quinta-feira, 26 de julho de 2007

ADOTE UM CARRO VELHO

Quem dirige sabe: todo carro tem alma. Mesmo que seja alma penada. Quando passo na frente do Ceará Automóveis eles me olham com faróis baixos, mendigando atenção. Estão abandonados, fadados ao esquecimento. Porém a esperança se renova: Se as pessoas estão sendo capazes de usar calça legging e ouvir ursinho blau-blau novamente, quem sabe andar de Fiat 147 volte a ser onda?

Para os que estão engajados neste movimento de ressocialização das banheiras e caixote com roda ou que simplesmente são simpatizantes, aperte o cinto – ou, se o encaixe estiver com defeito, deixe ele por cima do corpo, só pra polícia não encrencar.


TERMINOLOGIA - Antes de qualquer coisa esteja por dentro da linguagem. Carros com Injeção eletrônica e direção hidráulica são heresias por aqui. Peça um fusca joaninha ou fafá de Belém ou até um gol chaleira ou batedeira. As peças também acompanham o modelo, por isso prepare-se para encomendar uma cebolinha, um brinco de crioulo ou focinho de porco na loja.

DESIGN E TECNOLOGIA – Uma preocupação a menos: quase todos são quadrados, portanto concentre-se nas cores. Estereótipos como brasília amarela e fuscão preto não estão com nada. Prefira tons ousados como azul-cor-de-geladeira e abóbora-siri-cozido.

INVESTIMENTO – Carro velho é fácil de negociar. Na loja, o décimo terceiro cobre, porém a melhor barganha é comprar de um amigo podendo pagar as parcelas com bicicleta de corrida sem pneu, impressora com defeito e gaiola de passarinho sem o bicho dentro.

ACESSÓRIOS – Qualquer peça você encontra, menos as originais. Portanto a ordem é soltar a imaginação. Numa emergência substitua tanque por garrafa pet, cabo de aço por verganhão, gasolina por conhaque. Faça uma pesquisa rápida de mercado e também adapte acessórios extras, agregando valores ao veículo. Aos poucos você vai perceber que criou modelos exclusivos como CheVectra, MonzAstra e FusKa. Status garantido.

CONFORTO – Não tem muito, porém compensa na hora da pegação. Primeiro: fica fácil pular para o carona alegando que o banco não reclina mais, sendo muitas vezes uma verdade. Segundo: Qualquer dano no estofado, no retrovisor ou amasso do caput é barato consertar. Terceiro: o desembaçador está sempre quebrado e a privacidade garantida.

SAÚDE – De três em três meses ele pára de funcionar te fazendo caminhar obrigatoriamente ou esbandalha peças inimagináveis, te colocando em posições constrangedoras, bem parecido com pilates. Por último, charanga que se preze sempre pega no tranco, o que te deixa sarado de empurrar, principalmente se estiver na frente da boate ou na hora do rush.

O último foi um Escort 89 vermelho-cereja que piscou pra mim. Já vem com motor refeito e muitas ausências de série, como maçaneta, bateria e esguicho d’água. Já foram quatro até hoje, afinal como diria meu pai, carro-velho só te dá uma alegria maior que a hora de comprar: a hora de vender.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

SENTIMENTO COLETIVO

*Minha primeira crônica, escrita exatamente há 5 anos atrás.


Cheio daquela multidão suarenta, ameaçadora da tranqüilidade alheia que sarra e é sarrada, o coletivo rebola, treme, bagunça nossa relação com a condução do dia-a-dia. Mais que meio de transporte, ele é palco, é praça, é pedacinho da vida para muita gente. Não existe opinião pública que exclua a de dentro dos ônibus. Naquela de mentirinha, formada por quem diariamente lê jornal, destrincha o caderno de economia e discute sobre o plano de governo dos candidatos a presidência, não existe espaço para erro, ninguém acrescenta nada, no máximo, diverge opinião. Ao contrário do vox populi, mais conhecido como opinião de geral. “Anda geral dizendo”, assim começa todo caô. No entanto a gente acaba acreditando, ora por falta de saber mesmo; ora por ceder a insistência. Pouco importa que seja uma fórmula da bomba atômica, DNA, estratégias, geral sabe de tudo. Alguém diz que viu, que tem parente que estava lá, outro jura pela felicidade dos filhos, cada um tentando convencer de sua maneira. Os mais assustadores são os loroteiros de morro, reféns das inversões de valores, que falam dos bandidos como as tietes de seus ídolos. “Tinha que vê Elias, ali na banguela, trepado com uma bereta, escoltado por Boquinha e Leitão”. É sinistro amigo. O amor também pega carona nessa caravela contemporânea e as metades andam juntas, apertadinhas. Principalmente quando a garganta coça e o dinheiro da passagem paga a gelada. Passar os dois agarrados no mesmo espaço da roleta, também é uma forma de amar. E se ama muito, duas, três pessoas... a fidelidade está entre o indicador parando ônibus e a cigarra laranja soando a despedida. Se pula a roleta, ou melhor a cerca, inclusive nos frescões executivos de vidro fumê. Nele se ama no colo, de lado, com a cortina fechada e até se ama sozinho, espiando e imaginando pelas janelas da Zona Sul. No ônibus muitos amam calado, se olham por entre os reflexos dos vidros, desafiando maridos ou esperam pacientemente no último segundo da partida, o agradecimento de rabo de olho. São perseguições de mãos, sorrisos e carinhos gratuitos, declarações de amor quase desapercebidas. Assim foi o trocador que observava a menina todo dia, e quando ninguém viu, chamou o ambulante para oferecer anonimamente a balinha do coração a ela. A moça iludida procurou seu sonho, olhou para trás e passou a vista direto do galã, que nem se importou, valeu ser o admirador sem rosto. Desdigo quase tudo que disse ao comentar de viagens longas na condução. Os relacionamentos são monogâmicos, se constitui outra família. Na sexta sempre tem pagode, a celebração ao fim de semana, o motorista pára certo no botequim que a rapaziada gosta de calibrar, também fazem tática, guardando o lugar para os amigos. São personagens que falam alto, xingam, liberam toda opressão sofrida durante o dia. O pessoal da limpeza, a menina do sacolão, o segurança, estão todos reunidos espantando a descrença por dias melhores. Parecem crianças cortando a rotina numa excursão barulhenta . E chamar de família não é exagerar, já tive presente em aniversários de trocador, fiscal e passageiro, com direito a bola, salgado, bolo e parabéns. Tudo negociado na vaquinha, sorte de quem faz aniversário no começo do mês quando dá para arrancar mais dinheiro da galera. Um coro para quem se despede reforça a aliança coletiva e diz nas entrelinhas “amanhã tem mais” e apesar de querer paz para admirar a escuridão das ruas e descriminar a turba, dá uma inveja quando desço sozinho na Estrada do Monteiro e nem ouço, pelo menos, tchau.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

EU ESCREVO PRA VOCÊ. VOCÊ ESCREVE PRA MIM

Eu e Liu Brito topamos o desafio de inverter os papéis. Cada um devia escrever sobre a presença do sexo oposto dentro de sí. Eu encarei a meia-calça, ela calçou a botina. O resultado você vê agora...



SEJIS HOMI! Por Liu Brito

Invadindo um blog de menino para tentar escrever alguma coisa que não choque o público do meu querido e talentoso amigo Aru.
Foi assim que resolvi escrever sobre as vezes que paro diante do espelho e digo:
-Nossa, tô parecendo um homem...
Não me entendam mal, na aparência e no gestual sou tão feminina que até pareço uma bicha. Estou falando mesmo de comportamento.
Meu cabeleireiro diz que sou mais homem que ele, o que não é muito difícil, mas ele justifica dizendo que sou bem humorada demais pra ser mulher. Ora bolas, as mulheres não são mal humoradas, levam esta fama por causa da maldita TPM. Experimente ter uma maré de hormônios, que muda de acordo com a lua e depois falamos sobre humor regular.
Bem, mas verdade seja dita, às vezes sou muito homem mesmo e por isso não tolero homem mulherzinha, esses que fazem charminho pra ligar, só ligam na terça, porque se ligar no Domingo vai parecer que está apaixonado, me poupem.
Outro exemplo de Homem mulherzinha é aquele tipo que liga no meio da noite pra ex-namorada porque bateu saudade e inventa uma desculpa esfarrapada qualquer, ah, seja homem meu filho.
Sou muito homem pra ligar pra quem eu quiser e fazer um convite. Azar dos que dizem não. Afinal, homem que é homem não tem medo de porta na cara.
As mulheres conquistaram o sagrado direito de dizer o que querem e como querem, coisa que os homens já fazem há milênios, então antes que eu me esqueça, as mulheres gostam sim de sexo oral, desde que bem feito, ok? Pra fazer de qualquer jeito, melhor não.
E por falar em ser homem, de uma vez por todas, acabou aquela história de mulher achar que todos os homens podem ser o potencial homem da sua vida. Hoje em dia, as mulheres já conseguem colocar os homens em suas devidas gavetinhas. Cada um na sua. Tem gaveta para amigo, gaveta para potenciais, gaveta de ex e principalmente, gaveta para equilibrador hormonal, isso mesmo, porque toda mulher precisa de um.
Antes que eu me esqueça, mulher quer ser respeitada, em todos os aspectos, então por favor, cuidem bem das suas cuecas e pensem muito antes de puxar uma mulher pelo braço sem tê-la levado pra jantar, depois até pode e pelo amor de Deus, mudem a ordem da entrevista, qual seu nome, o que você faz e onde você mora, já basta no senso.
Então fica certo assim, me dá seu telefone e se eu quiser ligo logo no Domingo, se eu não ligar, esquece. Minha cor predileta? Verde. Livro? Vários, inclusive o pequeno príncipe (o Aru também leu). Bicho nojento? Cobra, tolero as baratas. Time? Vitória. Não tenho diário e adoro ser solteira, ser casada e namorada também, tudo depende de com quem.
E aí? Vai encarar?

mais textos da autora no blog www.todaprosa.blogspot.com

MENTIRAS DE SALTO ALTO por Aruanã Bento

Por dentro de um grande homem existe uma grande mulher.
É ela quem cochicha no meu ouvido os compromissos marcados duas semanas antes, o presente certo e as palavras secretas que só podem ser ditas quando as mãos se tocam pela primeira vez. Moramos no mesmo corpo mas não é sempre que a vejo. A última vez foi na despedida de um amigo que acabei chorando no saguão do aeroporto. É minha porção mulher quem brinca com o cachorro, me livra invariavelmente do mau-humor, e consegue, nas formas das nuvens ou na espuma do shampoo, descobrir desenhos, imaginar coisas.

No dia-a-dia de redator publicitário que preciso tirar a gancho minha criatividade, a porção feminina me salva e busca em sua habilidade de pensar mil coisas e assimilar mil palavras, associações fantásticas, que se transformam em títulos impossíveis de não ler. Foi com ela que também descobri como o azeite valoriza a comida, como o vinho seco pode ter tanta complexidade em aromas e texturas, como identificar as pessoas através de seu signo e, principalmente, como o sexo oral se torna um grande coringa se estiver situado entre a paciência de um monge e a obediência de um cão-sem-dono.

Olhando assim fica difícil de imaginar, mas até a porção mulher é capaz de mentir.

“Você gostou da minha unha?Ah, que fofo!Tenho tatuagem sim, adoro. Nossa temos muito em comum. Podemos marcar, adoro jantar no japonês. Cara, você é muito especial, me amarrei na sua...como amigo”.

Desde que me entendo por gente procurei fazer coisas que realmente tocassem as mulheres, que estivesse dentro dos seus sonhos mais distantes. Acreditei que elas gostassem de homens com senso de humor, com conteúdo e sensibilidade para percebê-las como nenhum outro. Tolice. Assim como todas as outras, minha porção mulher passou a vida me mostrando o cara que ela pretendia gostar e não quem ela realmente gostava.

Por isso, decidi faz tempo não dar ouvido a minha voz feminina interior e, aos poucos, silenciou-se. Hoje não me procura mais.

Sozinho, invado noites atrás de diversão e as vejo batendo cabeça, ou como diria Liu Brito, na vitrine. Todas seguem a mesma tática pelas mesmas finalidades e seguem trocando blefes por beijos. O primeiro e mais duro golpe que aprendi foi que, para conquistar uma mulher é preciso, antes de tudo, ignorá-la. Depois de milênios presa dentro das cavernas, as moças conquistaram seu direito de caçar mas ainda não sabem usá-lo: são fantoches nas mãos masculinas calejadas na arte da conquista. Andam, passam, esbarram, olham, insinuam, como cardumes que disputam quem será comido primeiro pelos tubarões.

Sem minha porção mulher me olho no espelho e me sinto um nômade que usa, gasta uma terra e depois a abandona, mas tenho a convicção que não poderei mais reencontrá-la sozinho. Preciso da cumplicidade de alguém, que saiba dar colo e ganhar colo, que aceite convite e também os faça, que me traga elogios e críticas novas, que me surpreenda com girassóis em um dia de chuva. Alguém que saiba rir de si mesmo e não se importe em anoitecer na Lapa e amanhecer no Arpoador. Alguém que não dance apenas para os outros, que tenha ambições profissionais, pessoais, sexuais e, principalmente, que goste de si próprio. Quem sabe assim uma dia eu acorde e volte a ouvir no meu ouvido novamente uma voz sussurrando: “Acorde mocinho. Você precisa estar bem bonito para reencontrar o amor da sua vida”.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

DEVANEIOS ENTRE PORRES E PALAVRAS

Troquei o computador pelo papel de mesa. Isso é grave. Mas, desde criança, amanheço com a noite, escureço com o dia e só o zumzumzum dos bares é que me põe pra dormir. O garçom daqui nem repara mais. Passa por mim e, com os olhos compridos, tenta decifrar esta letra engalfinhada que fui talhando com muita preguiça e desprezo. Tenho uma teoria definitiva sobre isso: quem escreve muito tem letra feia. A intimidade com suas próprias palavras é tanta que bastam três ou quatro riscos, com ponto ou acento para estar formada uma frase. Deus que me livre dos grafologistas. Terão mais pra dizer sobre mim que um pai-de-santo.

Um dia, o dono do boteco sentou na minha mesa. Pediu um slogan, uma chamada ou "sei lá qual é a porra deste nome", me disse. Antes que terminasse de contar a história do novo empreendimento, rasguei um pedacinho da folha e, com toda vaidade e soberba de um publicitário, dei escrito um posicionamento pra ele. Falei: “Você vai ficar rico com isso. Pague pelo menos minha conta”. Ele gostou, sorriu e me serviu uma dose do conhaque que carrega debaixo do braço. Me senti Pablo Picasso nas românticas noites de Montmartre. Aliás, a noite é o contraste ideal para quem quer se destacar dos mortais. Aqui mesmo, em pé, de costas para mim, conversando com uns outros dois, está André Serrote, escritor quase famoso, de gestos e riso contido. Do seu lado, Benac, o mais baixinho, músico virtuoso que se relaciona com seu violão como um amante: sozinho, no escuro. Por último, Doca, poeta gaiteiro e apaixonado, que recita em voz alta e rasga suas obras, dando um ar de expectativa e ineditismo ao seu personagem. Não os telefono e nem mesmo sei se são estes seus nomes verdadeiros, mas sempre os encontro. Gente nobre como essa se reúne assim, no meio da semana, nesta varanda de chão de ardósia, com telhas coloniais e toldos remendados, pendurando contas e trazendo luz com sua áurea. Depois de insistirem para eu os acompanhar em uma seresta na rodoviária, saíram em bando como andorinhas. Para eles, sou um anjo caído, pois vendo minhas fagulhas criativas para a máquina capitalista do mercado. Nem ligo, mas escondo debaixo da cadeira uma inveja imensa da maneira particular que olham para a vida.

Tinha abandonado estes meus manuscritos por uns minutos para atender um olhar interessado. Com a testosterona descontrolada quase o perco: a pequena derrubou seu Martini, batizando tudo que pôde. Depois de me secar, fui obrigado a molhar o dedo em uma poçinha e oferecer à ela. Era um teste que se aprende com a vida. Se ela chupa, quer sexo. Se ela morde e sorri, quer apenas companhia. Ela se afastou, me deixando com o indicador no ar, apontando para o vento, enquanto seguia rebolativa rumo ao banheiro. Faz parte. Aprendi a deixar meu coração em ponto-morto e passei a curtir os blefes. Telefones que nunca se atendem, promessas que nunca se cumprem e beijos que nunca chegam na boca fazem parte do repertório, assim como o jogo inverso, onde as mais recatadas das moças, com suas saias no meio do joelho e blusas sem decote, perdem o juízo, cheias de tesão por uma ou duas músicas cantadas olho-no-olho.

Retomo a escrita começando uma brincadeira solitária. Recolho com a orelha em pé as frases soltas dos outros freqüentadores e tento montar algo interessante com isso. Todo padre deveria atender seus fiéis aqui, pois nunca vi lugar para inspirar tantas mentiras e confissões. Ouço falar de semelhanças, de almas gêmeas e viajo sem querer para as lembranças de antigos relacionamentos. Elas moram entre o bem e o mal, entre a certeza e o risco, o prazer e a dor, como dormir no vento sem camisa. Escrevo seus nomes, um a um, e tento estabelecer um padrão, o possível perfil da minha próxima cúmplice. Chego a apenas uma conclusão: tá na hora de ir embora.

As portas do bar se arriam com a lua mingüante e ainda tenho a difícil missão de chegar em casa. Mas não antes de lembrar a última filosofia barata: criança pequena e homem bêbado, Deus protege.