sexta-feira, 20 de junho de 2008

COLCHA DE RETALHOS

Nunca me acostumo com o freeson que antecede uma apresentação. Todos olhando, esperando, me causa um enorme incômodo. Este sentimento é substituído pelo cansaço ao final. Me sinto carente, indefeso, esquisito, como se todos os sentimentos tivessem escorrido pelo palco durante as quase três horas de show. Desta vez não seria diferente se ela não tivesse aparecido assim, no susto. Estava de lado, conversando com alguém, me vigiando com o canto do olho, pronta para fingir o ritual assustado do encontro, provocando a revoada de borboletas no meu estômago. Fumava e repetia um de seus gestos típicos ao tragar, franzindo as sobrancelhas, antes de rir e comentar algo que não entendi. Nessa hora meu coração telegrafou seu memorando para a razão: é ela rapaz. Vai fundo.

O amor traz muitas incertezas penduradas em seu pára-choque mas a paixão não. Ela atropela, se joga no peito alheio, como um labrador faz ao ver o dono chegar. Me aproximei tentando montar ironias e piadinhas a fim de provocá-la mas todas as mulheres possuem o dom de anteceder os segundos. A dois passos atrás, ela mirou seus olhos brilhantes e respirei aliviado, como o piloto ao ver sua pista de aterrissagem. A mulher da minha vida estava de volta. Nossa conversa, inteligível para os demais, resumira-se na repetição de piadinhas que construímos, momices particulares que nos acompanhariam por álbuns de fotografias, cartões de natal e roda de amigos, contadas e recontadas incansavelmente. Gosto tanto do nosso contraste de cor, da nossa maneira de roçar os braços e nos observei em absoluto silêncio, apertando seu corpo pequeno contra o meu, remontando algo ancestral, comparado somente com a saudade que o continente africano deve sentir das Américas quando ainda existiam juntos. Fui interrompido pelo cutucão no ombro de outro alguém a minhas costas. Só então pude reparar e reconhecer. Tirando meia dúzia de rugas, uns pêlos assanhados de barba pra fazer e a barriga, pela primeira vez saliente, poderia afirmar que era o mesmo amigo, o grande amigo que conheci enquanto saques e cortadas no colégio eram a nossa maior ambição de vida. Trocaria todas as festas surpresas de aniversário e dias de sol por aquele momento, tão cheio de perguntas e respostas interessantes. Como as crianças que puxam seus brinquedos para a sala querendo dividi-los com as visitas, fiquei inquieto, indo de um para o outro, emendando conversas, costurando interesses, chamando gente, apresentando outros, até sentir a mão dela me tranqüilizando, passeando pela minha nuca e entrando com seus dedos entre os pêlos, desbravando esta pequena área com a autonomia de um nativo que caminha nas pedras. Não me lembro o momento que trocamos a agitação do bar pelo colchão macio e quente mas pelo ressonar de gente não estávamos sozinhos. Viajamos para algum lugar no meu passado que não demorei a reconhecer no escuro. A maré chiava devagar e a meia parada do ônibus na porta, se preparando para ultrapassar o quebra-molas eram a trilha sonora: paramos na casa de praia da família Vidal, onde vivi boas coisas em família. O cheiro doce, o piso áspero, os janelões abertos, sem medo do medo. Destranquei a porta, a outra, olhei os estandartes de carnaval pendurados que, não faz muito tempo, eram mais altos que eu. Sentia que por baixo da poeira, momentos de felicidade se escondiam, prontos para nos pregar uma peça e recomeçar seu falatório. Na extremidade da casa um pequeno mirante, onde se via a Rio-Santos e toda a Baía de Mangaratiba. Me sentei onde meu bisavô repousou ereto pela última vez antes de morrer e, assim como as colchas de retalho mofadas que estendíamos para pegar um sol, minha vida estava completa, com seus quadradrinhos tão diferentes e bem costurados. Chorei por não ter palavras de gratidão.

No caminhar discreto do ponteiro de segundos, acordei e observei o relógio da Central do Brasil, apontando uma hora de atraso. Eu deveria estar trabalhando se não fosse o engarrafamento. Nas mãos um livro sobre pessoas que se foram, sobre amores impossíveis, lembranças e perdas necessárias estava sendo apertado com toda força do mundo. No peito, saudade, culpa e impotência. Não confessarei pra ninguém o quanto queria ter tudo isso de volta.

terça-feira, 10 de junho de 2008

INVERNO PARTICULAR

Acordei com as veias endurecidas feito galhos secos e um sangue grosso de geléia de morango. O coração bate acelerado e sobrecarrega as baterias lembrando meu antigo Chevette tentando vencer as ladeiras do pontal do Atalaia. Ele não chegou lá, como eu. O dia dos namorados vem anunciado na rádio, no job de um cliente, na promoção do shopping, no convite para minha banda tocar. Não faço do dia 12 de junho um velório onde ficarei em volta de tudo que já morreu, relembrando as histórias felizes. Necas. Esta seria uma data oca que passaria batida se não tivesse ninguém morando nela, se eu não tivesse enfiado com colheradas de aviãozinho, goela abaixo da minha razão, uma mulher que ama outra pessoa, não a mim. Passar esta noite cantando para casais apaixonados, que repetirão comigo suas juras, tomando minha voz emprestada para dizer no tom certo o quanto estão apaixonados, se torna até assustadoramente encantador.

Um isqueiro que ela perdeu, um espelho de corpo inteiro, uma viagem, uma tatuagem. Precisaria de décadas para dar tudo que sonhei um dia. Mas ela não quer nada, vive dizendo com total desprezo. Não quer vínculo, responsabilidade, não quer estabelecer uma relação. Talvez para um dia me deixar dormindo e com um bilhete escrito no espelho se despedir pra sempre sem dor na consciência, sem levar lembrança consigo. Engulo este pirulito de areia e com um sorriso amarelo uso minha expressão gasta de amante barato fingindo não ligar. Caso contrário ela distancia, silencia, finge partir. Afinal para discutir relação, se enrolar na coberta, cuidar de verdade, ela já tem companhia. Resta-me apenas oferecer a boemia, o papo leve, os risos, a sacanagem. Definitivamente não tenho vocação pra isso. Quero alguém que me ame até nas luas mais minguantes.

Ouço os amigos, o colega do trabalho e a moça da padaria. Todos são unânimes no pessimismo. Mesmo assim assumo o risco desta corrida com os cadarços desamarrados, sabendo que em algum momento cairei. E não falta gente torcendo para que isso aconteça, seja pela dor de cotovelo ou pelo oportunismo de me ver fragilizado. Hoje eu entendo o Forrest Gump e sua eterna vontade de correr, sem saber se está em busca de algo ou fugindo dele.

Já se passaram três meses desde aquele dia que os strobles e slide-flash chacoalharam dentro de mim e não perco tempo em avaliar se vale a pena ou não, simplesmente porque a vida acontece com seu fluxo irregular, mas me culpo ao permitir a infiltração deste amor pelas paredes, me culpo pela prepotência de achar que posso manter tudo sob controle, me culpo pela ingenuidade de criança encantada com o picadeiro acreditando nos palhaços que choram e nos trapezistas que voam. Talvez este dia dos namorados torne-se um marco, o reinício do meu inverno particular, onde depois de noventa dias de sol quente e flores na janela, a saudade caia estragada do pé, o horizonte desapareça em nuvens e a esperança hiberne por mais dois longos anos.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ENCRUZILHADAS

Por Talita Balaroti

"Tu é pra mim o inesperado. E o inesperado nega a razão, nega a experiência, nega a inteligência. E os erros inesperados são as evoluções provocadas por uma alma imoral. Uma alma que busca libertação, que trai expectativas e transgride as morais do corpo".


Se não fosse a certeza de que aqueles dias no Rio, escureceriam a sua pele, renovariam seu humor e apertariam sua conta bancária, não teria ido.
Uma desculpa esfarrapada no trabalho, duas ligações a longa distância. Eram três da tarde e já estava andando vendo o arpoador. Tava inteira. E só se sentia inteira quando questionava, quando tinha dúvidas. Lembrou: é sempre na minha sutileza que deixo a dúvida se instalar. Parou novamente, recordou de quando discutiu isso com um amigo que já fora seu amante: a dúvida se instalar ou a certeza pregar?
Sabia que naquela noite acabaria na Lapa. Melhor lugar não há, diria D2. Democráticos.
Estava ainda com o biquíni de praia por baixo da roupa curta, afinal, nada melhor para esquecer a melancolia dos dias frios da capital do sul.

Suava em bicas, e dançava, e dançava. Um Moreno lindo tirou seu ar, mais do que toda a dança daquela noite. Pesou: tudo começa com a admiração que desperta o desejo, ou seria o desejo que gera a admiração? Já carregava naquele primeiro olhar: cobiça, ciúmes, inveja, admiração e desejo. Porque para ela, esses tornados nunca caminharam separados.
Suaram juntos. Tomaram café da manhã e falaram de trabalho, e ela levou pro sul a cor preta e vermelha desse Filho de Exú. E se infestou de sua astúcia, sua vaidade, sua indecência. Orixá do movimento teve o poder de fazer o acerto virar erro, e o erro virar acerto. E foi assim que ele a libertou.