavelmente não iria chegar a comer.
Deus aguardava ansioso o regresso do querubim, pronto para ouvir seu relato de espanto sobre àquela gente perecível, que se péla de medo da morte. A família de desregrados e fornicadores não transariam deliberadamente, não se apaixonariam inconseqüentemente outra vez, pois lembrariam desta mácula a cada natal; cada vez que se reunissem na mesa. Mas o querubim não voltou, tampouco mandou recado. Sem poder abrir os olhos sentia o calor da mão da mãe que o amamentou e toda uma legião de gente que vinha dizer-lhe coisas doces. Quando saiu do hospital envolta em tecido branco, bordado com crisântemos recebeu incentivo até de quem não o conhecia. O Senhor, famoso por sua ira, possui recursos infinitos e, como bom filho único, que não suporta ser contrariado, mostrou suas faces. Acionou nova bomba instalada no cérebro do pequeno ser divino, que convulsionou e tremeu seu corpo inanimado. A partir deste dia Deus não teve mais notícias do espião celestial. O querubim, recuperado dos ataques violentos, passou a descansar sob a sombra de árvores centenárias, protegidos em suas copas homogêneas. Assim brincou no chão pela primeira vez, comeu bolo de fubá e descobriu que na verdade seria uma mulher, de cabelos longos e loiros no futuro. Também provou doses fartas de amor, um sentimento novo que só nasce no coração de quem sabe o que é perder alguém.
Prestes a completar um ano, o querubim, já adaptado a Terra, distribuía sorrisos generosos aos poucos que ousaram despertar nas primeiras horas de domingo. Na capela de santo Antônio, quase perdida entre árvores e jardins, foi batizado, lavado do pecado original e ingressado, por ironia do destino, na comunidade cristã. Um coral de pássaros foi enviado para saudar a sua saída triunfal e nas horas seguintes foi introduzido a novas invencionices dos seres humanos que acabaram por lhe conquistar completamente. Eu que estava presente no evento e sempre acreditei na profundidade celestial daqueles olhos, vi quando Deus se mexeu sentado no topo da palmeira real. Usava uma túnica com linhas coloridas. Vinha acompanhado de outros querubins e mais dois ou três assistentes. Tentou se passar como desinteressado, fugindo o olhar para as plantas exóticas que moravam ali, mas sei que veio aprender e até estaria com inveja se este fosse um sentimento permitido no céu.
Passeando por seu jardim idílico, cruzou toda a avenida até o playground, onde pequenos querubins faziam suas estripulias de andorinha. Escolheu um a esmo e o levou debaixo do braço, o que despertaria imensa inveja aos outros se este fosse um sentimento permitido no céu. Trancou-se em sua sala, sacou-lhe as asas com a mesma habilidade de veterinários e introduziu – em processo completamente indolor – uma bomba-relógio em seu coração.
- Cuidado com as invenções dos humanos. Vai e volta voando. Terá minha consideração.
Numa noite de agosto, o querubim experimentou pela primeira vez o mundo imperfeito. Depois de um dia todo esperando na placenta, foi posto para fora em líquido amniótico verde, contaminado por suas próprias fezes. Sentiu o salitre no ar e reparou na epiderme imperfeita dos parentes que vinham no vidro olhar o novo rebento. Insistiam que tinha os cabelos do pai, o nariz da mãe, numa tentativa de dar-lhe identificação e personalidade instantânea. Serviu-se de todo elogio durante as horas que esteve no hospital e, se não fosse o incômodo de usar luvas e roupas para cobrir seu sexo, estaria perfeitamente adaptado ao clima tropical da costa verde. Ganhou moradia no meio da mata, onde as borboletas se colidiam no ar e a cachoeira trazia morro abaixo um sortimento de folhas e flores. O querubim, que já havia sido nomeado com inspirações na natureza, descansava inebriado com o leite materno capaz de oferecer uma gama de paladares, quando a bomba-relógio estourou em seu peito, fazendo um estalo abafado, como de uma bexiga debaixo do cobertor. Foi levado ao hospital na cor de um inhame que provavelmente não iria chegar a comer.
Deus aguardava ansioso o regresso do querubim, pronto para ouvir seu relato de espanto sobre àquela gente perecível, que se péla de medo da morte. A família de desregrados e fornicadores não transariam deliberadamente, não se apaixonariam inconseqüentemente outra vez, pois lembrariam desta mácula a cada natal; cada vez que se reunissem na mesa. Mas o querubim não voltou, tampouco mandou recado. Sem poder abrir os olhos sentia o calor da mão da mãe que o amamentou e toda uma legião de gente que vinha dizer-lhe coisas doces. Quando saiu do hospital envolta em tecido branco, bordado com crisântemos recebeu incentivo até de quem não o conhecia. O Senhor, famoso por sua ira, possui recursos infinitos e, como bom filho único, que não suporta ser contrariado, mostrou suas faces. Acionou nova bomba instalada no cérebro do pequeno ser divino, que convulsionou e tremeu seu corpo inanimado. A partir deste dia Deus não teve mais notícias do espião celestial. O querubim, recuperado dos ataques violentos, passou a descansar sob a sombra de árvores centenárias, protegidos em suas copas homogêneas. Assim brincou no chão pela primeira vez, comeu bolo de fubá e descobriu que na verdade seria uma mulher, de cabelos longos e loiros no futuro. Também provou doses fartas de amor, um sentimento novo que só nasce no coração de quem sabe o que é perder alguém.
Prestes a completar um ano, o querubim, já adaptado a Terra, distribuía sorrisos generosos aos poucos que ousaram despertar nas primeiras horas de domingo. Na capela de santo Antônio, quase perdida entre árvores e jardins, foi batizado, lavado do pecado original e ingressado, por ironia do destino, na comunidade cristã. Um coral de pássaros foi enviado para saudar a sua saída triunfal e nas horas seguintes foi introduzido a novas invencionices dos seres humanos que acabaram por lhe conquistar completamente. Eu que estava presente no evento e sempre acreditei na profundidade celestial daqueles olhos, vi quando Deus se mexeu sentado no topo da palmeira real. Usava uma túnica com linhas coloridas. Vinha acompanhado de outros querubins e mais dois ou três assistentes. Tentou se passar como desinteressado, fugindo o olhar para as plantas exóticas que moravam ali, mas sei que veio aprender e até estaria com inveja se este fosse um sentimento permitido no céu.
segunda-feira, 13 de junho de 2011
CORAÇÃO PESQUE E PAGUE
Neste lago de águas diáfanas não é preciso vara porque meus sentimentos vão até você. É simples amigo: pegue um olhar, uma mentira bem contada ou qualquer outra migalha, jogue e fique esperando. Logo meus pequenos animais virão comer na sua mão. Tenho de todo tipo, rajados de vermelho, dourados, graúdos e miúdos. Só escolher. Qual recomendo?Aquele grande ali. Come de tudo, cresce rápido mas não digere muito bem. Se chama carência. Tem aquele outro que se chama vingança. Muito ruim de limpar mas tem um sabor inigualável. Escolhe o seu e não me encha mais. A fila deste pesque e pague não pára de crescer.
Dias de feriado é comum acamparem no meu gramado. Já foi mais verde, bem cuidado. Hoje é terra batida com ervas daninhas e capim querendo impor sua natureza pobre. São anos de uso sem qualquer preservação. Neste que passou chegaram em bando e a oferta de iscas foi tanta que alguns sentimentos cresceram demais. A vaidade, a futilidade e a prepotência são raças que não vivem em harmonia dentro de mim e afugentam lá para o fundo do meu lago os sentimentos mais bonitos. Aliás para conhecê-los será necessário mais esforço da outra parte. Não se encantam com os mimos baratos jogados no espelho d´água. Interessado?então mergulhe de cabeça nas profundezas e cavidades do meu coração.
Preferindo também tenho um brejo onde todas as minhas putarias sobrevivem chafurdadas na lama. Promiscuidades cabeludas, fetiches de quatros patas e outra ordem de bichos que parecem estranhos à luz do sol mas se tornam deliciosos à luz da lua. Rompa a carapaça e terá direito de chupar, lamber e morder tudo que encontrar.
À primeira vista ter um pesque pague parece ser um bom negócio porque os clientes viram amigos e sempre aparece gente nova para se divertir. Pensar que você contribui com a vida alheia dá uma leve impressão que se está cumprindo uma missão divina na Terra. Só tenho medo dos recados da mãe natureza. O nível do meu lago a cada ano desce mais e essas águas feitas de lágrimas caídas em um filme bobo de romance ou preenchidas pelo suor de um orgasmo sincero estão cada vez mais difíceis de extrair. Tenho medo de acordar um dia e ver toda espécie rara de ternura, encantamento e lealdade agonizando por um palmo de lago. Justamente estas que viviam em cardume e faziam cócegas no meu estômago quando eu ainda conseguia lembrar o nome de quem se interessava por sentimentos dessa espécie.
Dias de feriado é comum acamparem no meu gramado. Já foi mais verde, bem cuidado. Hoje é terra batida com ervas daninhas e capim querendo impor sua natureza pobre. São anos de uso sem qualquer preservação. Neste que passou chegaram em bando e a oferta de iscas foi tanta que alguns sentimentos cresceram demais. A vaidade, a futilidade e a prepotência são raças que não vivem em harmonia dentro de mim e afugentam lá para o fundo do meu lago os sentimentos mais bonitos. Aliás para conhecê-los será necessário mais esforço da outra parte. Não se encantam com os mimos baratos jogados no espelho d´água. Interessado?então mergulhe de cabeça nas profundezas e cavidades do meu coração.
Preferindo também tenho um brejo onde todas as minhas putarias sobrevivem chafurdadas na lama. Promiscuidades cabeludas, fetiches de quatros patas e outra ordem de bichos que parecem estranhos à luz do sol mas se tornam deliciosos à luz da lua. Rompa a carapaça e terá direito de chupar, lamber e morder tudo que encontrar.
À primeira vista ter um pesque pague parece ser um bom negócio porque os clientes viram amigos e sempre aparece gente nova para se divertir. Pensar que você contribui com a vida alheia dá uma leve impressão que se está cumprindo uma missão divina na Terra. Só tenho medo dos recados da mãe natureza. O nível do meu lago a cada ano desce mais e essas águas feitas de lágrimas caídas em um filme bobo de romance ou preenchidas pelo suor de um orgasmo sincero estão cada vez mais difíceis de extrair. Tenho medo de acordar um dia e ver toda espécie rara de ternura, encantamento e lealdade agonizando por um palmo de lago. Justamente estas que viviam em cardume e faziam cócegas no meu estômago quando eu ainda conseguia lembrar o nome de quem se interessava por sentimentos dessa espécie.
segunda-feira, 2 de maio de 2011
O VENENO DE MIRANDA
Miranda raspava os restos da sua quentinha no lixo da cozinha, rompendo o silêncio. Outros vigilantes almoçavam debruçados na bancada, concentrados no mastigar de pensamentos soltos. O dia cinza tornava o lugar aconchegante pelo calor dos mini-fornos em ação. Seu recipiente de alumínio, que neste dia tinha abóbora cozida e carne seca de mistura, era inadequado comparado aos mais modernos, com divisórias e tampas herméticas. Mas Miranda era tradicional e não se importava em parecer ultrapassado. Tanto que não abandonava sua pochete, ou capanga como gostava de se referir. Impunha um certo respeito por parecer que este tem porte de arma e carregava seu trabuco a tiracolo. Não cansava de contar aos sobrinhos que era confundido como papamaique. O vigilante um dia sonhou ser fuzileiro, bombeiro, polícia civil e ser responsável pela entrada e saída dos carros na fábrica quando já passava da metade da vida lhe parecia razoável. Depois de raspar quase toda marmita no lixo, alguém o interpelou.
- Quanto tiver sem fome assim, passa pra cá que eu como.
Não era dado ao desperdício mas desde as primeiras horas estava tomado por uma preocupação inédita. Virou-se de costas e enfrentou a passagem entre as cadeiras. Pouco mais de 30 passos. Esticou o primeiro pé concentrado, logo o outro. E foi cadenciando seu andar intermitente. Parecia ter conseguido fingir normalidade mas quando virou na porta pôde ouvir muxoxos e zombarias. Sentiu alívio quando chegou ao seu posto, onde ficava de pé dentro da cabine acionando o botão do portão. Esteve ali imóvel durante todo o tempo e esqueceu sua preocupação que só veio à tona quando o rádio PX tocou e uma voz conhecida do outro lado o relembrou da rodada de carteado, no trailer embaixo do viaduto.
Não poderia ir, mesmo sabendo que havia deixado 50 pratas em aposta. Gostaria de ir direto para casa, deitar na cama sem dizer uma palavra e fechar os olhos, com esperança de que no dia seguinte tudo voltaria a sua normalidade. Mas o trailer era caminho obrigatório e uma angústia estacionou no seu estômago. Pensou em uma saída tão logo abriu o portão.
Os mesmos que almoçavam em silêncio eram capazes de fazer arruaça de crianças no recreio. Espalhavam-se pela calçada em volta do trailer, revezando no jogo de baralho. Um noticiário de boletim policial vindo da caixinha de som dava o tema das conversas. Falavam de suas façanhas, mortes espetaculares, tipos de arma e mulher. O monza vinho de Cardoso parou e Miranda chegou de carona. Seria estranho pegar carona pela distancia ridícula e sua idéia inicial era que pudesse ir direto para a estação de trem e embarcar para casa. Esqueceu-se que Cardoso, apesar de não jogar, tomava sua talagada de conhaque antes de pegar a estrada. Distraídos em suas jogatinas e causos fantásticos não fizeram qualquer comentário por horas. Já estava escuro e a lâmpada esticada com cabo de vassoura mal conseguia clarear a mesa quando Fraga disparou sua ofensa após se eliminado do jogo.
- Pelo menos não sou quem anda rebolando. Só pode estar usando calcinha.
Seu olhos concentrados em Miranda e o queixo proeminente exigiam uma resposta. Em outra situação o vigilante poderia fazer uso de sua capanga e fingir que ia exterminar qualquer otário mas todos sabiam que não possuía sequer uma garrucha visto que ficou sem alternativa a não ser contar a verdade. Disse tudo em curtas palavras e ninguém pareceu acreditar de tão fantástica a história. Já haviam ouvido falar que o veneno deixava paralisado, cianótico e até matava mas nunca influenciaria o modo de andar. Cardoso deixou Miranda na estação de metrô e arqueou suas sobrancelhas na despedida penalizado com tudo que ouviu. Miranda novamente calculou a distância até o vagão e parecia interminável a chegada até lá. Era extremamente cansativo pensar no passo firme, mais nada. Esquerda, direita. Esquerda direita. Teria conseguido se o alto-falante não tivesse anunciado a saída imediata do trem sentido Santa Cruz. Sabia que depois daquele teria que encarar o parador que visitava as 48 estações até sua casa. Olhou para frente com a mesma obstinação de um maratonista e abandonou seu mantra. Correu e enquanto fazia seu quadril passou a dar rebolados de passista. Suas ancas balançavam em exagero para os lados de maneira que nem os maratonistas de marcha lenta conseguiriam tal proeza. Passou pela multidão de trabalhadores cansados e parecia que uma avenida se abria com todos os olhares apontados para ele. Quanto mais tentava se apressar mais rebolava. Sorte que já estava a paisana senão seria identificado e no outro dia não faltariam zombadores na porta. Preferia estar cagado que passar um constrangimento daquele.
Sentou no sofá cansado e ligou a televisão só para fazer companhia. Sua mulher saiu do banho e depois das ablução imersa em cremes de essência de morango, contou seu dia na cronologia dos fatos, vez ou outra buscando a opinião do marido. Vendo que não tinha resposta o confrontava exigindo atenção. A mesa estava quase posta quando Miranda não agüentou e gritou com seu urro de macho alfa.
- Não vê que eu to sofrendo porra! Não consigo parar de rebolar feito uma bicha.
A mulher minimizou o fato explicando que isso para as mulheres era perfeitamente normal e mesmo que tivesse que conviver com esta nova modalidade de andar, se adaptaria facilmente. No final decidiu aplicar a ele o mesmo procedimento de organização de idéias e perguntou a Miranda como foi seu dia. Parou para ouvir atentamente quando este explicou o diagnóstico do doutor.
- Uma espécie rara de lacraia que tem aqui em casa. Deve ter me picado enquanto tomava banho. Seu veneno, contrários dos outros, não mata nem manda ninguém para o hospital. Seu efeito relaxa os músculos da região glútea, deixando-a dormente. Disse que caminhar ajuda na circulação do sangue e na diluição do veneno. Não há outro remédio.
Miranda limpava as cavidades nazais, assoando seu muco com força quando reencontrou a maldita. Pequena, serelepe, tentava subir pelo azulejo. Quando atingida por um pingo caía na água novamente e serpenteava agitada nadando com dificuldade. Assim Miranda nadaria, se precisasse. A lacraia se escondeu na brecha da massa que cedeu a infiltração, assim como Miranda que foi direto para cama, com pijama azul marinho e seu rebolado desconcertante.
- Quanto tiver sem fome assim, passa pra cá que eu como.
Não era dado ao desperdício mas desde as primeiras horas estava tomado por uma preocupação inédita. Virou-se de costas e enfrentou a passagem entre as cadeiras. Pouco mais de 30 passos. Esticou o primeiro pé concentrado, logo o outro. E foi cadenciando seu andar intermitente. Parecia ter conseguido fingir normalidade mas quando virou na porta pôde ouvir muxoxos e zombarias. Sentiu alívio quando chegou ao seu posto, onde ficava de pé dentro da cabine acionando o botão do portão. Esteve ali imóvel durante todo o tempo e esqueceu sua preocupação que só veio à tona quando o rádio PX tocou e uma voz conhecida do outro lado o relembrou da rodada de carteado, no trailer embaixo do viaduto.
Não poderia ir, mesmo sabendo que havia deixado 50 pratas em aposta. Gostaria de ir direto para casa, deitar na cama sem dizer uma palavra e fechar os olhos, com esperança de que no dia seguinte tudo voltaria a sua normalidade. Mas o trailer era caminho obrigatório e uma angústia estacionou no seu estômago. Pensou em uma saída tão logo abriu o portão.
Os mesmos que almoçavam em silêncio eram capazes de fazer arruaça de crianças no recreio. Espalhavam-se pela calçada em volta do trailer, revezando no jogo de baralho. Um noticiário de boletim policial vindo da caixinha de som dava o tema das conversas. Falavam de suas façanhas, mortes espetaculares, tipos de arma e mulher. O monza vinho de Cardoso parou e Miranda chegou de carona. Seria estranho pegar carona pela distancia ridícula e sua idéia inicial era que pudesse ir direto para a estação de trem e embarcar para casa. Esqueceu-se que Cardoso, apesar de não jogar, tomava sua talagada de conhaque antes de pegar a estrada. Distraídos em suas jogatinas e causos fantásticos não fizeram qualquer comentário por horas. Já estava escuro e a lâmpada esticada com cabo de vassoura mal conseguia clarear a mesa quando Fraga disparou sua ofensa após se eliminado do jogo.
- Pelo menos não sou quem anda rebolando. Só pode estar usando calcinha.
Seu olhos concentrados em Miranda e o queixo proeminente exigiam uma resposta. Em outra situação o vigilante poderia fazer uso de sua capanga e fingir que ia exterminar qualquer otário mas todos sabiam que não possuía sequer uma garrucha visto que ficou sem alternativa a não ser contar a verdade. Disse tudo em curtas palavras e ninguém pareceu acreditar de tão fantástica a história. Já haviam ouvido falar que o veneno deixava paralisado, cianótico e até matava mas nunca influenciaria o modo de andar. Cardoso deixou Miranda na estação de metrô e arqueou suas sobrancelhas na despedida penalizado com tudo que ouviu. Miranda novamente calculou a distância até o vagão e parecia interminável a chegada até lá. Era extremamente cansativo pensar no passo firme, mais nada. Esquerda, direita. Esquerda direita. Teria conseguido se o alto-falante não tivesse anunciado a saída imediata do trem sentido Santa Cruz. Sabia que depois daquele teria que encarar o parador que visitava as 48 estações até sua casa. Olhou para frente com a mesma obstinação de um maratonista e abandonou seu mantra. Correu e enquanto fazia seu quadril passou a dar rebolados de passista. Suas ancas balançavam em exagero para os lados de maneira que nem os maratonistas de marcha lenta conseguiriam tal proeza. Passou pela multidão de trabalhadores cansados e parecia que uma avenida se abria com todos os olhares apontados para ele. Quanto mais tentava se apressar mais rebolava. Sorte que já estava a paisana senão seria identificado e no outro dia não faltariam zombadores na porta. Preferia estar cagado que passar um constrangimento daquele.
Sentou no sofá cansado e ligou a televisão só para fazer companhia. Sua mulher saiu do banho e depois das ablução imersa em cremes de essência de morango, contou seu dia na cronologia dos fatos, vez ou outra buscando a opinião do marido. Vendo que não tinha resposta o confrontava exigindo atenção. A mesa estava quase posta quando Miranda não agüentou e gritou com seu urro de macho alfa.
- Não vê que eu to sofrendo porra! Não consigo parar de rebolar feito uma bicha.
A mulher minimizou o fato explicando que isso para as mulheres era perfeitamente normal e mesmo que tivesse que conviver com esta nova modalidade de andar, se adaptaria facilmente. No final decidiu aplicar a ele o mesmo procedimento de organização de idéias e perguntou a Miranda como foi seu dia. Parou para ouvir atentamente quando este explicou o diagnóstico do doutor.
- Uma espécie rara de lacraia que tem aqui em casa. Deve ter me picado enquanto tomava banho. Seu veneno, contrários dos outros, não mata nem manda ninguém para o hospital. Seu efeito relaxa os músculos da região glútea, deixando-a dormente. Disse que caminhar ajuda na circulação do sangue e na diluição do veneno. Não há outro remédio.
Miranda limpava as cavidades nazais, assoando seu muco com força quando reencontrou a maldita. Pequena, serelepe, tentava subir pelo azulejo. Quando atingida por um pingo caía na água novamente e serpenteava agitada nadando com dificuldade. Assim Miranda nadaria, se precisasse. A lacraia se escondeu na brecha da massa que cedeu a infiltração, assim como Miranda que foi direto para cama, com pijama azul marinho e seu rebolado desconcertante.
segunda-feira, 18 de abril de 2011
FAST FORWARD FRIDAY
“Uruguaiana né?”. Cem passos até o metrô. Um minuto atrasado. Quantos segundos demoram cada porta ao abrir e fechar? Abre e fecha. Abre e fecha. 8x. 11h17h. Todo dia o mesmo horário. “Bom dia gente”. Coca-cola light de ontem?Bebi e ninguém viu. Ela chegou. Não olhei. Notícias do flamengo. De Realengo. Anoto comprar calça nova na lista que começou segunda. Roupas para o show. Expectativa que dá fome. Ninguém tem biscoito. Word/meus arquivos/repertório. Quanto ta uma hering?Escrevo errado. Google acha. Ela pergunta se vi o email. Hoje tem reunião no cliente. Mais fome. Mais ansiedade. Mais Flamengo. Mais Realengo. Volto na lista e anoto fone de ouvido. Lembro do IPVA. Lembro da nota fiscal do show. Começo a fazer conta do mês e não termino. Melhor achar que tem mais. Falta corrigir todos os layouts. 14H o táxi vem. Mais ansiedade. Mais fome. Não dá para almoçar. Olho a campanha e imagino ganhar a conta. Imagino mais dinheiro. Lembro da lista. Lembro da banda e dos shows. Melhor fazer o repertório. Corrijo rápido. O táxi chegou. Ela está discutindo e vai querer atenção. Quis. Não olhei mas falei. Brinquei. Não vai dar para comprar a calça e vou tocar com a velha. Lembro do lenço novo que comprei. Volto na lista para riscá-lo mas não tinha incluído. Quero riscar alguma coisa. Entro no site da Hering. Alguém me chama no Facebook. Outro alguém. Um terceiro alguém sem foto me ofende. Não tenho tempo para gracinha. Já estão todos prontos. Abro o repertório. Ela pede para corrigir tudo de novo. Outra discussão acontece. A promoção tem um balão. Não acharam um balão?Como assim?Vou verificar. Volto. Abro o repertório. “Você viu o email”Não tinha visto. Estamos atrasados. CTRL C + CTRL V. 7 cópias das mesmas músicas. Deixo por conta do improviso. Levo a mala pra ela. A outra me pede para ir no meio. Não sou cavalheiro e vou no canto. Acordo com riso e com meu ronco. Chegamos na reunião dentro do shopping. Lembro da lista. Toca o telefone. Cadê o baterista?Olá, sou redator da agência. Celular no silencioso. Mando mensagem. Ela começa a falar e ler. Tenho medo de ter erro na apresentação. Falo alguma coisa para descontrair. Bebo água. A mensagem volta com o paradeiro do músico. Outro liga. Número desconhecido também. 17h. Gostam do balão. Lembro da discussão. Bebo água. O diretor parece não gostar. Tudo morno. Começo a imaginar como seriam fora do ambiente de trabalho. Lembro do público que vai me assistir. Quero riscar algo da lista. Será que ali vende brinco?Bebo mais água. To cansado mas não posso. Quero tomar um energético e alguém propõe cerveja. Não vejo loja de calça nem de brinco. Ta escuro. Alguém pergunta da reunião. Tento falar duas vezes mas não querem ouvir porque também querem falar. Bebo cerveja. Elogio o balão. Chega outra cerveja. Falamos todos nos celulares. Ela paga minha cerveja. Tento lembrar o número do ônibus. Ando apressado. Lembro da lista e do fone de ouvido. Lembro que vou tocar em outro lugar. Quero pensar só na banda mas ainda me vem as idéias do balão. O dinheiro na conta. Tem uma sobra e paro para comer. Não sei montar essa merda de sanduíche. Saio da fila. Compro energético mais adiante e fico no ponto. Muita gente e não posso me distrair. O baterista não chegou?Vão falar mal dele. Procuro relaxar no escuro com ar condicionado. Agenda: a,b,c.. lembro do brinco e das fotos com roupas iguais. Lembro da minha barriga com a camisa branca. Pego o repertório na mochila e tento pensar nos improvisos. Durmo. Acordo com a lata caindo no chão. Durmo, acordo e não conheço o lugar. O ônibus pegou outro caminho. Ligo e ninguém atende. Não vou conseguir chegar na passagem de som. Quero colocar o assunto na lista mas tenho que fazer outra lista de obrigações. Mas duas vai ser demais. “Posso descer ali no sinal?”Corre, corre, banho morno, calça velha, lenço novo na mochila. Cadê o baterista? Tem trânsito. “Alô, to quase chegando”. Passo direto no quebra molas. Lembro do velocímetro e da divida com o mecânico. Mais coisa na lista. E o repertório??Ligo para casa. Separa e alguém busca. Tenho que me identificar como vocalista. Ganho um sorriso simpático. Diminuo o passo. Agora sou o cantor. Agora sou o cantor. Falo com ela. Não aquela, agora outra diretora, outra cliente. Sorrio. Olho o espaço. Tem gente esperando mas é pouca. Duas moças lindas. Penso na primeira vez no que vou fazer depois do show. O baterista aparece. Ajudo a carregar tudo. Me mostra a camisa nova e fico com inveja. Chega gente. Me escondo no camarim e me arrumo cedo demais. To ansioso pela segunda vez no dia. Melhor beber de novo. Vou passar o volume de voz atrás do telão. O baterista foi para casa e fico sozinho. Lembro do balão e mando mensagem para saber se ganhamos alguma coisa. Lembro do repertório e ligo para o baterista. Mais gente chegando. Melhor beber mais. Volto ao camarim. Amarro o lenço. Tiro da cabeça porque acho que estou parecendo o Cazuza. Tento lembrar outro jeito de amarrar. Vi o vídeo do youtube. Não consigo. Lembro do email que não li. Chega o guitarrista e o baixista. Falam da passagem de som. Chega o percussionista e fala alguma piada que já conheço. Rio com todos. Não consigo amarrar o lenço. Melhor fazer do meu jeito. “A diretora quer falar com você”. Não a primeira, a segunda. Quer Roberto Carlos. Libera a comida. Lembro que não almocei e não me cabe agora fazer. Vou beber. Ela não quer no palco. Devolvo o sorriso. Chega o baterista de camisa nova. Chegam os convidados. Melhor começar agora?Nem olho pra frente. Apresso. Apresso. Quero sair dali. Olho para a moça. Tem outras moças. O que vou fazer depois daqui?Contagem regressiva. Tlec, tlec, tlec...
segunda-feira, 28 de março de 2011
PAUSE E PARABÉNS
Acordei sem poder acordar. Mas isso pra mim é normal. Tem gente que fica de preguiça na cama e atrasa uns minutinhos no trabalho. Eu também. A diferença é que não escolho o dia que isso vai acontecer. É o meu corpo que determina meus domingos. Tenho catalepsia projetiva, conhecida por paralisia do sono. Nada diferente do que ter o dedo do pé para fora da sandália ou um bico do peito diferente do outro. Cedo ou tarde, a gente se acostuma.
É mais ou menos assim: você acorda e parece que ainda está dormindo. Nada mexe, no máximo, a bolinha preta do olho. Quando pequena minha avó dizia que eu estava deixando de ser uma boneca para virar menina. Já meu irmão mais novo dizia que eu tinha um encosto. Seja como for não me incomodaria tanto de travar se hoje não fosse meu aniversário.
Geralmente tenho estes piripaques depois de um dia cansativo. Mas ontem não saí da rotina. O momento mais emocionante foi ter suturado a língua do gato. Sei da importância que ela tem para os seus banhos, por isso fiquei feliz. Convenhamos: ser veterinária em uma clínica é uma realização pessoal nada agitada. O primeiro a me desejar parabéns foi o Cocoroca, meu cachorro. Chegou com andar de xerife, pernas arcadas e focinho amassado. Ouvi seus passos tilintando no piso. Depois de esperar um afago, em vão, tentou pular na cama, presumindo que eu o ajudaria a subir. Seria um dia perfeito, acordar com seu ronco de batráquio fazendo festinha. Mas quis o destino que eu virasse uma samambaia no dia que completo 26 anos.
Durmo olhando a parede. Nas suas imperfeições sempre vejo formar as mesmas figuras. O Don Quixote, onde sujei com o pé. O carro de corrida, na parte áspera. A silhueta de mulher, na rachadura recoberta pela tinta. Estava olhando para elas quando minha amiga, que divide apartamento comigo, apareceu na ponta dos pés. Como todo mundo, achou que eu estivesse dormindo. Entrou com um cartão na mão, que puder ver que era vermelho. O pendurou no mural e ali ficou, olhando, lendo, revisitando detalhes de fotografias que os olhos insistem em esquecer, só para nos devolver o prazer de sentir uma coceirinha na alma. Isso deveria ter um nome mais bonito que nostalgia. Observá-la assim, neste breve momento de encantamento foi meu melhor presente. Sei que naquele instante o mundo para ela também parou. A parte que o cartão disparou seu jingle eletrônico cantando “parabéns pra você” e ela saiu em disparada, deixa pra lá.
Diz o médico que, para sair deste estado em pause, preciso me concentrar na respiração. Tiro pensamentos da cabeça e foco no ar passeando, oxigenando e saindo, com pressão de calibrador de pneu. Começo a inspirar mas logo lembro da comida descongelando fora da geladeira. Lembro dos amigos que se mobilizaram para ajudar nos preparativos. E lembro de alguém que não poderia lembrar. Alguém que faz meu coração disparar, mesmo teimando em não querer.
Putz. Para as favas a respiração.
Meu celular apitou 18 vezes de meia noite para cá. A cada apito, uma mensagem de texto. Como ociosidade é algo obrigatório agora, calculei a média de amigos que lembraram de mim por hora: 2.57. Não é muito se levar em consideração os parentes e o recado da operadora cobrando faturas esquecidas. Mas não me importo, gosto tanto deles. Em breve estarão misturados, fazendo drinques, arriscando piadas e reiterando os votos de amizade eterna. Do telefone da pizzaria, que entrega depois de meia noite, aos sábados sem grana que amanhecemos jogando baralho, são eles que estão por trás de tudo.
Acabei dando um improvável suspiro, o que me anima a possibilidade de voltar ao normal dentro de algumas horas. Já sinto o pé formigando. Enquanto isso tento bloquear a saudade.Talvez só as figuras inventadas na parede saibam como sinto falta da minha mãe e sua maneira peculiar de me acordar fazendo voltinhas em meu cabelo. Sinto também falta dos gritos de domador de urso do meu pai. Mas se não controlo nem o meu tempo, é muita presunção da minha parte querer controlar o destino. Agora que tenho 26 anos vou olhar para os 30 de rabo de olho tentando não dar ouvido às suas obrigações. Sou veterinária, sou amiga, dona de um cachorro e do meu próprio nariz. Talvez não seja uma boneca e com certeza não tenho um encosto, mas passei a ver com outros olhos essa esquisitice de viver sonhando acordada.
Para C.C.
É mais ou menos assim: você acorda e parece que ainda está dormindo. Nada mexe, no máximo, a bolinha preta do olho. Quando pequena minha avó dizia que eu estava deixando de ser uma boneca para virar menina. Já meu irmão mais novo dizia que eu tinha um encosto. Seja como for não me incomodaria tanto de travar se hoje não fosse meu aniversário.
Geralmente tenho estes piripaques depois de um dia cansativo. Mas ontem não saí da rotina. O momento mais emocionante foi ter suturado a língua do gato. Sei da importância que ela tem para os seus banhos, por isso fiquei feliz. Convenhamos: ser veterinária em uma clínica é uma realização pessoal nada agitada. O primeiro a me desejar parabéns foi o Cocoroca, meu cachorro. Chegou com andar de xerife, pernas arcadas e focinho amassado. Ouvi seus passos tilintando no piso. Depois de esperar um afago, em vão, tentou pular na cama, presumindo que eu o ajudaria a subir. Seria um dia perfeito, acordar com seu ronco de batráquio fazendo festinha. Mas quis o destino que eu virasse uma samambaia no dia que completo 26 anos.
Durmo olhando a parede. Nas suas imperfeições sempre vejo formar as mesmas figuras. O Don Quixote, onde sujei com o pé. O carro de corrida, na parte áspera. A silhueta de mulher, na rachadura recoberta pela tinta. Estava olhando para elas quando minha amiga, que divide apartamento comigo, apareceu na ponta dos pés. Como todo mundo, achou que eu estivesse dormindo. Entrou com um cartão na mão, que puder ver que era vermelho. O pendurou no mural e ali ficou, olhando, lendo, revisitando detalhes de fotografias que os olhos insistem em esquecer, só para nos devolver o prazer de sentir uma coceirinha na alma. Isso deveria ter um nome mais bonito que nostalgia. Observá-la assim, neste breve momento de encantamento foi meu melhor presente. Sei que naquele instante o mundo para ela também parou. A parte que o cartão disparou seu jingle eletrônico cantando “parabéns pra você” e ela saiu em disparada, deixa pra lá.
Diz o médico que, para sair deste estado em pause, preciso me concentrar na respiração. Tiro pensamentos da cabeça e foco no ar passeando, oxigenando e saindo, com pressão de calibrador de pneu. Começo a inspirar mas logo lembro da comida descongelando fora da geladeira. Lembro dos amigos que se mobilizaram para ajudar nos preparativos. E lembro de alguém que não poderia lembrar. Alguém que faz meu coração disparar, mesmo teimando em não querer.
Putz. Para as favas a respiração.
Meu celular apitou 18 vezes de meia noite para cá. A cada apito, uma mensagem de texto. Como ociosidade é algo obrigatório agora, calculei a média de amigos que lembraram de mim por hora: 2.57. Não é muito se levar em consideração os parentes e o recado da operadora cobrando faturas esquecidas. Mas não me importo, gosto tanto deles. Em breve estarão misturados, fazendo drinques, arriscando piadas e reiterando os votos de amizade eterna. Do telefone da pizzaria, que entrega depois de meia noite, aos sábados sem grana que amanhecemos jogando baralho, são eles que estão por trás de tudo.
Acabei dando um improvável suspiro, o que me anima a possibilidade de voltar ao normal dentro de algumas horas. Já sinto o pé formigando. Enquanto isso tento bloquear a saudade.Talvez só as figuras inventadas na parede saibam como sinto falta da minha mãe e sua maneira peculiar de me acordar fazendo voltinhas em meu cabelo. Sinto também falta dos gritos de domador de urso do meu pai. Mas se não controlo nem o meu tempo, é muita presunção da minha parte querer controlar o destino. Agora que tenho 26 anos vou olhar para os 30 de rabo de olho tentando não dar ouvido às suas obrigações. Sou veterinária, sou amiga, dona de um cachorro e do meu próprio nariz. Talvez não seja uma boneca e com certeza não tenho um encosto, mas passei a ver com outros olhos essa esquisitice de viver sonhando acordada.
Para C.C.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
DIAS DE JANEIRO
É caxias esse janeiro. Quando os meses do calendário se reuniram para organizar a fila, foi ele o primeiro a chegar e o primeiro a levar a bandeira do ano recém nascido. Bem feito. Mal sabia que junto da bandeira vinha uma mala sem alça chamada realização. Dezembro fica com os sonhos. Janeiro os transforma em meta. Vigília, disciplina e providência passam a cozinhar em banho-maria para, um dia, se transformarem em atitude. Janeiro pega fogo, não pelo sol de maçarico lá de fora mas pelas ebulições, aqui dentro. Assisto passivo o pocket show da vida alheia de tudo que não vai acontecer para o resto do ano: 30 dias sem por álcool na boca, 30 dias viajando, 30 dias de namoro.
Janeiro tem inveja das tardes frias de julho, da desimportância de novembro e do humor negro de agosto. Talvez se nessa reunião tivessem comparecido também as estações do ano, as resoluções seriam diferentes. Tudo em seu reino é frívolo e artificial como o bronzeado de domingo. Não se faz amigos, não se encontram amores, tudo que se vê é fruto de miragem causada pela radiação do décimo terceiro salário e a chegada eminente do carnaval. Janeiro não tem árvore, não tem raiz, só pó.
É cheio de marra esse janeiro. Bate no peito para falar de suas posses, afinal, o Rio é só dele. E seguindo o pensamento vale refletir: São Paulo seria das águas de março?Existe uma magnética doida nesta lógica de estado e calendário pois o Rio e o Janeiro alimentam o tesão um pelo outro e chamam o verão para completar a suruba, cujos os filhos, somos nós, cariocas que temos a certeza de morar no melhor lugar do mundo mesmo sem conhecer o outro lado da rua.
Antes que soe contraditório, embora pareça ser, isento as praias em sua concepção natural. Nada tem a ver a ignorância surda das ondas e a benevolência das areias. A praia é o portal onde, regando com champagne, enterramos nosso pedidos, moedinhas e lentilhas, para, uma semana depois, deitarmos semi nus sobre eles. Na mesma areia entregamos nossa alma e oferecemos nosso corpo. O sagrado e o profano junto e misturado.
Quero que janeiro passe em galope e não deixe uma brisa sequer para balançar meu móbile apanhador dos sonhos. Deste mês, que tem o mesmo destino dos aeroportos e a mesma tristeza das estações de metrô, não ficará uma lembrança no porta-retrato, um bilhete colado na geladeira. Não porque os momentos de sol, sal e suor não foram importantes e sim porque todos os anos eles se repetem, repetem, repetem. Janeiros são sempre iguais.
Janeiro tem inveja das tardes frias de julho, da desimportância de novembro e do humor negro de agosto. Talvez se nessa reunião tivessem comparecido também as estações do ano, as resoluções seriam diferentes. Tudo em seu reino é frívolo e artificial como o bronzeado de domingo. Não se faz amigos, não se encontram amores, tudo que se vê é fruto de miragem causada pela radiação do décimo terceiro salário e a chegada eminente do carnaval. Janeiro não tem árvore, não tem raiz, só pó.
É cheio de marra esse janeiro. Bate no peito para falar de suas posses, afinal, o Rio é só dele. E seguindo o pensamento vale refletir: São Paulo seria das águas de março?Existe uma magnética doida nesta lógica de estado e calendário pois o Rio e o Janeiro alimentam o tesão um pelo outro e chamam o verão para completar a suruba, cujos os filhos, somos nós, cariocas que temos a certeza de morar no melhor lugar do mundo mesmo sem conhecer o outro lado da rua.
Antes que soe contraditório, embora pareça ser, isento as praias em sua concepção natural. Nada tem a ver a ignorância surda das ondas e a benevolência das areias. A praia é o portal onde, regando com champagne, enterramos nosso pedidos, moedinhas e lentilhas, para, uma semana depois, deitarmos semi nus sobre eles. Na mesma areia entregamos nossa alma e oferecemos nosso corpo. O sagrado e o profano junto e misturado.
Quero que janeiro passe em galope e não deixe uma brisa sequer para balançar meu móbile apanhador dos sonhos. Deste mês, que tem o mesmo destino dos aeroportos e a mesma tristeza das estações de metrô, não ficará uma lembrança no porta-retrato, um bilhete colado na geladeira. Não porque os momentos de sol, sal e suor não foram importantes e sim porque todos os anos eles se repetem, repetem, repetem. Janeiros são sempre iguais.
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