sexta-feira, 20 de julho de 2012

O SONO DO PALHAÇO

Um dia o palhaço acorda. Mas por enquanto ele continua dormindo e sonhando com o picadeiro. Sente o cheiro da pipoca, do perfume que exalam as crianças com roupa de sair, sentadas na primeira fila. Repete de olhos cerrados o gesto ritualístico: passa as pontas dos dedos no pote invisível e esfrega na boca a tinta vermelha que não há. Levanta as sombrancelhas e espalha com delicadeza a pasta branca. Por último, cata com as mãos, no banco de cimento que dorme, o nariz redondo de encaixe. Sem o disfarce é só um velho rabugento, viciado em calmantes. Com disfarce é um ser de luz viciado em palmas. Mais palmas. Mais palmas. Elas garantiram seu soldo, sua cama, seu camarim. A moeda do circo são as palmas, moço. Comprei uma casa que nunca soube o endereço. Comprei roupas que nunca usei. Simplesmente porque a vida sem o personagem passa a não ter sentido. Se eu pudesse não seria gente, só palhaço. O palhaço dorme mas tateia seu baú procurando o trinco. Preserva nele seus bastões, a roupa em setim, bambolês e as gargalhadas. Estas são suas verdadeiras jóias. Guardou de muitas espécies: Gargalhadas explosivas, contínuas, libertadoras. Fazer rir não é um dom, anota no caderninho seu repórter. Fazer rir é uma precipitação, uma ânsia pior que enfiar o dedo na goela. Arranque um riso do desempregado. Da esposa traída. Da criança sem presente de natal. É este prazer primitivo e inexplicável da natureza que faz lotar a porta deste camarim. É este poder de multiplicar o riso. O sangue de palhaço tem poder. A motocicleta estica a marcha na estrada à frente mas ele quer que rufem os tambores. É a deixa que tanto aguarda, quando surge no lugar da assistente de palco, serrada ao meio pelo ilusionista gay. O palhaço o que é...O palhaço o que é... telegrafa as piadas, repetindo tudo sem som. Sonâmbulo, se levanta do banco de cimento. Respira fundo como um nadador e caminha pelo mato mais alto que a canela. Um, dois, três...são quinze passos até a marcação da luz. Aprendeu a não franzir a cara com a claridade. Aprendeu a substituir as piruetas pela singeleza dos gestos. Aprendeu a impostar a voz. Esteve tão preocupado em repetir com maestria seu número que não viu a lona ser arriada, os animais serem trancados, as estacas serem retiradas e o caminhãozinho sair pela manhã rebocando seus vagões. Houve um dia que o circo abandonou o palhaço, que se nega a acreditar, e ainda hoje vive no terreno baldio, solitário, porém convicto que é um sucesso. O velho rabugento sabe que é um fracasso e se recolhe, constrangido, dentro da fantasia. O público já foi. As palmas se calaram. Quem o vê acha que é apenas um retirante, vagabundo, morador de um terreno baldio que tem mania de conversar com as estrelas. Mas o palhaço dorme e, enquanto dorme continua sonhando. Um dia o palhaço acorda.