Fizeram pouco caso da ressurreição do Guto, porra. Só porque
era terça-feira de carnaval não houve sequer um smartphone pra registrar quando
ele levantou do caixão, com aquela cara de espanto, no meio tantas flores. A
notícia espalhou feito confete, mas no meio de tanta fanfarra e cerveja, ninguém
acreditou. Parece piada. Se tornou piada. Guto, que agora vivia feliz da vida
nem se importou com isso. Tinha como testemunha sua mãe e sua mulher, as únicas
que velavam o corpo na sala de casa enquanto a beija-flor desfilava seu
carnaval pragmático na tv.
- Agradece a São Lázaro e a novena que sua mãe fez. Não a
mim.
Com o prato de comida na mão, sentado no sofá, Guto nem
ouviu Brisa responder seus arroubos sobre a vida. Era a reprise do jogo do
mengão na Libertadores, mas a cada gol, o ex defunto gritava com o locutor. O
caixão, que acabou sendo comprado pela funerária novamente pela metade do
preço, ainda jazia na sala, ao lado da mesa de jantar, quando o rapaz apareceu
perfumado após longo banho, com a blusa vermelha de botão, calça jeans justa e
barba feita. Preciso beber com meus amigos. Aquela cambada nem deu as caras por
aqui. Não terminou a frase quando já havia batido a porta e saído. Sentia-se
renovado, como se tivesse trocado de pele. Quanta resignação nos últimos anos!
Parou de beber, parou de fumar, o pau não ficava em pé, não escovava mais os dentes
e as unhas também cresciam livres. Eu ia morrer cacete, pra que vou me
preocupar com isso? Guto comemorou com
seus amigos mais íntimos. Depois, com os menos íntimos. Depois, com o pessoal
da repartição e o pessoal do bairro. Mas foi um desconhecido, amigo do amigo,
que esticou a carreira de pó, na mesinha de cimento, onde os aposentados
exercitavam seu cérebro toda manhã. Por que não? Inspirou tudo com a mesma gula
de viver de sua nova realidade. Sabe-se lá o que é morrer, pior ainda, voltar a
viver? Talvez não fosse sábio ir ao médico e ignorar o que havia acontecido
para seu câncer no sangue curar de bate-pronto, mas por outro lado, o que os
doutores falariam se eles mesmos haviam desenganado o paciente? Seria um
conforto para a alma entregar-se a orações, mas os ensinamentos do pai ateu,
comunista, não permitiam sequer admitir a presença do Divino ao seu lado. “Contra a força não há resistência”. Era seu lema para todos os assuntos de botequim que não concordava.
Brisa não saiu no quarto naquela manhã. Ou melhor, naquela
semana. Guto atentou para a questão deitado no sofá. Seguia um ritual.
Abria os olhos devagar, mapeava tudo o que via, conferia a respiração, dava um
sorriso e estava pronto para mais um dia. Foi até a porta e abriu lentamente.
Sua mulher, sob a meia luz da cortina, estava deitada, coberta pelo lençol que
sacudia com o ventilador de teto rodando preguiçosamente. Como estava feia. De
camisola verde água, como um bebê velho. Dormia com as mãos juntas e seus dedos
longos se fechavam feito concha no travesseiro. Sentiu vontade de voltar para a
sala mas Brisa acordou. Falou lentamente de afazeres da casa, tentando parecer
que não eram cobranças ao marido. Falou do que ainda havia na geladeira, das
plantas sem regar e da infiltração do banheiro. Guto ouvia tudo ao longe pois
ao ajoelhar-se na beira da cama para ver sua mulher de perto, reencontrou uma
velha amiga. Nos fundos dos olhos de Brisa a Morte se escondia. Tentava não
encará-lo mas como não reconhece-la se era a mesma que morava no espelho de
todas as manhãs, antes da hemodiálise? Brisa gozava de perfeita saúde mas a Morte,
com sua perspicácia eterna tinha o tempo a seu favor. Enquanto se afogava em
fúria ao ver marido tão cheio de vida, desejando que este ainda estivesse
moribundo e dependente de sua compaixão, a mulher deixou uma porta aberta para
que a morte, este carrapato de Deus, se instalasse no seu peito. Para ela
mastigar amor ou saúde tanto faz. Importante é manter o equilíbrio entre a felicidade
e a frustração entre os vivos.