terça-feira, 14 de setembro de 2010

METABOLIZANDO O AMOR

Atrás de suas lentes cor de mel existia uma verdade quando dizia me amar. Eu sempre acreditei que esta era sua intenção. Meu silêncio a fazia desviar o olhar, na momentânea falta de reciprocidade. Mal sabe ela que a amei, desde o primeiro sexo, desde o primeiro riso de bêbado. Nunca a disse porque minhas palavras em sua sopa de letrinhas se embaralhavam e acabavam por ganhar outro significado. Aliás, foram quatro meses onde nossas freqüências se atropelavam e as discussões ganhavam conotação de duas rádios piratas disputando o mesmo canal.

Assim como a morte de uma fada apaga uma estrela do céu, acredito que Deus castigue quem negue uma paixão. O meu calvário foi me interessar por situações impossíveis onde nem o estudo do genoma daria jeito. Comecei a ter gosto estranho pelo adverso, a admirar o paladar do pecado, me viciei nos venenos mais salgados e, numa das manhãs, me vi incapaz de viver com o coração em paz. Pelo sistema de câmeras da consciência dá pra notar o quanto crio meus próprios monstros e medos. A menina das lentes de mel surgiu assim.

Onde hoje é só terra arrasada plantei com as mãos algumas mudas de esperança. Trouxe para dentro da roda uma personagem de outra cor e outra forma, que causou inveja e espanto. A minha menina tinha um poder intocável e seu farol alto cegava toda as outras belezas. Nem nos momentos de fúria deixei de admirar sua natureza perfeita. Mas logo o tecido adiposo da vaidade se instalou em nossa relação, deixamos espaço para a voz alheia e tudo começou a terminar.

Lamento não ter amado com o coração e sim com o fígado. Explico: amar com o coração é jogar tudo numa enorme sala e deixar a panela de pressão gritar pelo seu peito, sentir a temperatura mudar e o sangue cozinhar. Amar com o fígado é metabolizar, filtrar e condensar os sedimentos numa tentativa de descobrir o que é vitamina e o que é excremento. Éramos tão diferentes, tão poderosos e tão amados pelos nossos que seria impossível equalizar os batimentos nessa entrega juvenil. Percebi que éramos amantes e amigos de verdade somente quando estávamos sozinhos, quando os instintos trocavam nossas palavras por afeto e o silêncio do quarto descia seus lençóis sobre nós. Sinto uma saudade chuvosa quando lembro dela tão à vontade, sem público, sem dizer nada, vestida para dormir ou comprar pão. Esta era a minha menina das lentes de mel.

Nosso projeto de amor perdeu seus nutrientes pela minha implicância, pela sua vaidade e pela vida que escolhemos levar. Talvez ela necessite de um jardineiro para, todos os dias, regar seus jardins. Talvez eu precise de alguém que pense somente em aproveitar a viagem do meu lado. A dois dias suas mãos fugiram das minhas deixando marcas de ciúmes e acusações levianas. Não tive mais forças para segurá-la perto de mim e agora me abano no vento como uma bandeira sem navio, sem mastro e sem propósito. Espero que a minha filha, com sua fragilidade cativante, me ensine a ser novamente subserviente aos caprichos femininos e um dia eu compreenda porque, todas as vezes que a menina das lentes de mel entrava no meu carro, me servindo do seu melhor sorriso, perguntava o porque da cara de bobo. Talvez o amor tenha que ser sempre acompanhado de elogios fartos ou talvez, por ver somente sua própria imagem refletida nas minhas retinas, ela nunca tenha lido aquilo que meus olhos queriam dizer.