segunda-feira, 2 de maio de 2011

O VENENO DE MIRANDA

Miranda raspava os restos da sua quentinha no lixo da cozinha, rompendo o silêncio. Outros vigilantes almoçavam debruçados na bancada, concentrados no mastigar de pensamentos soltos. O dia cinza tornava o lugar aconchegante pelo calor dos mini-fornos em ação. Seu recipiente de alumínio, que neste dia tinha abóbora cozida e carne seca de mistura, era inadequado comparado aos mais modernos, com divisórias e tampas herméticas. Mas Miranda era tradicional e não se importava em parecer ultrapassado. Tanto que não abandonava sua pochete, ou capanga como gostava de se referir. Impunha um certo respeito por parecer que este tem porte de arma e carregava seu trabuco a tiracolo. Não cansava de contar aos sobrinhos que era confundido como papamaique. O vigilante um dia sonhou ser fuzileiro, bombeiro, polícia civil e ser responsável pela entrada e saída dos carros na fábrica quando já passava da metade da vida lhe parecia razoável. Depois de raspar quase toda marmita no lixo, alguém o interpelou.

- Quanto tiver sem fome assim, passa pra cá que eu como.

Não era dado ao desperdício mas desde as primeiras horas estava tomado por uma preocupação inédita. Virou-se de costas e enfrentou a passagem entre as cadeiras. Pouco mais de 30 passos. Esticou o primeiro pé concentrado, logo o outro. E foi cadenciando seu andar intermitente. Parecia ter conseguido fingir normalidade mas quando virou na porta pôde ouvir muxoxos e zombarias. Sentiu alívio quando chegou ao seu posto, onde ficava de pé dentro da cabine acionando o botão do portão. Esteve ali imóvel durante todo o tempo e esqueceu sua preocupação que só veio à tona quando o rádio PX tocou e uma voz conhecida do outro lado o relembrou da rodada de carteado, no trailer embaixo do viaduto.
Não poderia ir, mesmo sabendo que havia deixado 50 pratas em aposta. Gostaria de ir direto para casa, deitar na cama sem dizer uma palavra e fechar os olhos, com esperança de que no dia seguinte tudo voltaria a sua normalidade. Mas o trailer era caminho obrigatório e uma angústia estacionou no seu estômago. Pensou em uma saída tão logo abriu o portão.

Os mesmos que almoçavam em silêncio eram capazes de fazer arruaça de crianças no recreio. Espalhavam-se pela calçada em volta do trailer, revezando no jogo de baralho. Um noticiário de boletim policial vindo da caixinha de som dava o tema das conversas. Falavam de suas façanhas, mortes espetaculares, tipos de arma e mulher. O monza vinho de Cardoso parou e Miranda chegou de carona. Seria estranho pegar carona pela distancia ridícula e sua idéia inicial era que pudesse ir direto para a estação de trem e embarcar para casa. Esqueceu-se que Cardoso, apesar de não jogar, tomava sua talagada de conhaque antes de pegar a estrada. Distraídos em suas jogatinas e causos fantásticos não fizeram qualquer comentário por horas. Já estava escuro e a lâmpada esticada com cabo de vassoura mal conseguia clarear a mesa quando Fraga disparou sua ofensa após se eliminado do jogo.

- Pelo menos não sou quem anda rebolando. Só pode estar usando calcinha.

Seu olhos concentrados em Miranda e o queixo proeminente exigiam uma resposta. Em outra situação o vigilante poderia fazer uso de sua capanga e fingir que ia exterminar qualquer otário mas todos sabiam que não possuía sequer uma garrucha visto que ficou sem alternativa a não ser contar a verdade. Disse tudo em curtas palavras e ninguém pareceu acreditar de tão fantástica a história. Já haviam ouvido falar que o veneno deixava paralisado, cianótico e até matava mas nunca influenciaria o modo de andar. Cardoso deixou Miranda na estação de metrô e arqueou suas sobrancelhas na despedida penalizado com tudo que ouviu. Miranda novamente calculou a distância até o vagão e parecia interminável a chegada até lá. Era extremamente cansativo pensar no passo firme, mais nada. Esquerda, direita. Esquerda direita. Teria conseguido se o alto-falante não tivesse anunciado a saída imediata do trem sentido Santa Cruz. Sabia que depois daquele teria que encarar o parador que visitava as 48 estações até sua casa. Olhou para frente com a mesma obstinação de um maratonista e abandonou seu mantra. Correu e enquanto fazia seu quadril passou a dar rebolados de passista. Suas ancas balançavam em exagero para os lados de maneira que nem os maratonistas de marcha lenta conseguiriam tal proeza. Passou pela multidão de trabalhadores cansados e parecia que uma avenida se abria com todos os olhares apontados para ele. Quanto mais tentava se apressar mais rebolava. Sorte que já estava a paisana senão seria identificado e no outro dia não faltariam zombadores na porta. Preferia estar cagado que passar um constrangimento daquele.

Sentou no sofá cansado e ligou a televisão só para fazer companhia. Sua mulher saiu do banho e depois das ablução imersa em cremes de essência de morango, contou seu dia na cronologia dos fatos, vez ou outra buscando a opinião do marido. Vendo que não tinha resposta o confrontava exigindo atenção. A mesa estava quase posta quando Miranda não agüentou e gritou com seu urro de macho alfa.

- Não vê que eu to sofrendo porra! Não consigo parar de rebolar feito uma bicha.

A mulher minimizou o fato explicando que isso para as mulheres era perfeitamente normal e mesmo que tivesse que conviver com esta nova modalidade de andar, se adaptaria facilmente. No final decidiu aplicar a ele o mesmo procedimento de organização de idéias e perguntou a Miranda como foi seu dia. Parou para ouvir atentamente quando este explicou o diagnóstico do doutor.

- Uma espécie rara de lacraia que tem aqui em casa. Deve ter me picado enquanto tomava banho. Seu veneno, contrários dos outros, não mata nem manda ninguém para o hospital. Seu efeito relaxa os músculos da região glútea, deixando-a dormente. Disse que caminhar ajuda na circulação do sangue e na diluição do veneno. Não há outro remédio.

Miranda limpava as cavidades nazais, assoando seu muco com força quando reencontrou a maldita. Pequena, serelepe, tentava subir pelo azulejo. Quando atingida por um pingo caía na água novamente e serpenteava agitada nadando com dificuldade. Assim Miranda nadaria, se precisasse. A lacraia se escondeu na brecha da massa que cedeu a infiltração, assim como Miranda que foi direto para cama, com pijama azul marinho e seu rebolado desconcertante.