quinta-feira, 13 de março de 2014

CARRAPATO DE DEUS

Fizeram pouco caso da ressurreição do Guto, porra. Só porque era terça-feira de carnaval não houve sequer um smartphone pra registrar quando ele levantou do caixão, com aquela cara de espanto, no meio tantas flores. A notícia espalhou feito confete, mas no meio de tanta fanfarra e cerveja, ninguém acreditou. Parece piada. Se tornou piada. Guto, que agora vivia feliz da vida nem se importou com isso. Tinha como testemunha sua mãe e sua mulher, as únicas que velavam o corpo na sala de casa enquanto a beija-flor desfilava seu carnaval pragmático na tv.
- Agradece a São Lázaro e a novena que sua mãe fez. Não a mim.
Com o prato de comida na mão, sentado no sofá, Guto nem ouviu Brisa responder seus arroubos sobre a vida. Era a reprise do jogo do mengão na Libertadores, mas a cada gol, o ex defunto gritava com o locutor. O caixão, que acabou sendo comprado pela funerária novamente pela metade do preço, ainda jazia na sala, ao lado da mesa de jantar, quando o rapaz apareceu perfumado após longo banho, com a blusa vermelha de botão, calça jeans justa e barba feita. Preciso beber com meus amigos. Aquela cambada nem deu as caras por aqui. Não terminou a frase quando já havia batido a porta e saído. Sentia-se renovado, como se tivesse trocado de pele. Quanta resignação nos últimos anos! Parou de beber, parou de fumar, o pau não ficava em pé, não escovava mais os dentes e as unhas também cresciam livres. Eu ia morrer cacete, pra que vou me preocupar com isso?  Guto comemorou com seus amigos mais íntimos. Depois, com os menos íntimos. Depois, com o pessoal da repartição e o pessoal do bairro. Mas foi um desconhecido, amigo do amigo, que esticou a carreira de pó, na mesinha de cimento, onde os aposentados exercitavam seu cérebro toda manhã. Por que não? Inspirou tudo com a mesma gula de viver de sua nova realidade. Sabe-se lá o que é morrer, pior ainda, voltar a viver? Talvez não fosse sábio ir ao médico e ignorar o que havia acontecido para seu câncer no sangue curar de bate-pronto, mas por outro lado, o que os doutores falariam se eles mesmos haviam desenganado o paciente? Seria um conforto para a alma entregar-se a orações, mas os ensinamentos do pai ateu, comunista, não permitiam sequer admitir a presença do Divino ao seu lado. “Contra a força não há resistência”. Era seu lema para todos os assuntos de botequim que não concordava.
Brisa não saiu no quarto naquela manhã. Ou melhor, naquela semana. Guto atentou para a questão deitado no sofá. Seguia um ritual. Abria os olhos devagar, mapeava tudo o que via, conferia a respiração, dava um sorriso e estava pronto para mais um dia. Foi até a porta e abriu lentamente. Sua mulher, sob a meia luz da cortina, estava deitada, coberta pelo lençol que sacudia com o ventilador de teto rodando preguiçosamente. Como estava feia. De camisola verde água, como um bebê velho. Dormia com as mãos juntas e seus dedos longos se fechavam feito concha no travesseiro. Sentiu vontade de voltar para a sala mas Brisa acordou. Falou lentamente de afazeres da casa, tentando parecer que não eram cobranças ao marido. Falou do que ainda havia na geladeira, das plantas sem regar e da infiltração do banheiro. Guto ouvia tudo ao longe pois ao ajoelhar-se na beira da cama para ver sua mulher de perto, reencontrou uma velha amiga. Nos fundos dos olhos de Brisa a Morte se escondia. Tentava não encará-lo mas como não reconhece-la se era a mesma que morava no espelho de todas as manhãs, antes da hemodiálise? Brisa gozava de perfeita saúde mas a Morte, com sua perspicácia eterna tinha o tempo a seu favor. Enquanto se afogava em fúria ao ver marido tão cheio de vida, desejando que este ainda estivesse moribundo e dependente de sua compaixão, a mulher deixou uma porta aberta para que a morte, este carrapato de Deus, se instalasse no seu peito. Para ela mastigar amor ou saúde tanto faz. Importante é manter o equilíbrio entre a felicidade e a frustração entre os vivos.


 *Para Gustavo que, com seu eterno otimismo, me tirou da letargia.