terça-feira, 30 de novembro de 2010

O MEU, O MAR

Aguardo o rosto dela como observo as nuvens. É preciso ter paciência para reconhecer seus rascunhos. Sei que se revelará com sutileza e determinação, a mesma que espero do seu olhar. Vasculho o céu talhado em branco e azul, enquanto, gradativos, o sal e o sol mudam minha cor, o corpo perde a gravidade e meu ouvido se deixa levar pelos mil sinos das profundezas do oceano. Se não fosse pessoa, hoje eu poderia ser o mar.

Gosto da superioridade de sua mão branca gigante que bate em meu peito, insinuando aprovação, a cada vez que tento invadir seus domínios. Gosto das armadilhas de caça que nos pegam pelo pé e nos arrastam para o fundo. Gosto do seu infinito tridimensional. Se mergulho, deserto de areia e corais. Se flutuo, vôo horas sem pisar no chão.

No mar deposito a minha fé, que não tem sexo, nem altar. Um quarto vazio onde jogo todos os desenganos nascidos como ondas para depois viajar até outro continente, onde se chocam, se arranham, se arrebentam e voltam mansos lambendo meus pés em compreensíveis marolas sentimentais.

Ele guarda meu grito de criança, saltando destemido da pedra mais alta. Guarda as conchas que não encontramos para fazer porta-retrato. Guarda as remadas que demos no dia que a tempestade nos trouxe a canoa. Guarda os mesmos peixes que minha mãe desenha até hoje quando encontra uma caneta e um papel em branco.

Minha devoção quase secreta só naufraga quando confundida com pegadas na areia, pôr do sol e amores de verão. Não me importam as praias, os coqueiros, o luar, os sonhos eróticos e as milhões de aquarelas que ornamentam salas de estar e pára-choques de caminhão. Quero um mergulho de alma inteira e corpo inteiro, nada mais.

Até o final do dia o céu permaneceu bordado em nuvens, como um centro de mesa, e nenhum rosto apareceu. Tudo bem. Que o vento leve pra longe um grande amor, mas me deixe o mar.