Estou há dois dias em silêncio. Incomoda a mediocridade da minha vida e tento ver nela algo extraordinário que não tem. Me lembro dos hippies colombianos, com seus piolhos e cordões de miçangas e acho que são mais úteis nesse mundo que eu. Pelo menos não esperam um décimo terceiro salário ou suas férias para se sentirem livres. Eu sim. Voltei para meu berço esplendido, cheio de conforto e vencimentos mensais, tentando me restabelecer das máculas deixadas pela viagem. No corpo ficou tatuada a cicatriz de um sol asteca que não resistiu ao poder ultravioleta do próprio sol verdadeiro...como são fracos os deuses perante a verdade dos nosso dias. Na alma, uma vontade tardia de liberdade, ancorada pela paternidade, profissão e outras convenções sociais. Talvez quando o tempo exigir conforto para minhas artrites e artroses, me dê ao luxo de prestar atenção na marca do colchão, na janela em frente ao rio, no paladar sofisticado do porquinho da índia ao creme de milho ou preferirei travessias por cidades mágicas em vagões de luxo. Mas, por enquanto, tento esticar meus braços e abrir meus dedos até me misturar as muitas raízes e trilhas que confundem o mundo, tento ser mais uma artéria comum que recebe e devolve experiências simples e extraordinárias.
DIA 1 – OS EFEITOS E AS IMPRESSÕES
Nem o boletim reconfortante do comandante me tirou a idéia que algo acontecia de errado com o avião. Dentro do bucho das nuvens, aquela fagulha de aço, que resistia bravamente a pressão atmosférica, se mostrava vulnerável dentro da frente fria que estacionava em cima do Rio Grande do Sul. O fone, que eu quebrei de nervoso, cantava em um só ouvido músicas sem importância, enquanto o outro ouvia o barulho do vento nas asas e turbinas. “Como esse desgraçado por estar dormindo”, pensei quase em voz alta, ao ver meu primeiro companheiro de viagem dormir fazendo beicinho. O menino grande de alma simples havia soltado seus sonhos em gaivotas de papel que brincavam livres pelo vento enquanto eu me cagava de medo.
Depois de um estágio por Buenos Aires, onde pude revisitar sua elegância coberta de pó e cupim e trocar contatos em um bar que nunca mais vai existir com pessoas que nunca mais vão encontrar o guardanapo cheio de anotações que dei, chegamos em Cuzco de tarde, sem malas e com um livro em branco inteiro para contar.
Cuzco me lembrou Ouro Preto, me lembrou Santiago de Compostela, me lembrou Mangaratiba. Pequena e engolida pela curiosidade do mundo, adequou em seus prédios de arquitetura espanhola construída sob as ruínas da capital inca, os supermercados, lojas de camping, casas de câmbio e turismo, que municiam os muitos sonhos que iniciam ou se acabam ali. O povo, que ergueu com os músculos de seus antepassados a cidade chamada de “umbigo do mundo”, hoje está limitado a servir os forasteiros e morar no subúrbio cheio de barro e gordura. A nós, que não temos responsabilidade nenhuma sobre esta realidade, nos resta farejar as curiosidades para contar aos parentes ou confrontar as muitas histórias já contadas destas terras por outros viajantes. Vi logo de cara as riquezas do trabalho manual, seus mil badulaques irresistíveis, que contrapõem a natureza seca e sem ar da altitude andina. Queria comprar de tudo, mas, por ora, contentei com um chapéu. O menino de alma simples, não havia sido enfeitiçado pelo poder inebriante das cores e recebia tudo que via e sentia com total normalidade. Jantamos no terraço de um restaurante chique que nos apresentou a melhor comida entre as piores que iríamos experimentar. A essa hora, o efeito da altitude ainda era meu principal cicerone, com tonteiras repentinas e faltas de ar. Havíamos decidido não beber e vimos uma boate com gente muito doida, até para quem já está acostumado com noites e surpresas. Foi bom conhecer Marilu, tão simples e charmosa bebendo emoliente, foi bom conhecer seu subúrbio e o painel que conta a história dos deuses, mas aquele era o dia de irmos dormir abstêmios e deslocados.
DIA 2 – CITY TOUR E NIGHT ADENTRO
Difícil entender o que o guia estava falando. Não abria a boca e contava mecanicamente suas piadas repetidas sem tesão. Embarcar nos passeios prontos nunca foi meu forte. Me sinto um idiota pronto para ser enganado e explorado por turismólogos sem coração. Gente vendendo DVD, almoço buffet fora da rota, três feirinhas... as ruínas do vale sagrado?Existem, não nego, mas, sem as invencionices que se parecem com uma lhama, que se revelam mágicas sob a luz do sol e que as formações naturais rochosas são na verdade o rosto do inca observador, as ruínas milenares do vale sagrado se tornam apenas restos de uma história muito longe de ser contada com verdade.
Meu companheiro de viagem amolecia perante a vaidade e se deixava fotografar em poses desengonçadas. Em um destes cliques conhecemos a mineira americana que tinha medo de altura mas não tinha medo da vida. Foi fazer intercâmbio nos EUA e seu inglês livre de “Uai” e “trem bom” nos interpelava para fotos e comentários irônicos sobre o passeio. Não sabíamos que cinco dias depois estaríamos dividindo coxinha e planos de passeio de motoca na espera da ponte aérea em São Paulo.
Como já havíamos preparado tudo para o grande dia que começaria nossa caminhada e os efeitos da altitude pareciam ter abrandado suas patas sob o nosso organismo, fomos levados aos mistérios das ruelas de Cuzco, onde oferecem drogas e drinks grátis. Um, dois bares, e nos juntamos aos alucinados da noite anterior, tomando cerveja com gelo por não haver uma gelada em toda a cidade para vender. Quatro horas da manhã, um ônibus de bêbados carregava todos nós rumo a Mollepata.
DIA 3 – O PRIMEIRO PASSO
Gosto de começar as atividades um tanto quanto embriagado. Tenho facilidade de sentir as pessoas e o que me espera sem o peso do meu pessimismo habitual. Nos fundos de uma cantina o café da manhã foi servido e começamos a caminhada de cinco dias como se fôssemos visitar um amigo na outra rua, andando em grupinhos, todos de preto, praguejando as novidades que amanheciam conosco. Só me dei conta que era uma caminhada sem volta quando entramos na trilha mal cortada morro acima, nos livrando do asfalto e encarando a primeira subida. Lá em cima, onde uma vendinha parecida com aquelas que ofereciam água sanitária, chinelo havaiana e cachaça perto da minha casa, se podia ver esticando o pescoço, a montanha gelada de humantay. “É ali que vamos acampar” me disse um dos guias gordinhos esticado no chão descansando o cansaço que ainda viria sentir. Parecia tão longe e ao mesmo tempo tão possível. Neste meio tempo conheci Tati, uma americana cheia de dread e simpatia. Tinha couro de cabrito e gostava de se aventurar. Me contou do trekking com a mãe, falamos sobre Alex Supertramp e me senti dentro de uma manada cuja a raça era a mesma, e a busca por pastos verdes estava só começando.
Aos poucos as conversas se espaçaram, os grupos se transformaram em trios, depois duplas, mais adiante, voltavam a ser grupos. Não havia ninguém no comando, só a força que nos empurrava em direção a grande montanha de gelo. Pirambeiras, cachoeiras atrevidas que cruzavam o caminho, paredões de pedras afiadas, tudo que passava por nós era visto, fotografado e comentado. Preocupado em melhorar o diálogo com o meu próprio corpo, me isolei durante uma boa parte e pude ouvir ruídos quase surdos e cheiros tão estranhos para mim. Um deles era de uma plantinha esfregada nas mãos, que produzia frescor pulmão adentro. Me senti pleno, feliz com minha performance e gastava energia incentivando os mais cansados numa zombaria de profeta que falava com Deus, a natureza e suas forças. Pelo caminho que víamos de longe feito um cabelo enroscado no lençol, chegamos cansados e ruidosos ao acampamento onde um frio negativo nos esperava e as primeiras necessidades faziam os mais corajosos colocarem sua bunda em uma latrina suja e gelada. Nesta primeira ceia tínhamos a paz de sobremesa e tirando o ronco assustador do menino de alma simples que dividia comigo a barraca, poderia dizer que tudo terminou perfeito.
DIA 4 – ALUCINANTE E REVELADOR
O pior de todos. O assustador. O Dia D. assim todos encaravam o segundo dia. Quem não conseguisse poderia contratar desde já um cavalo. Dois não resistiram a tentação. Todo o bando caminhou rumo ao ziguezague que parecia proposital, para desnortear nossos sentidos, tornando o perto, longe. Nestas horas, as pessoas se mostram, se despem de casacos e convenções e passei a conhecer todo o grupo de uma vez só. Aqueles que dividiam uma folha de coca para mastigar e aliviar a pressão, outros que nos esperavam só para dar apoio, ou aqueles que subiram de carreira para ficar do alto bradando sua convicção solitária. Esta dupla carioca acostumada a beira da praia padeceu como nenhuma outra, sofrendo as angústias de um retardatário. Sentia pena do meu companheiro porque via nele o reflexo da própria penura. A trilha sonora que me acompanha em dias assim no ipod, se tornou um uivo dos ventos na janela quebrada, assustando meu pensamentos. Tive sensação de morte, tive delírios com notícias que vinham no vento. Tentava repetir a concentração do dia anterior mas uma imensa avalanche de fracasso me dominou. Era a falta de oxigênio no cérebro ou meu instinto competitivo pisoteado. Cinco passos, dez minutos de descanso. Ao terminar as idas e vindas mágicas ainda tínhamos uma outra reta interminável, onde víamos, lá em cima, as cabeças felizes comemorando a chegada. Gravei um vídeo pra mim mesmo, desisti, chamei o guia mas ele não me deu atenção. Esperava pacientemente metros acima com palavras de incentivo que ainda ouço antes de dormir.
De frente para nós, o Shalkantay se impunha com seus ombros largos, sem sequer nos olhar embaixo. Estávamos misturados as suas pedras e poeira e não éramos nada mais que isso, perante a sua grandiosidade maravilhosa. Apagaram da minha mente os últimos passos. Lembro do aperto de mão de alguém, do abraço quente da americana que já partia e o sorriso satisfeito do meu guia de coração tão grande. Eu e o menino de alma simples nos dividimos para agradecer o feito, empilhando pedras maiores e menores sobre barras de cereal que sobraram no bolso. Recuperei de súbito minha energia e o gigante de gelo agora me olhava da mesma altura, olho no olho, possivelmente satisfeito com a chegada da dupla.
Descemos apressados rumo ao vale, adentrando a vulva verde da mata. Na primeira parada dormi profundo observando o vôo parado do pássaro e as ovelhas que também seguiam como nós seu caminho pré marcado. Ainda tenho o nariz queimado pelo calor do sol que não esquenta. Sorte que o caminho fresco nos salvou de uma insolação. Eu e meu novo companheiro de aventura desfrutamos com tamanha vantagem sob os outros, as canções que tocava no meu aparelho e eu repetia em voz alta. Um pequeno gramado raspado na mata selvagem serviu de pouso firme para o grupo, muito mais íntimo e concentrado.
DIA 5 – CANSAÇO, MONOTONIA E UMA GELADA PRA ACOMPANHAR
Se as chagas da alma ficaram na montanha, outras apareceram no corpo. Um corte que pegava os três dedos do pé, acompanhado de bolhas nos dois calcanhares e uma fissura no dedão esquerdo, transformaram a caminhada mais simples em calvário. Por dentro daquela selva muda, silenciosa, onde nenhum animal se importa em marcar presença, arrastei meu tênis sujo, meu corpo sujo, meus pensamentos sujos até La Playa, nome do acampamento. O dia sem desafios e os poucos quilômetros deram brecha para exigências de homem da cidade, que depois de chegar cansado do trabalho, só queria banho quente e comida na mesa. Óbvio que não existia nada disso. Meu saco de dormir sumiu, a comida acabou antes da hora e a luz, para melhorar o dia, só veio da geladeira que guardava litros da cerveja mais gelada que tomei. Depois disso tudo andou depressa. Os jogos de truco, a lista de melhores filmes, o futebol contra os sulamericanos...a nossa caminhada voltou a ter sentido e mansidão.
DIA 6 – ÁGUAS E CAMAS CALIENTES
Hoje lamento não ter escolhido a caminhada completa mas tenho certeza que meus pés não agüentariam. A carona de van que nos encurtou alguns quilômetros trouxe alegria a cada raspão nos despenhadeiros na via. O dia começou burocrático e chuvoso. Molhou as roupas dentro da barraca e trouxe peso extra nas mochilas que, a partir de agora, éramos obrigados a carregar nas costas. Com novo objetivo a frente e uma enorme excitação em conhecer a cidade onde nos hospedaríamos com mais dignidade para esperar o dia final, trotei firme a frente do grupo arrastando o rapaz de alma simples comigo. Me doía não poder compartilhar com ele os devaneios que tenho sobre qualquer coisa. A prosa sem valor, as opiniões sem afirmação. Não conseguíamos um bom diálogo. Eu, livre das amarras sociais, praguejava turistas, achava e desachava, debochava e me irritava, ele sempre polido e conservador, mostrava a resposta certa que eu conhecia mas não queria ouvir. Pela primeira vez caminhamos para lados opostos mesmo estando indo para a mesma direção.
A chegada na cidade de Águas Calientes extrapolaram nossos sentidos. Agora tínhamos opção e não mais precisávamos andar pra frente. Ruas apertadinhas, danças típicas, churrasco ao ar livre, e parecia que tudo de bom no mundo caberia naqueles três ou quatro quarteirões. Depois do banho e conversas inconvenientes no vaso sanitário, vi o menino de alma simples agitado como nunca. Entendi que era seu coração. Depois de ligações para família e uma rápida visita a internet continuávamos opostos. Ele, recebeu amor gratuito vindo de longe. Eu, fiquei com a preocupação nas reticências deixadas pela mãe da minha filha, ao falar sobre um futuro próximo. Por isso acho que os mortos não fazem contato com os vivos. Eles não seriam tão burros em se preocupar com algo que não podem mudar. Eu deveria ter feito o mesmo e me isolado .Agora tinha meus problemas de caminhada e outros tantos de vida para levar a Machu Picchu. Precisava falar sobre o que ouvi ou esquecer. Infelizmente não tive com quem fazer e deixei que as distrações da noite me conduzissem. De posse a uma garrafa quente de cerveja, fui dançar com conhecidos, depois com estranhos, depois sozinho. Fui o último a chegar no hotel.
DIA 7 – CIDADE SAGRADA
As primeiras imagens que me vem a cabeça estão acompanhadas do sentimento de derrota. Um escadaria infinita cortava a estradinha onde, horas depois, turistas subiriam a cidade sagrada ruidosos e desatentos. A nós, caminhantes e interessados, era proposto o sufoco de chegar na frente a pé para garantir a entrada na montanha mais alta, considerada na entrelinha um privilégio. Por mais que subisse rápido sempre teriam adversários atrás e na frente. Meu companheiro, já íntimo das minhas limitações como ser humano, me sobrecarregava de culpa por ser tão competitivo. Porém sou grato a ele que me arrastou degrau a degrau, não me deixando para trás até mesmo nas horas que seu fôlego sobrava. Ali tive mais uma lição do corpo: não conseguiria chegar no ritmo dos outros. Passei a pular três degraus e descansar um, engarrafava o caminho, ouvia muxoxos mas fui leal aos meus limites. As muitas lanternas que iluminavam e procuram o reinicio da escadaria não sairão da minha cabeça nunca. A mochila caindo, o casaco desamarrando, as pilhas perdidas no mato, os adolescentes americanos que nos olhavam com estranhamento. Tudo ficou aqui na memória pra sempre e só ganhou proporções minúsculas quando depois de pegar o número 319 entrei na cidade sagrada dos incas.
Diferente do passeio pelo vale sagrado, Machu Picchu não precisa de guias para ser inesquecível. Basta olhar sua divisão, seu equilíbrio em um pitoco de montanha que ficou escondido dos espanhóis e de onde, muitos dos incas, se protegeram da matança geral. De baixo não se vê Machu Picchu, de cima se vê a vida passar. A cidade não pretendia ser paraíso, possuía escravos e hierarquia, mas era genuína em sua concepção. Andamos por entre as casas, o túmulo do rei, os templos ao Sol, a cobra, o puma e ao condor, que formam a cruz andina. Mas ao viajar, lá no fundo, também guardo um desejo simplório de estar no mesmo lugar onde aquele rapaz do livro tirou uma foto e me mostrou em sua enciclopédia quando eu ainda era criança. Cheguei ao topo e, mesmo achando que merecia chorar, deixei a emoção condensar e aquecer meu coração. Agora estava realizado, pleno, havia chegado no meu objetivo final. Acho que faltou um abraço geral, um grito de porra, caralho, ou qualquer coisa que se traduza em alegria. Mas também não me incomodo de tê-lo guardado aqui dentro, para qualquer emergência.
DIA 8 – SANGUE E LEMBRANÇAS
Nada de vazio. Presentes, tatuagem e despedida. Era assim o último dia mas não foi assim que aconteceu. Depois de sangrar na mão do inexperiente e empolgado tatuador, perdi minhas forças e iniciei um processo de infecção que ainda me persegue. Nem as investidas das gringas, nem os novos acessórios para os shows, tudo perdeu a graça quando o estado febril quebrou minhas pernas e não conseguia mais me divertir. Como o pequeno príncipe fui picado pela serpente no final da história, na tentativa de tornar eterno um momento que já ficaria pra sempre nas lembranças. Meu amigo de alma simples mostrou que sua ausência de palavras poderia ser compensada por atitudes de pai, irmão, que carrega as mochilas e minimiza a gravidade da ferida purulenta. Assim cruzamos os céus da América do Sul, chegamos em São Paulo e viemos parar aqui, enfiados em nossa rotina, enquanto uma nova viagem não nos salva.
Um comentário:
Como sempre, não me decepcionou nas palavras... Claro que narrando não consigo decifrar os mínimos detalhes de cada sofrimento de chagas e feridas, cicatrizes que marcarão uma história, que ficará na memória, e será contada aos seus posteriores.
Mas já dá uma brecha das coisas que posso ouvir, vindo diretamente da boca, e dos olhos... Até me deu vontade de conhecer as ruinas,mas sem tatuagens corroídas com febres e dores. Rs
Isso só fez aumentar a invejinha branca que eu tenho das suas viagens... Mas eu apenas comecei a ter minhas coisas agora, e em breve eu chego lá!!! Rsrs
Aaaaaaaaaah, que saudades de você e das suas histórias!
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