quinta-feira, 18 de setembro de 2008

SENHOR ALGUÉM

Enquanto espero ser atendido, observo a praça na tentativa de encontrar um local discreto para me recostar e ler o jornal. Já sei que o atendimento vai demorar. Faz um frio fora de moda na cidade, deixando tudo cinza e desorganizado. Não se vê o Pão de Açúcar, a pedra da Gávea, não há passeio na orla, asa delta, samba na padaria. Tudo se encolhe. Tudo menos o pombo que pousou bem no ombro da estátua. Não sei qual é o personagem da história que ela representa e tenho vergonha de perguntar ao sapateiro, que sisma em costurar meu all star recém descolado. Parece algum membro da realeza, com muitos babados e pose burguesa. O pombo faceiro, no entanto, pouco se preocupa, esfrega o rabo no nariz do moço ali representado e logo aparece outro e outro em revoada. Uns quatro pássaros descansam agora sob seus ombros.
Penso no escândalo deste nobre se o acontecido fosse real. “Ultrajante. Nefastos. Escória.”. Seria um chilique só. Os novos amigos penosos que antes rabiscavam o céu, nem ligam e displicentemente conversam entre si, animados talvez com algum aposentado caridoso e seu saquinho de pipoca. Logo tomam o rumo novamente deixando o Senhor Alguém – nome que o batizei – sozinho. Que inveja ele sentiu! Um sujeito que galgou o caminho da glória, pisou no tapete da fama ali, preso em bloco de cimento, ostentando o único título que tem: a plaqueta gasta de cobre. Acho que a fama tem este preço. Enrijece, congela, esfria os corações. O que será melhor: ser um pombo como tantos outros pombos e não ter fronteiras ou ser tão reconhecido e venerado a ponto de não poder se mover para lugar algum?

Enquanto ainda observava o vôo dos pássaros, um grupo de adolescentes se amontoou no banquinho aos seus pés. Eram bonitos, sadios e traziam mochilas e um violão velho cheio de adesivos. O jovem cabeludo que o empunha tinha a mesma empáfia do Senhor Alguém, tomando a atenção para si depois de dedilhar o solo clássico de uma banda americana.
Alguns abraçados, outros distraídos escrevendo algo nas folhas de trás do caderno. Eram mágicos e poderosos como o circo que chega na cidade sem pedir licença. Os mais afoitos não demoram a descobrir meu novo amigo de lata. O imitam em pose, o patolam, ridicularizam suas calças largas e por final amarram sobre sua cabeça, fazendo uma alusão ao personagem do Rambo ou ao Renato Gaúcho, não sei bem, uma fita em sua testa. Não há quem dê limites para estes garotos grandes que vão dominar o mundo em breve, sendo médicos, advogados, políticos ou poetas. Vão embora cantando com tal alegria que deixam um rastro de inveja. Pois é Senhor Alguém, o reconhecimento não abre vagas para todos os amigos, em cima do seu monobloco só cabe você, por exemplo, por isso eles se vão, sem dó, buscar novos caminhos como uma manada de búfalos que nunca param.

Caminho de volta para o escritório devagar, rodeando as grades verde-musgo da praça. Ainda dá tempo de assistir ao passeio da babá que leva todos os dias o menino e o cão para passear. O poddle, alvo e exuberante, cheira todos os cantos, correndo ensandecido com a língua para fora em busca de novidades. Admiro a alegria canina, tão simples e sincera. A criança tenta acompanhá-lo mas cai de joelhos e ensaia um dengo. A moça, ridicularizada com seu uniforme de babados, rapidamente o distrai mostrando a estátua garbosa ali presente. Ela mesmo lê a placa com alguma dificuldade, gesticulando e explicando com caras e bocas quem seria aquele homem. A menininha, de cachos finos e ralos, aparentando ter uns quatro anos, parece compreender bem ou pelo menos achar graça da história que acaba de se descortinar. Falam de guerra, de batalha, de prestar continência, de um tiro perdido bem no meio do coração. A menininha não se espanta e, repetindo um gesto que viu em algum lugar, repousa sobre os pés da estátua umas flores murchas e incompletas colhidas no passeio. Já me disseram que foi a chuva mas posso garantir que vi Senhor Alguém chorar.